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Entrevista de Maria
Esther Maciel a Eduardo Jorge 1. Maria Esther,
gostaria que, em linhas gerais, você falasse de aproximações e distâncias
entre cinema e literatura. Cinema e literatura são dois universos distintos, cada um com
sua linguagem específica. No entanto, compartilham algumas afinidades
intrínsecas e nutrem-se reciprocamente. Se, por um lado, o cinema, desde o
seu surgimento, buscou nos textos literários muitas de suas estratégias
narrativas e poéticas, por outro, a literatura moderna nunca deixou de incorporar em sua linguagem vários recursos
cinematográficos. Diálogos explícitos e implícitos atravessam e dinamizam o
espaço dessa relação. 2. Em um texto teu,
há um trecho interessante a respeito do cineasta Peter Greenaway como leitor
de Jorge Luis Borges. Existe aí uma relação criadora no cinema baseada numa
relação literária. Peter Greenaway sempre manteve uma relação criativa com a
literatura desde o início de suas atividades como cineasta, pintor e
escritor. Além de escrever praticamente todos os roteiros de seus filmes, os
quais quase sempre escapam aos modelos previsíveis de roteiro para adquirir
feições narrativas, poéticas ou ensaísticas, ele busca diferentes fontes
literárias para o seu trabalho cinematográfico. Filmes como The Falls (no qual o cineasta recria
vários dos embustes autorais e artifícios ficcionais de Borges), Prospero´s Books (uma recriação
barroca e experimental de A Tempestade,
de Shakespeare), TV Dante (uma
delirante releitura contemporânea do Inferno,
de Dante) e O livro de cabeceira
(que tem como ponto de partida um diário com o mesmo título de uma escritora
japonesa do sec. X), têm a literatura como referência principal, mas os
textos que lhes servem de base são aproveitados menos pelo que oferecem em
termos de trama do que pelos seus aspectos visuais, metafóricos e estéticos.
Ou seja, Greenaway busca no texto escrito a materialidade visual, tátil e
sonora das palavras, além da potencialidade que estas têm de deflagrar
sentidos múltiplos e imprevisíveis. Com relação a Borges, pode-se dizer que Greenaway compartilha com
ele várias afinidades: o olhar enciclopédico sobre o mundo, o exercício das classificações
insólitas, o gosto pelo artifício e pelas simetrias, o uso de referências
eruditas, a concepção do universo como uma “Biblioteca de Babel”.
Mas além de Borges, outros escritores incidem de maneira efetiva no cinema
greenawayno, como James Joyce, Lewis Carroll, Italo Calvino, Dante e
Shakespeare. 3. Falando em
Greenaway, no livro que você organizou O
cinema enciclopédico de Peter Greenaway , o próprio cineasta citou que
é difícil para um filme ter o nome livro, e há recorrência em dois filmes: Prospero´s Books e The Pillow
Book. A referência ao objeto livro em um filme modifica a relação
leitor/espectador? Greenaway, em seus ensaios e
entrevistas, costuma criticar a relação servil do cinema para com o modelo
narrativo do romance do século XIX. Para ele, o que se vê quase o tempo todo
nos filmes em circulação é texto ilustrado, do que conclui que a linguagem própria
do cinema ainda não foi suficientemente explorada em suas várias
possibilidades. Com o propósito de mostrar formas alternativas de se lidar
com a literatura e ironizar essa dependência do cinema em relação aos enredos
de livros, ele leva a própria palavra “livro” para os títulos de
alguns de seus filmes, mas subvertendo os métodos convencionais da adaptação
literária. Ou seja, ao invés de se valer dos livros para ilustrar histórias, ele
opta por explorá-los enquanto objetos, em sua explícita materialidade. Não
são poucas as vezes que Greenaway satura a tela com volumes e volumes de
livros, como se dissesse: “o cinema precisa de livros?, aqui
estão...”. Só que ele não oferece aos espectadores o que estes habitualmente
esperam receber dos filmes que fazem dos livros meros provedores de enredos. Isso, sem dúvida, modifica a relação
leitor/espectador. 4. Quais os filmes
importantes que você citaria como fortes referências literárias? A lista é enorme, mas eu citaria alguns de minha preferência: os
filmes de Godard, em geral, são atravessados de citações literárias; os
filmes de Jean Epstein, sobretudo A
queda da casa de Usher, belamente inspirado no conto de Poe; O ano passado em Marienbad e Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais,
ambos roteirizados por escritores; Vida
secas, de Nelson Pereira dos Santos, adaptação primorosa do romance de
Graciliano Ramos; Asas do desejo,
de Wim Wenders, em seus diálogos poéticos com Rilke; Dead Man, de Jim Jarmusch, em suas referências inusitadas a
William Blake; Lavoura arcaica, de
Luiz Fernando de Carvalho, que incorpora a densidade imagética do livro de
Raduan Nassar. E muitos, muitos outros. 5. Existe um ponto
chave, digamos assim, em textos críticos de tua autoria como a questão
enciclopédica, o ato de catalogar, as listas, enfim, as possibilidades de
organização de um fazer artístico, rigor científico ou o fazer cotidiano.
Essas coisas, por acaso, misturam-se, por exemplo, em filmes do Greenaway ou
na obra do Arthur Bispo do Rosário? Isso pode ser considerado um
“método”? Há uma literatura contemporânea que dialoga com essa
questão? Sim. O uso crítico-criativo dos
sistemas de classificação, o gosto pelas listas e inventários, a compulsão
enciclopédica, tudo isso se faz presente na literatura contemporânea. Jorge
Luis Borges, Italo Calvino, Georges Perec, Milorad Pávitch, David Grossman,
Anne Carson, Enrique Vila-Matas,
Gonçalo Tavares, Sebastião Nunes, dentre outros, são autores que compõem essa
linhagem, autores que se valem dos sistemas de classificação/ordenação do mundo
para criarem seus próprios anti-sistemas, os quais desestabilizam a própria
lógica ordenadora que os define. 6. Como autora, você
possui um trabalho chamado O livro
de Zenóbia. Existe uma referência ao próprio livro no objeto, existe
uma reflexão a respeito do livro dentro do livro? Também gostaria de
perguntar a importância desse livro
para a construção de personagem/narrativa? Realmente, ao usar a palavra “livro” no título, eu
quis dar ao objeto livro também um estatuto de personagem em O livro de Zenóbia, além de marcar a
importância da escrita e da leitura para a própria vida de minha
protagonista, Zenóbia. A lista de seus livros preferidos no final do volume
atesta isso. Aliás, construir uma personagem a partir do inventário de seus
livros, leituras, escritos, reminiscências, fragmentos de experiência,
coisas, afetos e sobressaltos não é fácil. Procurei compor uma personagem
convincente, mas que fosse sendo constituída através de traços, imagens,
sensações. Zenóbia, ao contrário das personagens dos romances clássicos, não
se apresenta inteira, completa, bastante: ela vai surgindo aos fragmentos, no
ritmo esgarçado da memória dos que conviveram com ela, dos que souberam (ou
imaginaram) algo de sua vida. Seu cotidiano é feito de miudezas, de coisas
banais. E ela busca extrair disso pequenas epifanias e assombros, levando
tudo isso para o espaço do seu próprio livro. 7. Uma pergunta que
costumo fazer, por conta de pesquisas pessoais a respeito de literatura e
novas tecnologias, enfim, das possibilidades do vídeo-poema, ou para ampliar
mais um pouco da vídeo-arte com a literatura. Há um híbrido em construção,
quais tuas reflexões a respeito dessas produções? Vivemos, hoje, sob o signo da multiplicidade, da confluência entre
as artes e os campos disciplinares. Cabe ao artista contemporâneo estar
atento a isso. O movimento, o trânsito, a abertura à alteridade são as linhas
de força que nos definem. Nesse sentido, creio que as possibilidades do
vídeo-poema são riquíssimas, por se tratar de uma produção híbrida, aberta à
interseção de linguagens e à incorporação criativa das novas tecnologias. 8. Para concluir, o
que a literatura pode ensinar para o cinema e o que o cinema pode ensinar
para a literatura? O que a literatura pode ensinar ao cinema e vice-versa é o que
ambos têm de menos óbvio em suas respectivas linguagens. * |
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