ANAIS DO SIMPÓSIO


Mediações e valor no drama hugoano

Lídia Fachin
Unesp

Com o célebre ensaio que produziu em 1827 à guisa de prefácio de Cromwell, Hugo estabelece as diretrizes daquilo que seria conhecido como drama romântico; trata-se de fato de uma teoria sobre a modernidade do drama, como sublinha Célia Berretini (Hugo, s.d.: 7). Com efeito, com Do grotesco e do sublime o dramaturgo finca as bases da nova produção; com essa espécie de manifesto programático formula, muito antes de M. Bakhtin, uma teoria do grotesco na qual, antes daquele, já se refere a Rabelais (p. 35).

Como afirma Le Clézio (1971: 3), Bakhtin mostra que o fim do período medieval foi um tempo de explosão social, de tentativas de destruição e de exasperação da linguagem; a liberação das massas populares, seu acesso à linguagem e à expressão, o reconhecimento das forças primitivas, o confronto entre a linguagem popular e a linguagem erudita têm, na obra de Rabelais, seu registro mais contundente; tal obra manifesta liberação e cria uma nova linguagem – vocabulário, sistema de imagens, mitos – que é a manifestação do triunfo da realidade. A arte opera assim uma ruptura com as castas e com a cultura oficial porque nasce na realidade popular. Mas a revolução de Rabelais não constitui nem uma luta de classes nem um confronto de vocabulários; ela é, antes de tudo, verbal e literária e consiste num processo de destruição e fecundação da literatura que decorre da proximidade com as festas populares e com a tradição. A grande verdade rabelaisiana consiste na dialética da destruição e do triunfo e não tem como ser revelada pela inteligência e pela cultura oficial, pois constitui a força daquilo que Bakhtin denomina a estética do grotesco, que podemos também chamar de revolução carnavalesca; aliás, os grandes temas carnavalescos exprimem-se por alguns elementos bem precisos e característicos: desmistificação do poder político e religioso, profanação do arbitrário místico e dos sacramentos, e reabilitação instintiva das forças ‘baixas’ da vida: sexualidade, nutrição e defecação; é assim que a inspiração popular e anárquica torna-se vitoriosa.

Para esclarecer os paralelos entre a obra de Bakhtin e as idéias de Hugo – que não são poucos nem fortuitos – será necessário precisar que o carnaval não é um fenômeno literário; é a transposição do carnaval para a literatura que Bakhtin vai denominar carnavalização (Cf. Bakhtine, 1970). Espetáculo sem ribalta, sem separação entre atores e espectadores que comungam no ato carnavalesco, o carnaval não é espetáculo a que se assiste, mas de que se participa. Trata-se de um mundo invertido, às avessas; nele, leis, proibições e restrições ficam suspensas e ocorre uma inversão da ordem hierárquica e de todas as formas de veneração, piedade e etiqueta. O carnaval opera a abolição de todas as distâncias entre os homens substituindo-as por uma atitude carnavalesca especial, isto é, por um contato livre e familiar, um novo modo de relações humanas bem diferente das relações sociohierárquicas que dominam a vida comum. Além disso, o carnaval instaura a excentricidade, categoria especial da percepção de mundo carnavalesca intimamente ligada à do contato familiar. Sobre a familiaridade assenta-se a categoria das mésalliances, isto é, da união de contrários, veio de que Hugo se serve, problematizando as relações entre nobreza e povo; se casamentos não se efetivam, relações mais ou menos próximas ocorrem: Hernani e Doña Sol, Ruy Blas e a Rainha, etc. Com efeito, o carnaval aproxima o sagrado e o profano, o alto e o baixo, o sublime e o insignificante, a sabedoria e a estultice. O carnaval comete profanações, sacrilégios, e assim paródias de textos fazem-se presentes no drama hugoano, ainda que de forma mitigada. Resumindo: as categorias carnavalescas não são idéias abstratas sobre igualdade e liberdade, identidade de contrários, etc.:

Ce sont des pensées rituelles et spectaculaires, concrètement perceptibles et jouées sous la forme de la vie elle-même, des ‘pensées’ qui se sont constituées et ont vécu au cours des siècles dans les larges masses de l’humanité européenne. C’est ce qui leur a permis d’exercer un tel ascendant formel sur la constitution des genres (Bakhtine, 1970: 171).

O que explica também e essencialmente o aparecimento do drama romântico como tal; é nesse sentido que se pode entender que, com o tempo as categorias carnavalescas transpuseram-se para a literatura, principalmente em sua corrente dialógica; daí a evidência do diálogo de mão dupla de Hugo com a tragédia clássica, e de Hugo com as idéias que Bakhtin vai recolher, no século seguinte, a partir da cultura popular na Idade Média e no Renascimento.

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