ORFEU E EURÍDICE, UMA LONGA JORNADA

 

 

Eu sou Orfeu... Mas quem sou eu? Eurídice...
Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição

 

Receber prêmios como a Palma de Ouro, em Cannes, ou o Oscar de melhor filme estrangeiro, em Hollywood, são, sem dúvida, méritos que tornam um filme reconhecido, ou, pelo menos, famoso. Quando Orphée Noir (Orfeu do Carnaval, 1959), de Marcel Camus, recebeu, dentre outros, esses dois prêmios, além da visibilidade dada ao diretor e atores, bem como ao texto teatral de Vinicius de Moraes (já premiado no Brasil em 1954) e à sua música, parceria com Tom Jobim e Luiz Bonfá, o filme trouxe à luz mais uma das transposições do mito grego para a contemporaneidade, em especial para os meados do século do cinema.

Orfeu é um dos personagens da tradição ocidental mais famosos já na antiguidade, seja por sua história de amor malfadado, por sua relação com a música ou por sua katábasis e ensinamentos que teria adquirido nessa descida ao mundo dos mortos, úteis a todos os vivos desejosos de ser iniciados no melhor caminho para a viagem sem volta. Nesse último caso, como disse Fernado Pessoa, “a lenda se escorre a entrar na realidade”, se lembrarmos que esse notável trácio deu origem ao orfismo, movimento religioso que surge no século VI a.C. e questiona a religião oficial da pólis grega, em que a comunicação entre homens e deuses se dá pelo sacrifício sangrento. 

Retornando ao cenário brasileiro, é oportuno notar que, na mesma década em que peça e filme surgiram, o nome do lendário personagem grego apareceu no título do poema épico de Jorge de Lima, A invenção de Orfeu (1952). Nas palavras de Fábio Souza (um dos palestrantes nestas Jornadas), no posfácio da recente reedição do poema, em 12 mil versos alternam-se “história e mito, harmonia lograda e estilhaços explosivos, forma acabada e fluxo metamórfico, tradição clássica e ruptura moderna, monumento e lamento” (p. 641).

Os textos e filmes citados acima – ponto de partida para a concepção destas jornadas – são ainda hoje objeto de análise e interpretação, sob várias perspectivas. Mesmo fora do âmbito acadêmico, há referências que nos surpreendem pelo inusitado de sua ocorrência, como é o caso de uma passagem da autobiografia de Barack Obama. Ainda que breve, ela mostra como o jovem estudante da Columbia descobriu Black Orpheus pelos olhos de sua mãe, que o levou para assistir ao primeiro filme estrangeiro que ela havia visto, e que a encantara tanto. O episódio é interessante por mostrar como a recepção de um filme pode ser tão diferente entre duas pessoas, mas, ao mesmo tempo, possibilitar uma interpretação do olhar do outro. Embora sem muito interesse pela releitura do mito grego na exótica paisagem carioca, ao ver o olhar melancólico de sua mãe, “iluminado pelo brilho azul da tela”, Obama viu, também, uma “janela para o coração” da jovem do Kansas que partiu para o Havaí e uma explicação para o encontro dela com seu futuro pai. Se a conclusão de Obama sobre o episódio é um tanto desalentadora – “The emotions between the races could never be pure; even love was tarnished by the desire to find in the other some element that was missing in us.” (Dreams from My Father, p. 123-4, 4a ed.) –, ela não deixa de mostrar o poder da sétima arte na produção de empatia, e mesmo o impacto do mito nas histórias de vidas privadas. 

Narrativas sobre um heroísmo trágico, um amor perdido ou um conhecimento não mais desvelado atraem-nos sobremaneira, e há de se investigar, em cada caso da recepção do mito, como e por que ele foi retomado. De releituras que se tornaram quase canônicas, como as de Virgílio (Geórgicas) e Ovídio (Metamorfoses), às primeiras óperas da história da música, de Peri, Caccini, Monteverdi; de reapropriações do tema do sacrifício de Orfeu pelo cristianismo primitivo e Calderón à interpretação alegórica de Francis Bacon; ou da leitura poética mais subjetivista e religiosa de Rilke àquelas que dão a Eurídice certo protagonismo (seja resignado ou rebelde), como na poesia de Hilda Doolittle, Edith Sitwell e no teatro de Claude Magris, há uma pletora de textos e imagens. Alguns deles serão discutidos nestas Jornadas, que, priorizando os textos de Vinicius e Jorge de Lima e a produção audiovisual (da cerâmica grega aos fotogramas modernos), não deixarão de dialogar, direta ou indiretamente, com toda essa tradição que herdamos e reconstruímos.  Destarte, que as Jornadas possam contribuir para a compreensão da persistência do mito, da complexidade de sua recepção e da vitalidade de seus personagens e do tema do orfismo, seja na perspectiva filosófica, histórica ou literária.

 “...Mas quem sou eu?”  Cremos que cabe a cada um tentar responder a pergunta que Orfeu/Vinicius faz, se é que reposta é o que queremos; talvez, neste momento, baste o prazer da jornada e da companhia de tantos que uma vez a fizeram e dos que, agora,  pelo deleite – e risco! – de ver e ouvir, também desejam fazê-la. 

 

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