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MARIA ESTHER
MACIEL: A POESIA E SEUS PONTOS DE FUGA (Entrevista conduzida por Floriano Martins) Floriano
Martins - Ao escrever sobre tua poesia, Alécio Cunha observou
a presença de uma subjetividade que ressalta justamente por não a encontrar
mais na tradição poética brasileira. Tal subjetividade se dá em franco
diálogo com um destacado sentido de entrega: o eu entregando-se ao outro,
essa viagem que mencionas: "viajo ao longe / do que sou, além / do meu
espanto". Como chegas ao poema? Com quantas vozes dialogas até que o
poema se mostre? Maria
Esther Maciel - A subjetividade assumida
através de um “eu” explícito no poema é, sem dúvida, uma das marcas de minha
poesia. No entanto, esse exercício da primeira pessoa não está a serviço da
confissão ou de um pacto com a autobiografia. É, antes, uma subjetividade
povoada de vários “eus”: os que me constituem, os que imagino e os que forjo
a partir da relação com o outro, os outros. Eu diria que, talvez pela força
dos influxos que sempre tive da poesia de Fernando Pessoa, venho buscando
para minha escrita poética uma espécie de subjetividade oblíqua, muitas vezes
contraditória, que se define menos pelas figurações de um “eu” centrado e
bastante em si mesmo, do que pelas suas próprias linhas de fuga, polifonias,
contrapontos, orquestrações e ritmos. Acredito no “eu” como uma produtividade
infinita, uma força criadora de sensações, pensamentos, sentimentos, que são,
poderiam ser, nunca foram ou serão meus. Dessa constelação não excluo, é
claro, o eu lúcido, o eu que pensa sobre si mesmo e sobre os próprios
mecanismos de construção poética. Só que a lucidez que ele traz está sempre assaltada pela presença -
ora desejada, ora intrusa -
desses outros eus (óbvios e/ou absurdos) que povoam minha voz. Concordo
com Alécio Cunha quanto à elipse (ou eclipse?) do eu na poesia brasileira
contemporânea, em especial naquela de feição mais construtivista, que parece
ser a que ainda predomina em nosso cenário poético. Realmente são muitos os
poetas que, ainda sob os imperativos da razão crítica moderna, insistem no
exercício de uma impessoalidade asséptica, completamente decantada do vivido
ou, como diria E.M. Cioran, quase incompatível com o ato da respiração. O
que, a meu ver, já não faz muito mais sentido hoje. Foi uma prática que teve
seu momento de esplendor na modernidade, dos românticos alemães a Valéry e
João Cabral, foi levada às últimas conseqüências no Brasil pela poesia
concreta e acabou por se exaurir pela força de sua própria exacerbação. O
próprio Cabral reviu essa prática em um de seus últimos livros, Agrestes, ao se valer de um “eu”
explícito para dizer: Sempre evitei
falar de mim, / falar-me. Quis falar das coisas./ Mas na seleção dessas
coisas/ não haverá um falar de mim?// Não haverá nesse pudor / de falar-me
uma confissão, / uma indireta confissão, / pelo avesso, e sempre impudor? Creio
que o momento presente não comporta mais oposições excludentes. O pathos lírico - seja como porta-voz ou
disfarce da intimidade - pode
perfeitamente conviver com a razão crítica, sem se furtar também ao diálogo
com várias outras formas de subjetividade. É o que procuro exercitar em minha
poesia. E sei que outros poetas contemporâneos também têm buscado isso. FM - Como
bem propões logo no poema de abertura de Triz (1998) - "escrever […] o
rio / da palavra margem" -, conteúdo e continente não te interessam em
separado, o que acaba por estabelecer certa contradição entre o que escreves
e o meio em que habitas, aqui salientando tuas referências estéticas, que
pendem para uma exacerbação formalista, seja na poética do Concretismo ou na
crítica acadêmica de um João Alexandre Barbosa. Se é bem verdade que tua
poesia acaba por vencer a contradição, como convives com ela? MEM - Acho
importante esclarecer que minhas referências teóricas e poéticas não se
circunscrevem ao cânone formalista, embora eu tenha, em momentos específicos de minha
trajetória, me entusiasmado bastante com essa linhagem. Não nego meu fascínio
pelas construções do pensamento, pelos jogos matemáticos, pela geometria das
formas, pela experimentação. Entretanto, o que mais me interessa realmente é
identificar nesse exercício do rigor os pontos em que o delírio ou a vertigem
emerge, conduzindo a lucidez da construção aos seus próprios avessos. Ou
sondar as possibilidades de conjunção entre lucidez e liberdade da
imaginação. Daí que minhas verdadeiras referências sejam escritores e/ou pensadores
que conseguem praticar habilmente esse jogo paradoxal, como Pessoa,
Baudelaire, Kierkegaard, Paz, Borges, Clarice Lispector, Augusto dos Anjos,
Murilo Mendes, Cioran, o último Barthes e Maurice Blanchot, dentre outros.
Digo que, na mesma proporção em que me interesso pelos formalismos, também me
deixo fascinar pelo trágico, pelo insólito, pelo estranho. Para mim seria
muito difícil (para não dizer impossível) adotar aquilo que Valéry elogiou em
Leonardo da Vinci: “um abismo o faria pensar em uma ponte”. Além disso - e o que vou dizer pode
soar anacrônico - acredito que cabe também (ou sobretudo) ao poeta buscar na
poesia aquilo que Artaud chamou de “núcleo irrequieto” que as formas não
tocam, através do qual se pode captar a vibração, o vivo das coisas. Reconheço que às vezes me desvio mais
para desses lados, como no período em que me dediquei ao estudo dos
poetas-críticos modernos. Um lado que acabou ficando mais conhecido por causa
de livros e textos que publiquei sobre o tema. Mas mesmo aí não deixei de
privilegiar os pontos de tensão que constituem o pensamento desses poetas.
Creio que meus escritos sobre Octavio Paz, Cabral, Haroldo de Campos,
Mallarmé, os românticos alemães, Laís Corrêa de Araújo vão nessa direção. Um
outro lado a que me direcionei antes dessa fase “lúcida” foi o dos poetas
malditos, tendo escrito um longo estudo sobre a morte na poesia de Augusto
dos Anjos. Hoje, mais do que nunca, estou investindo na pesquisa teórica e
criativa sobre formas de se extrair o rigor do delírio e o delírio do rigor.
Daí eu estar me dedicando ultimamente a Borges, Greenaway e Bispo do Rosário,
figuras que, por vias distintas, levam às últimas conseqüências esse jogo. Já no
campo específico da criação poética, essa minha opção pela lógica do paradoxo
(uma opção bem interna, eu diria que quase que involuntária) é bem visível,
não só em termos temáticos como estruturais. E se faz ver ainda na forma como
lido com a questão da subjetividade. Como você observou muito bem, não
desvinculo forma e conteúdo, dizer e dito, rio e margem, olho e imagem. E
isso não é algo que busquei voluntariamente, mas nasceu comigo, com minha
poesia, ainda quando eu era uma jovenzinha de treze anos e me pus a imitar
Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Altino Caixeta de Castro,
poetas que foram medulares para minha descoberta da poesia. Confesso que, por
mais que eu tenha tentado, nunca consegui escrever um poema concreto. Talvez
por isso eu admire quem saiba faze-lo com destreza e criatividade. Por outro
lado, já tentei escrever poemas longos, atravessados de fluxos e cadeias de
imagens. Tampouco fui bem sucedida. E isso talvez explique também meu
espanto/encanto diante dos poemas de um Herberto Helder, um Jorge de Lima, um
Floriano Martins. Meu espaço poético -
estou bem certa disso - é o das tensões, do equilíbrio instável. E
pretendo expandir isso para outros campos, através, por exemplo, da
hibridização das formas. Valer-me de formas à margem do verso e da estrofe,
como a lista, o catálogo, o roteiro cinematográfico, os verbetes de
enciclopédia, a narrativa, etc para escrever poemas é um desafio criativo que
estou me dando agora. Sem, para isso, me furtar aos abismos, aos infernos ou
à alegria. FM - Há
uma passagem do Llyfr Coch Hergest, livro essencial da tradição celta, onde
se diz que o poeta é enriquecido por três coisas: “os mitos, a faculdade
poética, uma provisão de poesia antiga”. Olhando a poesia brasileira que nos
é contemporânea, por vezes tenho a impressão de que esses três aspectos
desapareceram por completo do universo de interesses de nossos poetas. MEM - Não
sei se está muito claro para mim o que vêm a ser precisamente essas três
coisas. Estaria essa “poesia antiga” relacionada com o que Octavio Paz chama
de poesia em “estado de pureza selvagem”? Ou o antigo aí estaria circunscrito
a uma tradição específica? Seria a “faculdade poética” o que Ungaretti, ao
tratar da “indefinível aspiração”, chama de “dom”? Ou a palavra teria aqui o
sentido de “habilidade” adquirida? Talvez fosse necessário conhecer o livro
celta a que você se refere para tentar elaborar uma resposta mais pertinente.
De qualquer maneira, as referências aos mitos e à poesia antiga me fazem
pensar na idéia de ancestralidade, que remonta às civilizações primitivas.
Aquela tradição que colocava a poesia numa esfera ritualística, em um círculo
mágico ou sagrado, que o tempo da razão desconhece e não reconhece. Sabemos
que muitos poetas, de todas as épocas, tentaram reconstituir poeticamente
essa origem impossível que, por ser mítica, é feita do que, não existindo,
nos criou - para evocar aqui a mensagem de Pessoa. Alguns, com a ilusão do
recomeço. Outros, com a consciência de que o perdido (se é que o que se
perdeu já tenha sido possuído alguma vez) só pode ser reinventado pelo
trabalho da imaginação, da memória e da releitura criativa da tradição.
Assim, se os mitos e a poesia antiga enriquecem o poeta - e não tenho dúvidas
quanto a isso - é a relação de cada um com esse legado que vai enriquecer (ou
não) a poesia que ele faz. Para mim, os poetas que mais aproveitaram esse
legado foram os que seguiram essa segunda via, conjugando o mítico, o
analógico, o sagrado com os referenciais que constituem o imaginário e o
pensamento do nosso presente. Referenciais estes que, por mais prosaicos,
banais, desauratizados, artificiais, não deixam também de enriquecer um
poeta. Concordo com você quanto ao desinteresse de grande parte dos poetas
brasileiros contemporâneos pelo mítico e pelo antigo, embora isso não possa
ser dito de forma generalizada, considerando a grande diversidade poética
(mais esparsa que localizável em grupos específicos) do país hoje. Certamente
há quem, nos subterrâneos, nas dobras, nas frestas, do cenário poético
legitimado, esteja se abrindo a experiências de outra ordem que não a da assepsia
da imaginação. No que
tange à “faculdade poética”, prefiro compreende-la como um amálgama entre o
“dom” e a “habilidade adquirida”. Tal faculdade é o que leva o poeta ao
estado de perplexidade necessário para que a poesia aconteça. Borges já disse,
em uma conferência, que a história de um poeta é também a de suas
perplexidades. E perplexidade, aqui, tomada nos seus vários sentidos:
enredamento de certezas, espanto, assombro, maravilhamento. Creio que é
porque nunca consegue resolver o enigma de todos os começos, porque se
assombra diante do milagre da palavra, porque se espanta com o acaso ou com o
insólito que desorganiza a obviedade do mundo, por saber que todas as
verdades são incertas e que a vida não basta, que o poeta escreve e não cessa
de escrever. Esse “dom/habilidade” de estar perplexo não é algo que o poeta
possa levar voluntariamente para o horizonte de seus interesses. Ou se tem ou
não se tem essa faculdade. E quem a tem é porque é verdadeiramente um poeta e
sabe que dela não pode prescindir no ato da criação. FM - Tua
percepção a respeito do assunto foi perfeita. Eu buscava uma livre associação
de idéias e reagiste bem, o que reflete uma percepção bastante afiada. Claro
que traço um perfil em linhas gerais da poesia brasileira que se mostra,
aquela amparada pela maquinaria editorial, jornalística e de circulação em
âmbito acadêmico. Eu me referi a universo de interesses de nossos poetas por
uma razão simples: um alheamento claro em relação aos aspectos aludidos. Mas
concordo contigo, algo lhes escapa, possivelmente a falta de dom. Contudo,
indago se essa ausência não é, de certa forma, dissolvida por um preconceito
em relação ao tema. Penso no que a argentina Olga Orozco situa como
"emoção exaltada da liberdade", em contrapartida a um pânico diante
da perspectiva de perder o controle da emoção. Diante disto, o talento
natural não seria levado a calar-se? MEM – Bem, como eu disse
na resposta anterior, prefiro tomar o talento natural aliado a uma habilidade
adquirida/cultivada através da prática da escrita, das leituras, do
aprimoramento do ofício. O “dom” por si só não faz um poeta. Assim como
apenas o domínio técnico da linguagem também não garante um belo poema. Sem
dúvida, há vertentes da poesia contemporânea que, ainda sob o influxo do
racionalismo moderno, colocam a poética acima da poesia, numa obsessiva
prática da metalinguagem, aliada a uma explícita aversão à intuição e ao
improviso. O que pode levar, certamente, a uma desvitalização do próprio fazer
poético. Cabe ao poeta, mesmo na exigência do rigor, também saber errar,
abandonar-se à magia do desvio. “Voar para fora da asa”, como diria Manoel de
Barros. Ou permitir-se “o encontro inesperado do diverso”, como propôs a
portuguesa Maria Gabriela Llansol.
O erro, nesse caso, entendido tanto como falha, desacerto, lapso,
quanto como a condição do que não pode permanecer em pontos fixos, do que se
espalha em várias direções. Por outro lado, a defesa incondicional da “emoção
exaltada da liberdade” pode levar ao extremo oposto da primeira diretiva e
servir de álibi para uma permissividade fácil no que tange ao manejo dos
recursos que a linguagem poética oferece. O que não é o caso, obviamente, de
“la hechicera” Olga Orozco, que sabia amalgamar, como poucos, o ímpeto arrasador com a destreza
verbal. FM -
Em uma mesa-redonda com Octavio Paz, que se deu no auditório do jornal O
Estado de S. Paulo em 1985, o poeta mexicano observa a inexistência de trânsito
entre barroco e surrealismo no México, comenta a falta de percepção de Breton
em relação ao barroco e encerra dizendo que não vê "uma relação clara
entre barroco e surrealismo". Estas são as palavras finais do evento,
não havendo contestação pelo simples fato de que os componentes da mesa
claramente não estavam interessados em discutir a respeito do surrealismo.
Contudo, a despeito da inadvertência de Breton, o surrealismo se aclimatou na
América Latina em grande parte graças a um convívio com o barroco. De outra
maneira não poderíamos discutir a poesia de Emilio Adolfo Westphalen, Enrique
Molina, Ludwig Zeller, Vicente Gerbasi, Lorenzo García Vega e tantos outros,
em momento algum deixando de incluir o próprio Paz. A que atribuis esse
interesse de estabelecer uma não-relação entre barroco e surrealismo? MEM -
Creio que a relação entre barroco e surrealismo na América Latina ainda está
para ser avaliada com cuidado. Talvez não haja mesmo, como apontou Paz, uma
relação clara, explícita, entre
essas duas poéticas, mas sim um enlace que, longe de poder ser explicado
pelos princípios da periodização literária, se dá a ver por vias mais
subterrâneas, porque feito de similitudes dispersas e afinidades em
dissonância. Barroco e surrealismo são duas diferentes atitudes diante do
mundo - uma traçada pelo embate do sujeito com seus próprios conflitos e
tormentos; outra marcada pelo exercício da liberdade em todos os planos da
experiência humana - mas que se aproximam pela desmesura dos sentidos, pela
ênfase na imaginação como força criadora de realidades fictícias. Já no
âmbito propriamente estético, mesmo que sejam duas concepções distintas do
fazer poético - uma pautada na prática do artifício, na geometria das formas,
nos jogos de engano; outra norteada pelos princípios da descompressão formal
e pela espontaneidade de um dizer sem regras - barroco e surrealismo se
encontram através da ênfase dada à imagem e à profusão de metáforas, dos
efeitos de estranhamento e do gosto pelo maravilhoso e pelo mítico. Até mesmo
a dimensão onírica pode ser tomada como um ponto de contato, se pensarmos em
um poema como Primero Sueño, de Sor
Juana Inês de la Cruz, por exemplo, no qual a poeta sonha com o vôo
vertiginoso da alma pelos espaços interestelares, em busca do conhecimento
universal. Só que o onírico, nesse caso, é um recurso que, ao invés de
funcionar como elemento estruturador de uma sintaxe, como acontece na poética
surrealista, tem uma função predominantemente alegórica. O que
os poetas hispano-americanos a que você se refere fizeram (alguns deles ainda
não conheço) foi captar/explorar criativamente esses e outros traços
dispersos de similitude entre barroco e surrealismo, explicitando por vias
poéticas a relação entre as duas correntes e fazendo-as convergir tanto no espaço
textual quanto no próprio cenário poético contemporâneo. No que se refere a
Paz, pode-se dizer que ele realiza a convergência no plano da escritura -
vide o poema Blanco -, mas
curiosamente se furta a adotá-la no âmbito da crítica. No seu monumental
livro sobre Sor Juana Inês de la Cruz, por exemplo, não há alusões a um
possível entrecruzamento entre a poética de Sor Juana e alguns procedimentos
da poesia surrealista (entrecruzamento este já observado por Alfonso Reyes).
E se Breton - uma das referências mais recorrentes para as reflexões de Paz
sobre a modernidade - entra no livro é apenas para justificar a questão da
“metáfora descendente” no poema “Primeiro Sueño”. No
Brasil, o não reconhecimento dessa convergência barroco/surrealismo pode ser
justificado, sim, pelo pouco interesse dispensado pela maioria dos poetas e
críticos brasileiros ao surrealismo, que continua sendo - como você muito bem
já observou - uma espécie de não-capítulo da nossa historiografia literária.
Percebe-se uma clara resistência à poesia surrealista no Brasil. Talvez
porque muitos ainda tendam a limitá-la à prática da escrita automática -
vista como um mero dispositivo de facilidades e concessões - e não a
reconhecem como uma visão de mundo, pautada em formas alternativas de sensibilidade
e no exercício poético da liberdade e da imaginação. Entretanto, quem
levantou a questão sobre possíveis relações entre o barroco e o surrealismo
na América Latina para Octavio Paz durante a tal mesa-redonda foi um poeta
brasileiro, Décio Pignatari. Aliás, foi a única pergunta que ele fez a Paz
naquela noite. Ele fala, inclusive, de uma “vinculação, não apenas estética e
cultural, mas ideológica” entre o barroco e o surrealismo, o que não deixa de
ser bastante instigante. Pena que a discussão não tenha seguido adiante. FM - Decerto
que Pignatari já havia observado em Paz a mesma ausência que destacas na
abordagem de similitudes entre Barroco e Surrealismo, não esquecendo aqui de
considerar sua mudança de postura em relação ao Surrealismo a partir de um
dado momento. Em artigo publicado na revista USP # 36 (1998), Pignatari volta
a tocar no assunto, cometendo dois deslizes: exemplifica apenas com
prosadores o diálogo da literatura hispano-americana com o Surrealismo e
afirma que "a fragilidade pensamental de André Breton e sua pobre
consciência ou inconsciência de linguagem transformaram a chamada escrita
automática no ponto central e nevrálgico do surrealismo". Tenho
insistido que a grande poesia hispano-americana é justamente a que soube
lidar com essas similitudes aqui apontadas. Recordo que Breton já afirmava,
em 1935, que o automatismo jamais constituiu um fim em si, alertando para a
má fé de quem recorra ao mesmo para minimizar a importância do Surrealismo.
Me parece que o Brasil vive um duplo infortúnio: os negócios entre as coroas
espanhola e portuguesa nos privaram de uma relação mais intensa com o
Barroco; os negócios de um racionalismo frustrado infiltraram em nossa alma
um medo pânico da perda de consciência, o que nos impede a busca de mais
consciência. A "contribuição milionária de todos os erros",
defendida por Oswald de Andrade, converteu-se em tola retórica. De que
maneira vês reagir a tradição lírica brasileira em face desse histórico
escolar? MEM - Ainda não conheço o texto de Décio
Pignatari, o que me desautoriza a fazer comentários sobre ele. De qualquer
forma, percebe-se realmente uma tendência geral de se reduzir o surrealismo à
prática da escrita automática. Prática aliás que, da maneira como foi
concebida, não deixa de ser de uma extrema exigência, por demandar um
desprendimento quase impossível do sujeito em relação aos apelos do mundo
exterior, aos imperativos da vida utilitária. Esse seu caráter de quase
impossibilidade confere-lhe, inclusive, um fascínio especial. É certo que o
automatismo teve um peso considerável nas primeiras definições que Breton fez
do surrealismo. Mas o que se depreende do conjunto de princípios que norteou
o movimento é algo muito mais amplo e complexo. Isso, porque o Surrealismo,
longe de ter sido meramente uma estética, foi também uma atitude vital dos
poetas e artistas frente à sociedade e aos dogmas da civilização ocidental.
Como bem o definiu Buñuel, o seu objetivo principal não era criar uma nova
escola literária, artística ou filosófica, mas fazer “explodir a sociedade,
mudar a vida”. O surrealismo possibilitou o surgimento de um “modo” alternativo de sentir, de
pensar, de olhar, de viver, pautado sobretudo no poder da imaginação. Um modo
que ainda perdura, com grande vitalidade, em alguns contextos poéticos do
presente, como o da América Hispânica e o de Portugal. Mas que no Brasil,
como eu já disse, se faz ver por vias mais subterrâneas. Agora,
não concordo com idéia de que o Brasil seja infortunado pelo fato de sua
poesia ter passado por uma história diferente. De fato existe um medo pânico,
entre alguns poetas, da perda de consciência. Mas a consciência não impediu
que poetas como Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, João Cabral, Murilo
Mendes, Manoel de Barros, Hilda Hilst – só para mencionar alguns dos mais
conhecidos – exercitassem com
vigor os poderes da imaginação. FM - Recordo
aqui uma voz que me é bastante lúcida, a de Milan Kundera, ao referir-se à
"feliz imprevisibilidade que é a fonte da poesia", e o faço movido
por um cenário bastante previsível que encontramos hoje nas relações entre
arte e poder, arte e mídia, arte e mercado. O próprio Kundera já havia
atentado para uma perspectiva de mudança social que não fosse além de uma
tática de permanência da imutabilidade. Em que nos convertemos os
intelectuais deste nosso tempo? MEM - À
citação de Milan Kundera eu contraporia uma outra do poeta português António
Ramos Rosa, que diz: “escrever é manter vivo o frescor da surpresa”. Não
creio que a previsibilidade ou a imprevisibilidade das coisas defina a poesia
ou se torne fonte para esta. O maior desafio para um poeta é exatamente
extrair o frescor das coisas previsíveis. De fato - e o que vou falar pode
soar um déjà vu - vivemos em um mundo de clichês, no
qual perdemos aos poucos a capacidade, como diria Ítalo Calvino, de pôr em
foco visões de olhos fechados, de sentir e pensar com a imaginação. A vida
passou a ser medida através da lógica do consumo, dos pregões das bolsas de
valores, das balanças e dietas, das fórmulas de auto-ajuda, do aqui agora
edulcorado das propagandas de televisão. Buscar nesse cenário uma fonte de
poesia é a difícil tarefa dos poetas de nosso tempo. Há os que sucumbem à
lógica imperante em busca de um reconhecimento a todo custo e os que desistem
de tudo por achar que o mundo não os merece; mas há felizmente os que atuam
nas frestas e nas dobras desse processo, insistindo em manter vivo no mundo -
através da poesia - o fulgor do imprevisível. Para estes, é necessário ter inegavelmente uma provisão de
utopia, uma utopia possível para este tempo sem futuro: aquela que se
configura menos como projeto do que como desejo. No que
se refere especificamente aos intelectuais, concordo com Octavio Paz, quando
este diz da necessidade de se reabilitar o espírito crítico em nosso tempo.
Sem crítica não há mobilidade do pensamento. E não se confunda crítica com a
desqualificação sumária do outro, com a intolerância. O exercício crítico
requer também a responsabilidade ética de entender a lógica do outro, para
então colocá-la em crise, evidenciar suas contradições e fragilidades. Algo
que precisa ser mais exercitado por nós, intelectuais do presente. FM - Há
um artigo do Diogo Mainardi (Veja, 05/02/2003) em que observa a ausência de
interesse dos escritores brasileiros pela realidade, na verdade uma
inescrupulosa relação com a mesma. Denota falta de princípio, claro. O
exercício da alteridade que mencionas raramente tem sido praticado entre nós.
A idéia de reabilitar o espírito crítico em nosso tempo defendida por Paz
deveria começar por ele mesmo, como exercício de autocrítica, mas se pensamos
em nosso país, por onde começaríamos? MEM - Acho que começaríamos por lamentar
que uma das maiores revistas de nosso país se preste a promover um
franco-atirador como esse que, no artigo a você se refere, simplesmente
desqualifica, “detona” a relação de Drummond com a realidade política
internacional, pelo fato de, no índice onomástico do livro que traz sua
correspondência com Mário de Andrade, não constarem os nomes de Hitler, Stalin
e Mao TseTung. Uma coisa é não gostar de um poeta e questionar sua
canonização; outra é difamar sua conduta ética, com base em argumentos
falaciosos e irresponsáveis como os que nos são apresentados no tal artigo
(que só fui ler porque você citou na pergunta). Quem conhece a biografia de
Drummond e leu livros como A rosa do povo e Sentimento de mundo
sabe muito bem do que estou falando. Nem é preciso gostar da poesia que ele
fez. Definitivamente, não é essa espécie de exercício crítico dogmático,
pautado no que chamei de “desqualificação sumária” do outro, que defendo
quando falo de reabilitação do espírito crítico em nosso tempo. Mesmo
que eu não concorde com a postura política assumida pelo último Octavio Paz,
nunca deixei de admirar sua lucidez crítica (e autocrítica) enquanto poeta e
intelectual preocupado com questões de toda ordem, seja estética, seja
cultural e até mesmo política (penso aqui num livro como Posdata e em alguns ensaios, ainda bastante atuais, que escreveu
sobre a política externa dos EUA). Além de demonstrar um grande domínio sobre
as matérias de que se ocupou, Paz não se absteve de reavaliar as próprias
idéias, reescrever e corrigir seus textos, revisar sua própria história. À
parte os equívocos ou acertos que possa ter cometido em sua trajetória
intelectual, não dá para negar que ele tenha nos deixado o exemplo muito vivo
de um crítico não-ensimesmado, aberto ao diálogo e consistente em suas
argumentações. FM - Em
teu livro Triz (1998), há um capítulo que me chama a atenção, "Ponto de
fuga", por certa ruptura ali empregada em relação ao que se convencionou
chamar de poema visual. O poema traz em si uma dor, uma relação visceral com
a morte do pai, ou seja, relaciona-se com o mundo, mesmo recorrendo a um
tratamento de linguagem cuja tônica tem sido o alheamento ou prática
inconseqüente de jogos semânticos. Como se dá teu diálogo com poetas de tua
geração? Trocam cartas, se falam por telefone, pela Internet? Discutem poemas
entre si? MEM – Logo após a morte de meu pai, eu quis
fazer-lhe uma homenagem. Mas uma homenagem que, sem prescindir do pathos, pudesse se furtar ao
sentimentalismo, ao puro exercício das lágrimas. Naquele momento não havia
fingimento possível para a dor que eu sentia. Cabia-me, então, desviá-la de
sua obviedade, de seus excessos. A idéia de me valer dos eletrocardiogramas
surgiu quase por acaso. Quando os encontrei em meio aos guardados recentes de
meu pai, percebi que naquelas tiras de papel havia uma escrita, um ritmo. Em
cada linha, um verso. Aí resolvi explorar as possibilidades dessa linguagem
do coração, conjugando-a com as minhas próprias palavras e com a imagem
figurativa (biológica) do órgão, acompanhada de sua taxonomia. Eu queria
exaurir o signo coração, em suas
várias figurações e transfigurações. Dessa forma surgiu toda aquela parte
visual do livro, em que enlaço o experimentalismo à experiência, os jogos
semânticos à expressão do visceral. Mais uma evidência de meu apreço pelo
paradoxo, pelo “encontro inesperado do diverso”. Dentre os poetas de minha
geração, creio que Fabrício Marques, Reynaldo Damazio e Alécio Cunha foram os
que mais perceberam e respeitaram isso em minha poesia. Talvez pelo fato de
também transitarem nessas zonas de interseção, de fronteiras. São poetas
independentes, abertos aos vários campos expressivos. Embora
eu tenha muitos amigos poetas e conviva com vários no meu espaço
profissional, curiosamente não cultivo muito o hábito de discutir meus poemas
com eles, de trocar cartas e e-mails específicos sobre poesia. Isso se dá apenas
de forma esparsa e circunstancial. Ainda assim, eu poderia citar alguns
interlocutores um pouco mais assíduos. Além dos três poetas a que me referi
acima, eu mencionaria um colega, Luís Alberto Brandão Santos, que considero
um dos escritores mais criativos de minha geração. Chegamos a criar, no ano
passado, o TransVerso, um fórum de
criação e estudos poéticos dentro da UFMG, com o propósito de abrir, na
aridez do universo acadêmico, um espaço alternativo de invenção. Luís tem uma
grande ousadia intelectual e isso me estimula a trabalhar com ele em novos
projetos. Tenho mantido também um diálogo interessante com o mato-grossense
(radicado em Florianópolis) Sérgio Medeiros, poeta nonsense, híbrido, que
está sempre buscando formas diferentes para sua poesia. Mantenho ainda uma
saudável cumplicidade com a poeta cubana Carlota Caulfield, descendente de
irlandeses e que vive na California. Eu a conheci em Londres, em 1999, e
desde então temos estado em contato. Ela é uma poeta exuberante, intensa,
inventiva, com um domínio impressionante da linguagem. Tenho muitíssimo o que
aprender com ela. Sinto que ela me “desintoxica” dessa exigência de lucidez
que às vezes me atormenta... FM - Ao
final de uma carta destinada ao mexicano Xavier Villaurrutia, o peruano César
Moro, lamentando argumentos que buscam justificar "a prodigiosa
bestialização da vida humana", conclui: "esse mundo não é o
nosso". Independente do lugar comum que faz de todo poeta um pária em
qualquer sociedade, eu te pergunto: este mundo é o teu? MEM - Sim, apesar da “prodigiosa
bestialização” e de toda a barbárie que o definem. É a este mundo que estou
ligada pela força de gravidade do corpo e é dele que extraio a matéria-prima
para a minha poesia. Por maior que seja minha discordância com seus imperativos
ou meu encanto pelos mundos impossíveis. Fortaleza,
Belo Horizonte, fevereiro/março de 2003
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