Ela começou
fazendo poesia, como várias mulheres de sua geração. Depois passou para o
ensaio, em seguida para o romance e, hoje, é craque em todos esses
gêneros. Ela é Maria Esther Maciel, mineira de Patos de Minas, que nos
anos 1980 veio para Belo Horizonte estudar letras e, desde então, vive
aqui, onde é professora de teoria da literatura e literatura comparada na
Faculdade de Letras da UFMG. Mas o gosto pela escrita, como lembra,
começou na sua terra, onde teve o incentivo de alguns professores,
escritores e dentro da própria família. Com o seu último romance, o belo
e bem costurado O livro dos nomes, lançado no ano passado, a escritora
continua a carimbar seu nome, cada vez com mais força, no universo da
literatura brasileira contemporânea. Como ensaísta, Maria Esther Maciel
lançou, entre outros, As vertigens da lucidez - poesia e crítica em
Octávio Paz, um dos seus textos mais conhecidos. Infatigável na busca de
novas possibilidades da literatura, a escritora está envolvida com nova
pesquisa, que pode surpreender quem conhece seus trabalhos voltados para
autores sempre sofisticados e eruditos, como Jorge Luis Borges, Octávio
Paz e Peter Greenway. “Atualmente estou desenvolvendo novo trabalho sobre
a presença dos animais na literatura”, conta a escritora em entrevista ao
Pensar.
Quando estudava na Faculdade de
Letras da UFMG você escrevia poemas. Depois passou para o ensaio e em
seguida para o romance. Como se deu essa metamorfose literária?
Na realidade comecei escrevendo prosa, quando eu tinha por
volta de 15 anos, e publiquei em capítulos, em um jornal de Patos de
Minas, uma novela inspirada em As mil e uma noites. Depois passei a fazer
poemas, alguns contos e escrevi resenhas, que também foram publicadas na
imprensa local. Quando vim para Belo Horizonte, para estudar letras,
continuei me exercitando nesses gêneros, até me voltar também para o
ensaio, em função dos meus estudos na faculdade. Devido a isso, fiquei
durante um bom tempo afastada da poesia e da ficção, até finalmente
retomá-la com o lançamento de O livro de Zenóbia, que é uma espécie de
prosa híbrida. Mas na qual a poesia, de certa maneira, também está
presente. Agora, com O livro dos nomes, me voltei especificamente para a
narrativa.
Como se deu sua iniciação literária ainda em Patos de Minas?
Minha mãe e algumas tias tinham um gosto muito grande pela
leitura. Na nossa casa sempre existiram livros, que comecei a ler ainda
bem nova. Tive estímulos muito fortes de vários professores, como
Paschoal Borges de Andrade, Salvador Rodrigues de Souza, Ricardo Marques,
além do grande poeta Altino Caixeta, “O leão de Formosa”. Ele foi uma
espécie de mestre que tive ao longo da adolescência. Conheci-o em uma
livraria lá em Patos, e daí nasceu a nossa amizade. Ele me apresentou a
uma série de escritores e críticos literários, o que influenciou na minha
decisão de estudar letras. Anos depois, tive a alegria de escrever alguns
ensaios sobre sua obra, além de organizar um livro, Sementes de sol (7
Lettras), com poemas inéditos dele, que me foram passados pela sua
família depois de sua morte. Também em Patos escrevi alguns dos poemas de
Dos haveres do corpo, o meu primeiro livro, lançado três anos depois da
minha chegada a Belo Horizonte.
Em relação ao ensaio, como foi que se deu a sua aproximação com a obra
de autores como Jorge Luis Borges, Peter Greenway e Octávio Paz?
Conheci a obra de Octávio Paz muito cedo, quando ainda vivia
em Patos. Anos depois, para realizar o meu trabalho sobre ele, estive no
México, onde o conheci. Já os primeiros contos de Borges li aqui em Belo
Horizonte, e fiquei fascinada. São autores que vêm me acompanhando esses
anos todos. Por isso mesmo, são as minhas maiores referências. Quanto aos
outros, que estudei posteriormente, como Peter Greenway, isso se deu
naturalmente, como desdobramento desses primeiros. Greenway, que é um
cineasta, mas muito ligado à literatura, tem muito apreço por jogos de
classificação, pelas enumerações, pelos catálogos, coleções,
enciclopédias, como Borges. Isso tudo também me interessa. Tanto que há
uns cinco anos comecei a fazer uma pesquisa, Poéticas do inventário,
justamente sobre esses intelectuais que se valem criativamente desses sistemas
de classificação do mundo, para a partir daí tentar criar novos mundos e
novos sistemas ou antissistemas de classificação. Meu estudo incluiu
também George Pérec, que escreveu os livros A vida modo de usar e
Pensar-classificar, explorando esses recursos da chamada taxonomia. E
ainda Ítalo Calvino, que lidou com essas questões com muito humor e
inventividade, além do artista plástico brasileiro Artur Bispo do
Rosário. Esse viveu durante 50 anos em um hospital psiquiátrico, no Rio,
e compôs uma obra fantástica, que também poderia ser tomada como um
inventário do mundo.
"Passei a estudar o cinema a partir da obra de Peter Greenway.
Desde então tenho realizado uma série de trabalhos sobre a relação entre
o cinema e a literatura"
"Comecei a fazer uma pesquisa sobre esses intelectuais que se valem
criativamente de sistemas de classificação do mundo, para a partir daí
tentar criar novos mundos"
Além da literatura em si, você estudou muito o cinema, tendo inclusive
feito seu doutorado sobre o tema na Universidade de Londres. Quando foi
que a sétima arte passou a lhe interessar?
Voltando outra vez a Patos de
Minas, lá havia ótimas salas de cinema, nas quais, até me mudar para Belo
Horizonte, assisti a dezenas de filmes e fiquei conhecendo a obra de
grandes diretores. Mas passei a estudar mesmo o cinema a partir do
momento em que me interessei pela obra de Peter Greenway. Desde então
tenho realizado uma série de trabalhos sobre a relação entre o cinema e a
literatura. Interessei-me, especialmente, pela maneira como os dois
dialogam, fora dos limites da chamada adaptação. Ou seja: tentei buscar
relações mais oblíquas, subterrâneas e menos previsíveis entre essas duas
artes.
Como escritora, de que maneira você vê esse debate que sempre volta à
tona sobre a literatura feminina?
Sempre fui avessa a essas
classificações da literatura em categorias. No caso da chamada literatura
feminina, a meu ver, isso é bem problemático. Claro que todo escritor, na
sua obra, imprime as suas marcas de vida, de experiência, do seu corpo,
do seu imaginário. No caso da literatura feita por mulheres, isso,
inevitavelmente, faz com que ela contenha mais elementos que dizem
respeito ao nosso próprio universo. Mas isso não quer dizer que a
literatura entre ou se confine nesse registro. É simplesmente a marca que
ela deixa e que, não necessariamente, vai definir o literário, pois esse
está além dos rótulos.
Literatura feminina à parte, quais são as autoras brasileiras
contemporâneas que você citaria?
Além de Clarice Lispector e
Cecília Meireles, que são dois grandes ícones, das escritoras atuais eu
mencionaria Maria Valéria de Resende, que vive no Nordeste e escreveu um
livro que me instigou muito, O voo da guará vermelha; tenho muito apreço
pela escrita de Lúcia Castelo Branco, carioca que há muitos anos vive em
Minas; e Ruth Silviano, que é daqui. A meu ver, elas estão entre as
autoras mais inventivas de hoje. Inclusive, a respeito da chamada escrita
feminina, elas se dedicaram muito a discussões sobre o tema. Citaria
ainda Zulmira Ribeiro Tavares e Beatriz Bracher.
Como você tem visto a difícil separação entre a crítica acadêmica,
cada vez mais afastada do público, e as resenhas dos jornais, quase
sempre superficiais?
Esse realmente é um problema em
relação à crítica contemporânea. Por um lado, vejo que está sendo feito,
no meio acadêmico, um esforço de verticalização da leitura, e de se
elaborar conceitos em torno do que se produz hoje. E, por outro, percebo
uma conivência com certos imperativos do mercado editorial. Com isso, as
resenhas dos jornais, atualmente, estão muito mais superficiais no que
diz respeito à literatura, exatamente por estarem, de certa forma,
atreladas a esses interesses mercadológicos. Mas apesar dessa tendência
geral, existem muitos jornalistas no Brasil que conseguem produzir um
tipo de texto que fica justamente na interface de uma leitura mais
aprofundada e dirigida ao grande público.
Voltando à obra de ficção, em O livro dos nomes os personagens são
múltiplos, todos têm suas histórias, que se entrelaçam no final. Como se
deu o processo de criação desse romance? Ele nasceu a partir d’O livro de
Zenóbia?
O livro dos nomes veio, sim, de O
livro de Zenóbia. Curioso é que comecei a escrevê-lo não a partir da
ordem que ele passou a ter depois de pronto. Não segui a ordem alfabética
dos nomes. Ative-me, no entanto, às relações entre eles: comecei com
Antonio, mas, antes de passar para Beatriz, preferi escrever sobre
Silvia, e assim por diante. Fui estabelecendo as relações entre os
personagens à medida que fui escrevendo. Caso contrário, eu corria um
risco de me dispersar no correr da trama, além de cair em incoerências.
Quanto à escolha dos nomes, antes eu criei uma lista e depois me ative
àqueles que ficariam definitivamente na história, um para cada letra.
Depois, ainda fiz algumas trocas, quando percebi que esse ou aquele nome
não combinava bem com determinado personagem. No final tudo deu certo.
Quais projetos você vem desenvolvendo atualmente?
Depois de publicar O animal
escrito, pela Lume Editora, sobre a presença dos animais na literatura,
estou dando sequência a esse trabalho. Para poder realizá-lo estou de
licença na Faculdade de Letras, e minha pesquisa tem o apoio do Instituto
de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG. Esse trabalho, que tem
me fascinado, diz respeito às maneiras como escritores contemporâneos
representam os animais em suas obras. O trabalho foi dividido em duas
partes: na primeira, dei um enfoque mais voltado para o fantástico, para
o alegórico, para simbólico. Na segunda vertente, me centrei nos animais
de carne e osso, mostrando como eles aparecem na literatura, e em que
medida os escritores de hoje manifestam pelos mesmos algum tipo de
preocupação, seja de ordem ética, ecológica ou filosófica.
OBRA ESCOLHIDA
• Dos haveres do corpo, poesia, Editora Terra, 1984
• As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octávio Paz, ensaio,
Editora Experimento, 1995
• Triz, poesia, Orobó Edições, 1998
• Lição de fogo: amor e erotismo em Octávio Paz, ensaio, Editora Memorial
da América, 1998
• Voo transverso: ensaios sobre poesia, modernidade e fim do século XX,
Editora Sette Letras, 1999
• O livro de Zenóbia, romance, Editora Lamparina, 2004
• A memória das coisas - ensaios de literatura, cinema e artes plásticas,
Editora Lamparina, 2004
• O livro dos nomes, romance, Editora Companhia das Letras, 2008
• O animal escrito, um olhar sobre a zooliteratura contemporânea,
ensaios, Editora Lumme, 200
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