ANAIS DO SIMPÓSIO


Os miseráveis nos rodapés do Jornal do Comércio:
uma tradução integral e semântica

Ofir Bergemann de Aguiar
UFG

Em 10 de março de 1862, vinte e três dias antes da publicação de Les misérables, na França, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, estampa, no rodapé das suas páginas, o início da tradução brasileira dessa história romanesca elaborada nos moldes do romantismo clássico mas que também antecipa o processo narrativo realista. Cento e trinta e oito edições do periódico – sendo a última datada de 16 de outubro do mesmo ano – se ocuparam dessa longa narrativa que empolgava em virtude dos ingredientes melodramáticos e dos suspenses provocados pela interrupção diária da leitura. Os franceses só começaram a lê-la posteriormente, uma vez que o texto "original" foi publicado, na forma de livro, em dez volumes: os dois primeiros em 3 de abril de 1862, quatro outros em 15 de maio e os quatro restantes em 30 de junho, simultaneamente na França e na Bélgica, pois o autor se encontrava, na época, exilado em Guernesey.

A publicação de Les misérables, na França, foi tardio em relação à impressão dos primeiros seriados franceses. As edições populares já mostravam que os livros eram capazes de competir com os periódicos e provocaram a emancipação daqueles em relação ao folhetim – o que explica o modo de publicação escolhido. Ademais, o autor, sobretudo por razões políticas, não queria o surgimento de sua obra nessa forma, como se depreende da correspondência endereçada a seu editor belga Albert Lacroix, especialmente da carta de 25 de outubro de 1861:

A publicação dos Miseráveis deve ser feita em livro e não em folhetins. Lembre-se de que a eventualidade da publicação em folhetins em um jornal só foi prevista por nós no caso de uma completa liberdade de imprensa e uma oferta mínima de 500.000 fr. tendo por objetivo usar os Miseráveis para a fundação de um novo grande jornal democrático.

[...]

Abaixo de 500.000 francos, nenhuma oferta de jornal pode ser aceita. Ora, os jornais atuais não sendo livres, não podem fazer uma tal oferta (Leuilliot, 1970, p.109, tradução nossa).

Fora da França, contudo, essa forma de publicação foi prevista, conforme comprova o contrato firmado entre Hugo e seu editor, em que consta: "Os editores estão livres para permitir a publicação ou tradução em folhetim nos jornais estrangeiros ou em língua estrangeira" (Leuilliot, 1970: 392, tradução nossa).

A esse respeito, cabe salientar que, efetivamente, houve um contrato para a tradução brasileira do romance, em uma época em que não existiam leis, no Brasil, que assegurassem os direitos autorais dos estrangeiros, e que nem mesmo as que garantiam os dos brasileiros eram aplicadas, conforme discorre Vaz Pinto Coelho (1880, 1881) e comenta Brito Broca (1979b:177). Essa obediência ao direito de propriedade intelectual por parte do editor brasileiro é, muito provavelmente, resultado dos esforços do autor francês e seu editor, que procuraram evitar a pirataria literária da obra (Leuilliot, 1970). No caso de Os miseráveis, firmou-se um contrato especial entre o editor belga e Junius Villeneuve, proprietário do Jornal do Comércio. O primeiro "se obrigou a remeter-nos para aqui, exclusivamente a nós [a editora de Villeneuve], o que foi imprimindo antes de expô-lo à venda em Bruxelas" – palavras que podem ser lidas na primeira página da edição de 10 de março de 1862 do referido periódico e que explicam a precedência do início da leitura.

É interessante notar que o Jornal do Comércio publica a tradução do texto em pauta, sem mencionar a autoria do trabalho. A ausência do nome do tradutor, aliás, não causa espanto no caso dos seriados traduzidos publicados nos jornais brasileiros no século XIX. Coco (1990, v. 1, p. 46), tratando do assunto, pergunta e responde: "Quem traduz? É impossível saber, pois normalmente apenas se indica ‘traduzido do francês’; por vezes acrescido de iniciais". Constituiu prática recorrente no caso de livros, igualmente, e revela a posição marginalizada que esse profissional ocupou, na maior parte do tempo, não só na cultura brasileira, como nas demais.

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