A Fonologia atual e seus níveis de representação

João Veloso
Universidade do Porto, Portugal

Como citar
[Veloso, João. 2022. A Fonologia Atual e seus Níveis de Representação. In: Verbetes LBASS. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/lbass/.] 

 

PRINCIPAIS ABREVIATURAS E CONVENÇÕES:
℘ : precedência imediata 
√: Raiz ou radical morfológico
. : fronteira silábica
/ xxx / : xxx é uma representação fonológica
[xxx] : xxx é uma realização fonética 
{ xyz } : num plano puramente teórico, x y z são equivalentes entre si
< xxx > : xxx é uma representação ortográfica
1ªp.sg : 1ª pessoa do singular
Rad : Radical
VT : Vogal Temática
σ : sílaba
ω : palavra (prosódica)

 

De acordo com a generalidade dos modelos fonológicos das últimas décadas (que brevemente resumiremos no Quadro 1, no final deste verbete), na representação fonológica teríamos então de considerar pelo menos três níveis:

- o nível linear/segmental (formado pela sucessão de consoantes e vogais alinhadas ao longo de uma só fiada segmental);

- o nível de todas as unidades de extensão inferior ao segmento, comummente referido como nível autossegmental;

- o nível em que encontramos o resultado do agrupamento/combinação de segmentos em unidades de maior extensão e complexidade – o nível suprassegmental ou prosódico.

Em A, B e C seguintes, partindo de uma possível descrição fonológica da forma verbal refiro do português, tentaremos sublinhar o que de mais importante poderíamos notar na explicitação de cada um desses níveis.

A. No nível puramente segmental, encontraremos o alinhamento dos segmentos sucessivos que formam a “melodia” da palavra: |[R]℘[_]℘[f]℘[i]℘[_]℘[u]| (os segmentos aqui indicados são os que correspondem, grosso modo, à produção fonética mais corrente desta forma nos dialetos europeus do português);

B. No nível autossegmental, serão consideradas as propriedades de segmentos que, em quadros teóricos como a Fonologia Autossegmental (Goldsmith 1990) ou a Geometria de Traços (Clements 1985; Clements & Hume 1995), são entendidas como verdadeiras unidades fonológicas e não apenas como atributos de unidades. Cabem neste nível, entre outros, os traços, unidades abstratas não diretamente (ou não necessariamente) dotadas de uma realização fonética discreta e concorrendo em simultâneo para a configuração de um dado segmento (Roman Jakobson, por esta razão, compara estes traços a notas de um acorde musical – Jakobson 1962: 420). A altura da vogal temática suprimida de refiro, não sendo afetada por esse apagamento e indo ancorar-se na última vogal do radical da forma verbal, em articulação com todo o processo gramatical flexional e causando a elevação de /E/ para [i], tal como esquematizado em (2), ilustra a existência deste nível e o funcionamento autónomo das unidades que lhe pertencem. Em (2), o nível dos segmentos (linha superior) e o nível dos autossegmentos (linha inferior, em que se faz menção apenas ao traço de altura) poderiam ser equiparados às diversas linhas melódicas (uma por cada instrumento/naipe de orquestra) encontradas numa partitura sinfónica, contribuindo para a sua estrutura polifónica e harmónica.

 

(2) Funcionamento autossegmental do traço de altura da vogal temática dos verbos de 3ª conjugação do português

 

 

C. No nível suprassegmental ou prosódico, os segmentos agrupam-se em unidades sucessivamente mais extensas e mais complexas, como as sílabas. É neste nível também que se estabelecem relações de proeminência relativa que individualizam, ao nível da palavra flexionada, uma sílaba mais proeminente do que todas as restantes (a “sílaba tónica”, de acordo com a designação mais tradicional), conforme pretendemos simplificadamente exemplificar em (3), em que os diversos níveis, uma vez mais, poderiam ser comparados às diversas linhas de uma partitura de orquestra.

 

(3) Organização prosódica da forma verbal flexionada refiro (português)

     

 

É fundamentalmente na aceitação de vários níveis fonológicos que se situam os modelos multilineares, que aqui trazemos sobretudo para ilustrar um ponto de vista essencial da fonologia moderna: os fonemas ou segmentos sucessivamente concatenados não são as únicas unidades nem os únicos objetos fonológicos. Ao conjunto destes últimos pertencem unidades menores e maiores do que o segmento, como, respetivamente, o traço distintivo e a sílaba (entre muitos outros), cada qual pertencente a um nível ontológico e epistemológico diferenciado. No todo, o estudo da fonologia de uma língua consiste na identificação, na caracterização, na descrição e na explicação de todos os objetos fonológicos encontrados em todos estes níveis e dos processos fonológicos (como, p. ex., a atribuição do acento principal de palavra) que neles operam.

 

Observações finais

Terminaremos estas notas com dois resumos principais dos conteúdos anteriormente expostos: primeiramente, faremos uma pequena síntese de algumas características que contribuem para o estabelecimento da fonologia como uma disciplina gramatical individualizada; em segundo lugar, e para finalizar, reuniremos um pequeno inventário das diversas unidades fonológicas contempladas por diversas correntes do pensamento fonológico, explicitando alguns modelos teóricos que se distinguem justamente pela sua focalização num determinado nível.

Assim, relembramos neste momento que a fonologia, aproximando-se mais da morfologia e da sintaxe do que da fonética, é uma disciplina que trata de objetos gramaticais. Como todos os objetos gramaticais, os objetos fonológicos:

- são definidos e têm comportamentos específicos no âmbito da organização formal/estrutural de um dado sistema linguístico (o que é válido na fonologia do português não é obrigatoriamente válido na fonologia de outra língua: a harmonização vocálica ou a dispersão de /l/ em [l]-ataque e [w]-coda nos moldes referidos neste texto são fenómenos específicos do português e regidos pela estrutura fonológica própria desta língua);

- têm uma natureza abstrata e teórica que é estudada a partir da observação do seu funcionamento e da sua motivação linguística, num nível que ultrapassa a mera caracterização física dos objetos fonéticos que os realizam.

 

Após um período inicial em que a fonologia se concentrou quase exclusivamente na determinação dos inventários segmentais das línguas e na descrição das relações entre fonemas e do comportamento dos fonemas na organização dos sistemas linguísticos, a descrição fonológica foi enriquecida através, nomeadamente, da admissão de unidades e níveis fonológicos que não se esgotam na sucessão linear de consoantes e vogais. De uma forma relativamente simplificada, esses níveis são, principalmente, três: o nível segmental, o nível autossegmental e o nível suprassegmental/prosódico.

No quadro seguinte, com o qual damos por concluída esta apresentação, tentamos incorporar em cada um destes níveis as diversas unidades e processos fonológicos encontrados em cada qual, fazendo-lhes corresponder também alguns dos principais modelos teórico-descritivos disponíveis ou alguns trabalhos particularmente representativos que se centram precisamente no estudo das unidades e dos fenómenos fonológicos que têm cabimento em cada nível.

A respeito dos modelos teóricos e dos conjuntos de publicações que são apresentados no quadro, torna-se necessário sublinhar as seguintes reservas:

- por um lado, entendemos que num verbete introdutório como este não teria tido muito cabimento entrar, no corpo da própria exposição, em grandes detalhes sobre as principais propostas de cada um ou sobre os pontos de divergência e convergência entre eles; a sua menção neste ponto final da apresentação visa somente uma contextualização geral e uma familiarização do leitor, que, em caso de maior interesse, poderá aprofundar ulteriormente a informação aqui sintetizada; na identificação dos autores e dos títulos mencionados no quadro, optámos por referir de forma não exaustiva os trabalhos mais influentes no estabelecimento epistemológico dos quadros teóricos contemplados, salvaguardando aqui que essas indicações são completadas por ampla bibliografia de natureza teórica e/ou que os aplica à descrição de línguas concretas (entre as quais, naturalmente, o português);

- por outro lado, assumimos que, em certos casos pelo menos, é bastante redutor fazer corresponder as escolas de pensamento fonológico mencionadas ao estudo específico de um só nível, unidade ou processo fonológico: a fonologia lexical, p. ex., debruça-se sobre inúmeros factos da organização fonológica da língua dispersos pelo nível segmental, pelo nível autossegmental e pelo nível prosódico (p. ex., quando discute o lugar da silabificação no processo derivacional – cf., para o português, Mateus & Andrade 2000: 59 ss.). Na estrutura dada ao quadro, tentámos identificar para cada nível fonológico considerado alguns autores e correntes mais focalizados na sua descrição, o que não deve ser lido de forma muito restritiva na medida em que nos textos citados poderemos encontrar análises referentes a outros níveis fonológicos também. Reservámos a última coluna para a fonologia lexical, que exemplifica, conforme referimos neste mesmo parágrafo, uma abordagem dificilmente aprisionável dentro de um só de tais níveis.

Finalmente, e ainda a respeito do Quadro 1, gostaríamos também de ressalvar que o inventário de unidades e de níveis que ele contempla não é exaustivo. Devido novamente ao carácter introdutório destas notas, optámos por dar uma informação parcial e incompleta da multiplicidade de objetos fonológicos atualmente contemplados pela investigação fonológica; os que ficam aqui registados poderão servir, tal como a enumeração de um número relativamente restrito de modelos teóricos, como estímulo para a busca de informação complementar noutras fontes.

 

Quadro 1. Síntese reduzida dos principais objetos de estudo fonológico repartidos pelos níveis autossegmental, segmental e prosódico e referência aos principais modelos teóricos que os descrevem

 

REFERÊNCIAS

Backley, P. 2011. An Introduction to Element Theory. Edinburgh: Edinburgh University Press.

Beckman, M. E.; Venditti, J. 2014. Intonation. In: J. A. Goldsmith et al. (Eds.). The Handbook of Phonological Theory. 2nd ed. Malden MA: Wiley Blackwell, 485-532.

Blevins, J. 1995. The Syllable in Phonological Theory. In: J. A. Goldsmith (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge MA: Blackwell, 206-244.

Booij, G. 1988. On the relation between lexical and prosodic phonology. Papers from the 1987 Cortona Phonology Meeting. Torino: Rosenberg & Selier, 63-75.

Booij, G. 1997. Non-Derivational Phonology Meets Lexical Phonology. In: I. Roca (Ed.). Derivations and Constraints in Phonology. Oxford: Clarendon Press, 261-288.

Booij, G. 2000. The phonology-morphology interface. In: L. Cheng, R. Sybesma (Eds.). The First Glot International State-of-the-Article Book. The Latest in Linguistics. Berlin: Mouton de Gruyter, 287-306.

Brandão de Carvalho, J. 2011. Contrastive hierarchies, private features, and Portuguese vowels. Linguística. 6(1): 51-66.

Brandão de Carvalho, J. 2014. C/V interactions in Strict CV. In: S. Bendjaballah et al. (Eds.). The form of structure, the structure of form. Essays in honor of Jean Lowenstamm. Amsterdam: John Benjamins, 123-138.

Chomsky, N.; Halle, M. 1968. The Sound Pattern of English. New York: Harper & Row.

Clements, G. N. 1985. The geometry of phonological features. Phonology Yearbook. 2: 225-252. 

Clements, G. N.; Hume, E. V. 1995. The internal organization of speech sounds. In: J. Goldsmith (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge MA: Blackwell, 245-306.

Dresher, B. E. 2009.  The contrastive hierarchy in phonology. Cambridge: Cambridge University Press.

Dresher, B. E. 2011. The Phoneme. In: M. Oostendorp et al. (Eds.). The Blackwell Companion to Phonology. Oxford: Wiley, 1, 241-266.

Goldsmith, J. 1990. Autosegmental and Metrical Phonology. Oxford: Blackwell.

Goldsmith, J. 2014. The Syllable.  In: J. A. Goldsmith et al. (Eds.). The Handbook of Phonological Theory. 2nd ed. Malden MA: Wiley Blackwell, 164-196.

Gordon, M. 2014. Stress Systems. In: J. A. Goldsmith et al. (Eds.). The Handbook of Phonological Theory. 2nd ed. Malden MA: Wiley Blackwell, 141-163.

Halle, M.; Idsardi, W. 1995. General Properties of Stress and Metrical Structure. In: J. A. Goldsmith (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge MA: Blackwell, 403-443.

Hayes, B. 1989. The prosodic hierarchy in meter. In: P. Kiparsky, G. Youmans (Eds.). Rhythm and meter. Orlando FL: Academic Press, 201-260.

Hayes, B. 1995. Metrical Stress Theory: Principles and Case Studies. Chicago: The University of Chicago Press.

Inkelas, S. 2014. The Interaction Between Morphology and Phonology. In: J. A. Goldsmith et al. (Eds.). The Handbook of Phonological Theory. 2nd ed. Malden MA: Wiley Blackwell, 68-102.

Jakobson, R. 1962. Selected Writings. I. Phonological Studies. The Hague: Mouton.

Kaisse, E. M.; Shaw, P. A. 1985. On the theory of Lexical Phonology. Phonology Yearbook. 2: 1-30.

Kaye, J.; Lowenstamm, J.; Vergnaud, J.-R. 1985. The internal structure of phonological elements: a theory of charm and government. Phonology Yearbook. 2: 305-328.

Kaye, J.; Lowenstamm, J.; Vergnaud, J.-R. 1990. Constituent Structure and Government in Phonology. Phonology. 7(2): 193-231.

Kiparsky, P. 1982. From Cyclic to Lexical Phonology. In: H. Van Der Hulst, N. Smith. (Eds.). The structure of phonological representations. Dordrecht: Foris, I, 131-175.

Kiparsky, P. 1985. Some Consequences of Lexical Phonology. Phonology Yearbook. 2: 85-138.

Ladd, R. 2012. Intonational Phonology. 2nd ed. Cambridge: Cambridge University Press.

Liberman, M.; Prince, A. 1977. On stress and linguistic rhythm. Linguistic Inquiry. 8: 249–336.

Martinet, A. 1960. Eléments de Linguistique Générale. Paris: Armand Colin.

Mateus, M. H.; Andrade, E. 2000. The Phonology of Portuguese. Oxford: Oxford University Press.

Mohanan, K. P. 1986. The Theory of Lexical Phonology. Dordrecht: Reidel.

Mohanan, K. P. 1995. The Organization of Grammar. In: J. A. Goldsmith (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge MA: Blackwell, 24-69.

Nespor, M.: Vogel, I. 2007. Prosodic phonology. With a new foreword.  Berlin: Mouton de Gruyter.

Pierrehumbert, J. 1988. The Phonology and Phonetics of English Intonation. Bloomington IN: Indiana University Linguistics Club.

Selkirk, E. O. 1980. On prosodic structure and its relation to syntactic structure. Bloomington IN: Indiana University Linguistics Club.

Selkirk, E. O. 1984. Phonology and syntax: The relation between sound and structure. Cambridge MA:

Troubetzkoy, N. S. 1939. Grundzüge der Phonologie. Trad. fr. de J. Cantineau. Principes de phonologie. Paris: Klincksieck, 1970.

Van Der Hulst, H. 2014. Dependency-based Phonologies. In: J. A. Goldsmith et al. (Eds.). The Handbook of Phonological Theory. 2nd ed. Malden MA: Wiley Blackwell, 533-570.

Wetzels, W. L 1997. The lexical representation of nasality in Brazilian Portuguese. Probus. 9(2): 203-232.

 

 

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Antônio Carlos, 6627 Pampulha - Belo Horizonte/MG - CEP: 31270-901
(31) 3409-5101 dir@letras.ufmg.br

 

© Copyright 2024 - Setor de Tecnologia da Informação - Faculdade de Letras - UFMG