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atualizado em 19-mar-10

Resumo

A representação de crimes na literatura dramatiza, de forma exemplar, a irrupção do mal na experiência humana. Desde os textos religiosos e mitológicos mais antigos, os crimes indicam uma ruptura na ordem social, quer ela tenha sido estabelecida entre os deuses e a humanidade ou entre os próprios seres humanos. Os delitos hediondos de Édipo, que mata o pai e se casa com a mãe, e os de Medéia, que mata os filhos para se vingar do marido, são marcos da literatura criminal no ocidente. Por um lado, a narrativa de assassinatos satisfaz os impulsos homicidas do leitor, mostrando que, por exemplo, a infidelidade conjugal pode ser castigada de maneira atroz, como acontece em Medéia, de Eurípides. Por outro, ao mostrar que todo crime pode ser detectado e punido, como em Édipo,de Sófocles, ela parece indicar que o mal pode ser controlado e derrotado pela razão.

Já na peça de Sófocles se inicia o uso dos temas do enigma e do inquérito na literatura, em busca da resposta para um saber incompleto, quase sempre ligado a uma transgressão que, no caso da obra em questão, se configura tanto política, quanto social, moral e religiosa. A história de Édipo, diz Michel Foucault, “é representativa e, de certa maneira, instauradora de um determinado tipo de relação entre poder e saber, entre poder político e conhecimento, de que nossa civilização ainda não se libertou” (A verdade e as formas jurídicas, p. 24). Entender as partes do enigma, estabelecer as relações entre elas e, por fim, decifrá-lo fariam parte de uma estratégia para conseguir o poder. A intuição de Foucault é correta, pois a Cassandra esquiliana aterrada pelo poder iluminador de Apolo, diante do crime de Tiestes, denuncia, como um cão farejador de sangue, o fedor da casa dos Atridas temível para toda a pólis, e a Medéia euripidiana, zombando das leis civilizadas dos gregos, justifica seu filicídio afirmando que para ela é fácil fazer  filhos: ela conhece os remédios para isso (ÉSQUILO. Agamemnon, v. 1085-1099; EURIPIDIS. Medéia, v. 710-715).

Séculos depois de Sófocles e Eurípides, Poe daria início à ficção de detetive (com a narração dos crimes que antecedem à investigação) e seus subgêneros, importando e adaptando os temas de suspense e detecção da ficção romântica e gótica. Jon Thompson argumenta que “as histórias de detetive de Poe corporificam uma visão específica de conhecimento estruturalmente similar, mas em último caso antitética ao modo de conhecimento que impelia as transformações sociais nas décadas iniciais do século dezenove na América, e que essa concepção de conhecimento torna-se um elemento crucial na ficção de detetive subseqüente” (Fiction, crime, and empire, p. 44). Se Édipo usava as formas judiciais gregas da época, se Eurípides, repetindo Ésquilo, expunha crimes domésticos violentos para escandalizar a pólis e levá-la, pelo escândalo, a acatar as leis e o comportamento civilizado, os detetives de Poe agem a contrapelo da epistemologia contemporânea, se posicionando fora das práticas sociais prevalecentes, ainda que, ao final de suas investigações, reafirmassem o status quo.

De modo inicial, podemos dizer que a literatura criminal se funda na tensão entre o delito e o relato. O crime tende ao segredo, ao silêncio, a certa margem de simulação e dissimulação, à ilusão e à construção de uma mentira. A detecção se constrói como se fora um estudo do texto, revelando as suas estratégias de enunciação. Cabe ao leitor emparelhar-se ao narrador na interpretação das pistas e elaborar uma hipótese que será confirmada (ou não) ao final da busca. Assim, a narrativa policial se desenvolve em dois sentidos: em direção ao passado, quando o crime foi cometido, e em direção ao futuro, quando o enigma será solucionado.

Pode-se notar que há uma analogia de procedimentos metodológicos estabelecida através dos tempos que fez da prática de investigação dos crimes reais uma espécie de hermenêutica: interpretação dos textos e contextos, da ocorrência, dos signos e de seu valor simbólico, do sentido das palavras proferidas pelo incriminado de forma que, aqui como no dito acerca de Menandro, parece que a vida imita a arte.

O problema a ser enfocado neste projeto é o porquê introduzir o crime no espaço ficcional, o qual parece ser um artifício, um exercício para entender os mecanismos que geram possibilidades criminosas. Para tanto, nosso objetivo será levantar a gênese e das funções do delito na ficção. Por “literatura criminal”, entendemos aquela em que ocorre uma infração da ordem, acompanhada ou não de sua descoberta e sua punição, tanto no nível diegético quanto no extradiegético.