ANAIS DO SIMPÓSIO


Este século tem dois anos: a propósito do bicentenário
de Victor Hugo

Sérgio Paulo Rouanet
Academia Brasileira de Letras

Há quase oitenta anos, um Embaixador da França, Alexandre Conty, foi saudado em nossa Academia com um discurso intitulado "Victor Hugo e o Brasil". Em suas palavras, disse o acadêmico Constâncio Alves:

Não é lícito esquecer Victor Hugo, sempre que se fala na amizade da França pelo Brasil. Quem de nós ignora que o nome do Brasil se lê, e não raramente, na obra colossal do grande francês? Foi ele nosso mestre sem rival no correr do romantismo e até depois. Rutilam raios de sua luz na prosa e na poesia de numerosos escritores nossos. Se a sua obra é o assombro, sua vida é o modelo dos homens de letras: é o exemplo inexcedível de inspiração disciplinada pela ordem, da independência ganha pelo trabalho, da poesia ao serviço dos grandes interesses da civilização, do espírito no devotamento heróico do campo de batalha. Mas quem atentar na personalidade de Victor Hugo, na fecundidade do seu trabalho, na perpétua juventude de seu gênio, no poder irradiante do seu espírito, no seu senso da realidade da vida, em suas aspirações de porvir, na exuberância de sua vitalidade, na universalidade de sua simpatia, no seu interesse pelas causas generosas, no seu otimismo robusto, nos seus ideais de tolerância, justiça, fraternidade e paz, há de ver, neste francês prodigioso, a imagem da França imortal.

Tempora mutantur. Hoje exprimiríamos nossa admiração por Hugo com um estilo menos hugoano. No entanto a citação de Constâncio Alves é elucidativa, porque dá uma idéia do clima de francofilia dentro do qual se deu a recepção de Hugo no Brasil.

Essa atitude não foi só uma idiossincrasia brasileira, e sim um fenômeno geral na cultura latino-americana. Ele se manifesta, por exemplo, em Ruben Darío, que escreve em Peregrinaciones: "Meu desejo e meu pensamento foram-me dados pela França; eu seria incapaz de viver se me proibissem de viver em francês".Palavras que encontram eco no uruguaio Horacio Quiroga: "Para nós, pobres desterrados da suprema intelectualidade, a visão de Paris é a nostalgia de um lugar que nunca vimos".São freqüentes os intelectuais que escrevem em francês. É nesse língua que Darío dirige uma invocação quase religiosa à cidade-símbolo da cultura: "Et toi Paris! Magicienne de la Race, / Reine latine, éclaire notre jour obscur". O chileno Huidobro publicou em francês seu primeiro livro de poemas: Horizon carré, em 1917.

Mas no Brasil a admiração pela França foi especialmente entusiástica. No século 19 e primeiras décadas do século 20, víamos tudo pela ótica francesa. Paris nos ensinava a sentir e a pensar. Tudo vinha da França, desde a culinária até a filosofia, desde a comédia de bulevar até o tratado de balística. Vivíamos as crises políticas da França, numa solidariedade que às vezes ia além dos bons sentimentos, como quando os brasileiros fizeram doações de alimentos para os mutilados, órfãos e viúvas da França, na guerra de 1870.

Mas mesmo dentro do clima de veneração pela cultura francesa, a idolatria por Hugo foi excepcional. Não preciso deter-me na recepção de Victor Hugo no Brasil, assunto já amplamente documentado por Antônio Carneiro Leão, em seu livro Victor Hugo no Brasil, e por isso me limito aqui a alguns episódios mais significativos.

O mais prestigioso dos admiradores de Hugo no Brasil foi o próprio Imperador, D. Pedro II. D. Pedro acompanhou todas as etapas da produção de Hugo. Ele tinha um fraco, talvez compreensível num soberano que era parente de todas as cabeças coroadas da Europa, pelos poemas da fase legitimista de Hugo, em que o jovem bem-pensante fazia odes a propósito do assassinato do duque de Berry e da sagração de Carlos X. D. Pedro chegou a traduzir em português um dos poemas dessa fase, Louis XVII, do livro Odes et ballades (1822). Mas sabemos, por sua correspondência, que ele se mantinha atualizado com todas as obras de Hugo, lendo-as assim que eram publicadas.

Se Hugo pôde cativar um imperador letrado, mas que não era escritor de ofício, pode-se imaginar a fascinação que ele exerceu sobre os intelectuais brasileiros.

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