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Entrevista com maria esther maciel concedida a Rodrigo de Souza Leão Maria
Esther Maciel, poeta, ensaísta e ficcionista, nasceu em Patos de
Minas, em 1963. Vive em Belo
Horizonte desde 1981. É professora de Teoria da Literatura da Faculdade de
Letras da UFMG, com Doutorado em Literatura Comparada, pela mesma
instituição. Realizou estudos de Pós-doutorado em Literatura e Cinema na
Universidade de Londres (1999-2000), onde ocupou também o cargo de Pesquisador Visitante. É autora
dos livros: Dos Haveres do Corpo (poesia, 1985), As
vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (ensaio, 1995); A dupla chama: amor e erotismo em Octavio Paz (ensaio, 1998); Triz (poesia, 1999); Vôo
Transverso: poesia, modernidade e fim do século XX (coletânea de ensaios, 1999); A
palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (organizadora, 1999); Laís
Corrêa de Araújo (ensaio, 2002).
Co-autora de: América em movimento:
ensaios sobre literatura latino-americana do século XX (ensaios, 1998), e Borges em dez textos (ensaios, 1998). Coordenadora do TransVerso — Fórum de Criação e Estudos Poéticos da UFMG. Tem ensaios
publicados em revistas do Brasil, Argentina, Chile, México, Espanha, Estados
Unidos, Inglaterra, Escócia e Dinamarca. Vários de seus poemas foram
publicados em jornais e revistas de cultura do país, como Suplemento
Literário de Minas Gerais, Revista Babel, Orobó e Cacto.
Acabou de preparar um novo livro de ensaios, intitulado A memória das
coisas e outros ensaios, dedicado a literatura, cinema e artes plásticas.
Está, no momento, traduzindo textos ficcionais do cineasta britânico Peter
Greenaway e preparando um livro de prosa poética. Seu site: www.letras.ufmg.br/esthermaciel
PD - Você é professora de Literatura Comparada.
Como é lecionar num país como o Brasil? ME - É
ter que lidar com a falta de bibliotecas satisfatórias, com a crescente
retração dos investimentos do governo em pesquisa e fomento científicos, com
os salários cada vez mais exíguos, enfim, com todo o desestimulante cenário
que marca, atualmente, a educação superior no Brasil, em especial o sistema público de ensino. Lecionar
neste contexto não deixa de ser, portanto, um desafio para a imaginação.
Sobretudo para quem se dedica ao ofício com a paixão e o afinco que
este requer e tenta construir um espaço crítico e criativo possível, no qual
a pesquisa, a discussão, a escrita, a circulação de idéias e textos se
viabilizem, apesar das condições adversas. PD - Qual a característica do Estado de Minas e
do mineiro que o torna um ser literário? É coincidência ser gênio e ser
mineiro? ME - Drummond já disse, num poema, que
"ninguém sabe Minas", só os mineiros. Mas estes "não dizem nem a si mesmos o
irrevelável segredo". Portanto, silencio-me diante de sua
primeira pergunta e respondo apenas a segunda: não vejo relação nenhuma entre
genialidade e mineiridade. Isso é pura mistificação.
PD - Você tem um longo trabalho com a obra de Octavio
Paz. Qual a importância do escritor Octavio Paz? Por que é fascinada pelo
poeta e ensaísta?
ME - Octavio Paz foi um poeta múltiplo,
"tentacular", que se dedicou intensamente à prática polivalente da
criação, da reflexão crítica e da tradução, atuando de maneira incisiva nos
rumos da modernidade latino-americana em suas interseções com a diversidade
cultural dos outros continentes. Conjugou, sem maniqueísmos, universalismo e
americanismo, Ocidente e Oriente, ruptura e tradição, mostrando que ser mexicano
ou latino-americano é também um exercício de cosmopolitismo e de abertura à
alteridade. Sua obra é inesgotável, uma espécie de ars combinatoria de linguagens e saberes extraídos de vários
campos do conhecimento, na qual se pode entrar por diferentes vias,
dependendo do que nela se deseja encontrar ou enfocar. Além disso, Paz dedicou sua vida ao
exercício e à defesa da poesia, mesmo quando desempenhava outras atividades
intelectuais. Assumiu, de forma corajosa, o papel de guardião da palavra, da
imaginação, do desejo e da lucidez crítica no contexto mercantilizado do fim
do século XX. Apostou no poder iluminador da "outra voz",
representada pela poesia, enquanto um antídoto eficaz contra a fixidez da
sensibilidade, a reificação do desejo e o obscurecimento da lucidez crítica
no mundo contemporâneo. Foi poeta até o osso, até a medula, e dialogou com
poetas de todos os tempos e tradições. Temos, todos os poetas do presente,
muito o que aprender com esse magnífico poeta. PD - Há em Octavio Paz o ensaísta e o poeta. Qual
é o mais importante? ME - Paz foi, antes de tudo, um poeta, mesmo quando se
dedicava à reflexão crítica e teórica sobre temas diversos. A poesia sempre
foi o centro de irradiação de sua escrita e de seu pensamento. Daí não ser
possível dissociar inteiramente o poeta do ensaísta. A ele caberiam, sem
dúvida, as considerações que T.S. Eliot fez sobre Ezra Pound, ao dizer:
"de nenhum outro poeta poderá ser mais importante afirmar que sua
crítica e sua poesia, sua percepção e sua prática, compõem uma única oeuvre.
É necessário ler a sua poesia para entender a sua crítica e ler a sua
crítica para entender a sua poesia". Ainda assim, arrisco a dizer que sua obra criativa tem
uma força especial, por dizer o mundo, as coisas, a vida e o próprio ato de
escrever pelas vias transversas da linguagem poética, em sua vibração mais
intensa e em suas múltiplas possibilidades de sentido. Paz experimentou
formas, abordou temas os mais variados em seus poemas, mesclou estilos, fez
do espaço poético um topos onde o
desejo, a memória, o corpo, os mitos, a história, o sagrado e o profano, a
consciência e os sonhos, o óbvio e o absurdo se manifestam em liberdade. Isso
tudo também é objeto de sua reflexão ensaística, mas vem sobretudo de sua
poesia. PD - O que é mais importante a ficção ou o
ensaio? ME - Não penso que a ficção seja mais
importante do que o ensaio ou vice-versa. Não me estimulam essas comparações
valorativas. Montaigne, Borges, Valéry, Paz, Emil Cioran, por exemplo, foram
exímios ensaístas e fizeram do ensaio uma verdadeira arte. Seus textos ensaísticos não ficam
atrás de nenhum conto ou romance, pelo fato de não serem propriamente
ficcionais. Alguns desse autores, inclusive, exercitaram a narrativa
ficcional e/ou a poesia dentro do próprio ensaio, rompendo os limites entre essas modalidades de gênero.
Sobretudo Borges — um mestre das trapaças ficcionais —
levou isso às últimas conseqüências,
ao escrever ensaios como
se fossem contos e contos que mais se parecem a ensaios.
PD - Há muito ensaio escrito de forma cifrada
feito para acadêmico. Pra quem escrever um ensaio? ME - O
ensaio, como já afirmou Octavio Paz, é um gênero difícil. Em um de seus
extremos, tangencia o tratado; no outro, se constitui como uma forma aberta,
flexível, pouco afeita a coerções teóricas e a imperativos da razão. Deve ser
conciso sem ser lacônico; ligeiro, mas não superficial; leve, sem perder a
consistência, completo sem ser exaustivo. O ensaio não é o reduto de um saber
impessoalizado e sistemático, mas um espaço móvel e transitório, no qual o
ensaísta tem a liberdade de exercitar sua própria subjetividade e de
entrelaçar pensamento e imaginação.
Embora a crítica acadêmica da área de Letras
o considere o gênero mais condizente com o pensamento "descentrado"
e "multíplice" da contemporaneidade, o que se vê, infelizmente, na
maioria dos ensaios acadêmicos é ainda um festival de jargões teóricos,
muitas vezes repetições de
termos e conceitos extraídos das teorias da moda. Por isso mesmo, seu acesso
acaba ficando restrito a um grupo especializado de leitores. Digo
que, cada vez mais, tento me desviar desse tipo de academicismo. Sempre tive
uma certa queda por desvios dessa ordem e percebo que agora tenho tido mais
ousadia para praticá-los. Recuso-me a adotar as teorias da moda (o que não
quer dizer que eu não as acompanhe), a escrever sobre certos temas e autores
que dão ibope acadêmico ou espaço na mídia. Meus trabalhos são todos
decorrentes de minhas paixões literárias, teóricas e estéticas. Sigo ao sabor
de minhas demandas internas, de meus impactos intelectuais, de minhas
descobertas felizes de autores e textos. E busco compartilhar isso com meus
alunos e leitores. PD - Você é poeta. Pra que serve a poesia? ME - Não sei se a poesia serve para alguma coisa. Ela é da ordem
do inútil, se pensarmos em termos de serventia. E por isso mesmo é necessária. A poesia é, antes de tudo, um exercício de perplexidade. É o
resultado de nossos assombros, nossas incertezas, nossos erros e errâncias. PD - Com quantas metáforas se faz um poema? ME - Com todas e nenhuma ao mesmo tempo. PD - Walter Benjamin dizia que o cinema é a maior
das artes. Você concorda? Há arte superior? ME - Benjamin estava, com certeza, fascinado pela
novidade que o cinema — enquanto arte híbrida, compósita — trazia para o
cenário cultural da modernidade nas primeiras décadas do século XX. E é
natural que estivesse, pois o cinema representava na época a promessa de uma
arte revolucionária, compatível com as demandas da "era da
reprodutibilidade técnica" e capaz de possibilitar a emergência de novas
formas de sensibilidade, subjetividade e coletividade. Benjamin foi tocado
por essa utopia. Além disso, o cinema ainda mantinha vivo o encanto poético
que acabaria por arrefecer mais tarde com o triunfo do modelo narrativo de
feição hollywoodiana e com o incremento da indústria cinematográfica. Mas não
creio que, com esse fascínio, esse entusiasmo, ele tenha proposto
deliberadamente uma hierarquização das artes. Não existe arte maior ou menor em relação às
outras. Não vejo sentido nesse tipo de classificação. Aliás, qualquer
classificação é arbitrária, subjetiva e falível, por mais amparada que esteja
em teorias e argumentos científicos. PD - O que mais lhe interessa na obra de Peter
Greenaway? ME - A ousadia, com certeza. Greenaway
é um dos poucos cineastas contemporâneos que ainda ousam na experimentação de
novas formas e linguagens, sem que isso signifique uma recusa do passado. Ele levou o cinema a transbordar seus próprios limites, a
expandir-se para além da tela. Sua erudição criativa possibilita-lhe trazer
para um mesmo topos o legado cultural de diferentes tradições — entre elas, a do renascimento e a do
barrroco —, as experimentações da vanguarda, as inovações tecnológicas e as
referências culturais do presente. Transita, com desenvoltura, em vários
campos do saber, sejam estes os da literatura e das artes em geral, sejam os
da culinária, da arquitetura, da moda, da zoologia e da anatomia. E não se
furta a explorar o estranho, o escatológico e o insólito. Além disso, não faz
concessões aos imperativos da indústria cinematográfica e assume uma postura extremamente
irônica perante o culto contemporâneo do chamado "politicamente
correto". É ainda um crítico ferrenho dos sistemas de organização e
classificação do mundo e do conhecimento. Um artista completo, que reedita no
contexto do século XXI a intrigante e instigante figura do
artista/intelectual transdisciplinar, de feição renascentista. PD - Como você insere a sua poética na poesia
moderna? ME - Creio que minha poesia se insere na linhagem
dos poetas modernos que buscam conjugar, sem extremismos, a lucidez e a
vertigem, o logos e o pathos, o experimentalismo e a experiência, as formas do dizer e
as intensidades do dito. Ainda que, em alguns momentos, eu tenha me
entusiasmado com a vertente mais formalista, construtivista, da poesia moderna,
meu trabalho nunca se furtou ao exercício da subjetividade, à exploração do trágico, do absurdo e
do estranho da vida. Nesse sentido, sinto-me muito afinada com a poesia de
Fernando Pessoa, Baudelaire, Cecília Meireles, Emily Dickinson, Augusto dos
Anjos e Octavio Paz. PD - A poesia brasileira de hoje é rica. Por que
sempre são feitas teses sobre os mesmos escritores? ME - É realmente
lamentável que os poetas canônicos sejam quase sempre os objetos de estudo
das teses acadêmicas. Mas isso está mudando. Tenho visto, orientado e
examinado muitas teses sobre autores marginais, desconhecidos, desprezados ou
ignorados pela historiografia literária e pela crítica contemporânea. O
problema é que esses trabalhos ficam confinados nas universidades onde foram
produzidos e não se dão a conhecer fora desses limites. Um orientando meu,
por exemplo, fez uma bela e consistente dissertação de mestrado sobre a
poesia de Orides Fontela. Até hoje não teve oportunidade de publicá-la. Um
outro aluno fez uma leitura do "orfismo" em Mário Faustino, também
inédita. Agora estou orientando dois trabalhos, um de mestrado e outro de
doutorado, sobre o poeta mineiro (ainda pouco conhecido nacionalmente) Altino
Caixeta de Castro. Já no plano da poesia atual, realmente ainda
existe muita resistência por parte de alunos e professores em tomá-la como
objeto de estudo. Os grandes poetas modernos ainda fazem muita sombra aos
contemporâneos. Ainda assim, estuda-se, por exemplo, a poesia de Sebastião
Nunes na UFMG. PD - O que há em A memória das coisas e outros ensaios?
ME - Nesse livro reúno
doze ensaios sobre literatura, cinema e artes plásticas, escritos entre 1999
e 2003. Quase todos abordam a questão do inventário, da catalogação insólita do
mundo e do conhecimento, do uso criativo dos sistemas de classificação. Peter
Greenaway e Jorge Luis Borges
são os autores mais recorrentes. Arthur Bispo do Rosário e Carlos Drummond de
Andrade também mereceram ensaios mais extensos no livro, no que tange a essa
questão do inventário de coisas. Outros ensaios tratam da poesia de Altino
Caixeta de Castro, da escrita sem gênero da portuguesa Maria Gabriela Llansol
e de alguns poetas brasileiros contemporâneos que se dedicam ao poema em
prosa. Já penso em alterar o
título do livro para Poéticas do Inventário. "A memória das
coisas" é o título do primeiro texto da coletânea. PD - Existe vanguarda hoje? ME - Enquanto projeto coletivo e movimento
programático orientado pelo investimento utópico no futuro, a vanguarda não
existe mais. Isso não significa, contudo, que a busca do novo, a
experimentação de formas e o espírito crítico não continuem a mover/estimular
artistas e escritores de vários cantos do mundo. Peter Greenaway é um grande
exemplo. O escritor norte-americano Paul Auster e o argentino Ricardo Piglia
também evidenciam isso de maneira efetiva, ao não se furtarem a aproveitar em
suas obras vários procedimentos estéticos das vanguardas. A artista gaúcha
Elida Tessler é também um exemplo vivo. Mas nenhum deles pode ser considerado
vanguardista de carteirinha. Lembro-me, aliás, de uma observação de Piglia
sobre isso, na qual afirma que a idéia de ruptura com as normas e os valores
instituídos continua vigorando após a crise dos valores da tradição moderna,
só que agora em espaços menores e menos estridentes. É assim que penso
também. Creio que negar completamente a presença de
traços libertários e inovadores na
cultura contemporânea, como se o novo, a experimentação e a crítica
fossem elementos obsoletos, exclusivos da chamada "tradição da
ruptura" é desprezar toda a potencialidade crítico-criativa que marcou
artistas de todos os séculos e que ainda se faz ver nas dobras, nas frestas e
no interior mesmo do sistema cultural predominante. É também anestesiar o
impulso criativo, colocar limites no exercício da imaginação.
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