Relíquias da Cultura Nacional

Não fossem as duas medalhas toscas penduradas no pesco­ço, o corpo do malandro Zé Menino teria sido jogado no canal do Mangue. Seria um mero incidente de carnaval. O carro alegórico que o atropelou tinha proporções gigantes­cas, sendo o mais luxuoso que o Grêmio Recreativo Acadê­micos Imperiais trouxera naquele ano para o desfile. Quem sentiria falta do velho Menino?

Mais da metade da escola já desfilava sob as luzes da Pas­sarela do Samba quando ocorreu o imprevisto. É claro que, no momento exato em que o carro passou por cima dele, ninguém, ou quase ninguém, percebeu. Só viram o corpo do sujeito quando uma das rodas laterais emperrou. "Tira esse velho bêbado daí, tá tirando o rumo do carro, Anda rápido com isso!", gesticulava, aos gritos, o diretor de har­monia. Realmente, Menino atrapalhou o mais belo carro do Acadêmicos Imperiais, que naquele ano trazia o enredo Relíquias da Cultura Nacional.

O mastodonte vinha fechando a apresentação da escola, à frente apenas da ala da diretoria, e reproduzia um antigo botequim, com os tradicionais azulejos em preto e branco cobrindo as paredes. O palco móvel tinha na boca de cena mesinhas de madeira com tampos imitando mármore e, ao fundo, um grande balcão de boteco, com o boneco de um galego de grossos bigodes diante de uma caixa registradora, daquelas do tempo do Onça.

Mas o grande show estava nas mesinhas do bar. Esculpi­das em gesso, as réplicas dos velhos sambistas eram perfeitas. Num encontro de bambas inimaginável, confraternizavam entre copos de cerveja e cachaça, com seus violões, flautas e pandeiros, figuras como Nelson Cavaquinho e Noel Rosa la­deando Ismael Silva. Logo a seguir, se podia ver Pixinguinha fazendo uma firula na flauta, para deleite de Donga, Bide e Cartola. Geraldo Pereira, lá atrás, vinha cochichando alguma coisa no ouvido de Sinhô, enquanto Carlos Cachaça, alheio a tudo, erguia um pequenino copo no ar, fazendo jus ao nome.

O problema é que o velho preto achou de ter troço ali, na concentração, bem no meio da pista da Presidente Vargas, a alguns metros da entrada da Marquês de Sapucaí. O aciden­te, segundo um dos empurradores do carro, ocorreu quan­do o homem pulou na frente do Mestres do Samba – esse era o nome do carro – e ficou estupefato, admirado com o que via. Segundo o rapaz, ele já estava caído quando foi atropelado. Talvez, tivesse sofrido um infarto. Mas, naquele momento, nada parecia interessar ao diretor de harmonia. A escola tinha que passar e, é claro, com a sua principal alegoria. "Joga esse velho no Mangue", ele ordenou a dois operários da escola.

Entre mulatas esculturais desnudas, corpos suados e alas de malandros estilizados, um repórter iniciante corria de um lado para o outro com sua caneta e seu bloquinho nas mãos. Ele ficou sabendo lá na frente que o Mestres do Samba havia atropelado gravemente "uma passista". Veio correndo em direção à concentração entre as alas, seria sua chance de ter um furo de reportagem. Chegou a ser agarrado por um dos seguranças da escola, mas conseguiu se desvencilhar e continuou correndo. Chegando à outra ponta, viu o carro majestoso se preparando para entrar na Avenida. Na ala dos diretores, logo atrás, procuraram minimizar o caso. Já esta­ria tudo resolvido, "o importante agora é o carnaval", dizia um deles.

No entanto, o repórter não se convenceu. Como quem não quer nada, seguiu em direção à área da armação. A Aca­dêmicos Imperiais, enfim, estava por inteiro na pista, mas seu espaço na concentração ainda não havia sido ocupado pela escola seguinte. Ouviu, então, um vendedor de cerveja comentar com um freguês, ao abrir o isopor para pegar uma lata, algo como: "Ninguém respeita mais ninguém. Vê só, foram jogar o pobre coitado no Mangue, como lixo".

O jovem escriba pediu uma gelada e passou a apurar de­talhes sobre o "lixo" do qual o ambulante falava. Confir­mou que não se tratava de uma passista, mas de um velho que se colocou diante do carro gigante. "Passaram com o corpo ainda agora para lá". Essa foi a senha para ele largar um punhado de moedas contadas sobre o isopor e correr no rastro do cadáver.

À beira do canal do Mangue destacava-se uma confusão maior do que o repórter poderia supor, com um bate-bo­ca geral entre seguranças oficiais e não oficiais. O foca se aproximou e finalmente viu no meio do bolo o corpo do homem jogado ao chão, pronto para ser lançado no canal fétido que rasga a avenida Presidente Vargas.

Quem impediu tudo foi uma velha baiana vendedora de cocada, que chamou um guarda e denunciou o descaso com o corpo do homem. Mas, ainda assim, o fato seria consu­mado, sobretudo porque o guardinha não tinha autoridade alguma. A ordem, conforme os seguranças da escola disse­ram, era apagar a história do atropelamento. "O Homem não quer problemas com os homens", teria dito um deles.

A velha, percebendo que o jovem curioso não era sambis­ta nem segurança, mas alguém de fora interessado no caso, o chamou num canto.

– Ele foi um grande compositor no passado, muito respei­tado no Estácio, era da minha Unidos de São Carlos. Você já ouviu falar na pioneira Deixa Falar? Ele foi um dos fundadores – disse a ambulante quase sussurrando no ouvido do rapaz. E mostrou que sabia mais do cadáver do que se supunha:

– Abre a camisa dele; ele carrega no peito um pouco de quem ele foi.

Apesar de não entender muito aquela prosa, o repórter pediu licença aos homens que discutiam em torno do cadá­ver e fez o que a velha mandou.

Havia ali duas medalhas: uma com o símbolo do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, em 1964, onde se lia "Menção Honrosa - Ala dos Compositores", e a outra cunhada com uma gravação rudimentar da Escola de Samba Unidos de São Carlos, de 1965, com o brasão da Cidade Ma­ravilhosa. Não se sabia exatamente a origem das medalhas ou a sua importância verdadeira. Mas, seja como for, servi­ram de pretexto para o repórter blefar.

– O velho tem condecoração da Prefeitura da Cidade. Se não respeitarem o presunto, vocês vão se ferrar! – disse para os leões de chácara.

Boêmio de larga reputação, Zé Menino aprendeu a com­por nas rodas e batucadas do Largo da Prainha, da Pedra do Sal e da Praça XI - berços do samba carioca. Como compo­sitor, jamais registrou qualquer das suas músicas, já que não considerava esse o seu principal ofício. Aliás, seu principal ofício sempre fora uma incógnita. Improvisou jongos com João da Baiana, virou noites com Geraldo Pereira, cantaro­lou com Ismael, flertou com Pixinguinha. Cansou de correr da polícia por causa de batucadas, não só nos botecos como nas giras nos terreiros.

– No fundo, no fundo, ele se viu no carro, junto com os velhos amigos. Conviveu com a maioria deles. Ele era um deles – disse a velha ambulante para o repórter, que perce­bia a grande história que tinha nas mãos. Mas quem estaria interessado?

O fotógrafo da mesma revista para a qual o foca escrevia o encontrou ali, diante da velha.

– Pô, você sumiu. Eu fiz a foto da madrinha de bateria, você tem que pegar umas palavras dela. Ela tá arrasando. Pode dar capa!

O blefe sobre a importância do presunto fizera efeito, e os seguranças resolveram voltar para o desfile. Aos poucos, a atenção de todos retornava para a Avenida. Atônito, o re­pórter olhava o cadáver de Zé Menino, já sem um dos sa­patos e sujo, na beira do Mangue. Mas, a cabeça do jovem estava longe, muito longe dali. O Grêmio Recreativo Acadêmicos Imperiais começava a levantar as arquibancadas. As relíquias do Brasil que a esco­la levara para a passarela emocionavam a todos. O prefeito da cidade, após beijar a bandeira da agremiação, desmanchava-se em lágrimas diante do carro Mestres do Samba. E discursava de forma eloquente para as câmeras de televisão:

– Foram eles que escreveram a nossa história, por isso nós os reverenciamos. São as relíquias da cultura nacional, são os nossos mestres! Os donos do carnaval!

(Circo de pulgas, 2014, p. 33-38).

 

 

Festa de Preto-velho

Eu calculo as horas, somo o tempo, conto a vida. Do alto dos meus 80 anos, nada mais me surpreende, mas tudo me diverte. Sou um preto-velho, e por isso sou considerado por muitos um sábio. Mas não é bem assim. A verdade é que eu sei muito pouco. Aprendi no curto tempo de escola e com a vida duas ou três coisas, e olhe lá.

Hoje tem festa no Terreiro de Caridade João de Aruanda, bem aqui em frente. É 13 de maio, Dia de Preto-Velho. Há um desfile de carros e gente bacana na frente do templo. A casa tem fachada de mármore e uma pequena cachoeira artificial no jardim, mas houve um tempo em que nem pin­tura o terreiro tinha. Agora, o nome João de Aruanda brilha numa moldura em neon, dá gosto de ver.

O povo não para de chegar. Uma mulher alta, ruiva, tra­jando um longo vestido branco, carrega nas mãos uma bra­çada de rosas da mesma cor. Ela aguarda diante da Cacho­eira de Oxum o marido que ainda procura uma vaga para o carro espaçoso. Parece que está com dificuldades. Ao mes­mo tempo, chega uma van que descarrega oito pessoas de uma só vez para a festa, que deverá varar a madrugada. Nós, os preto-velhos, merecemos.

O cheiro do defumador domina as imediações e assim fi­cará por um bom tempo, sendo substituído mais tarde pela fumaça espessa de mais de uma dezena de cachimbos ace­sos. Eu gosto da cantoria e canto alto os pontos mais boni­tos: "Oxalá, meu pai, tem pena de nós, tem dó, a volta do mundo é grande, teu poder é ainda maior". Vejo mais afli­ção do que esperança nos olhos de toda aquela gente bem-ves­tida. O que esse velho poderia fazer por elas?

É curioso ver aquelas madames e aqueles senhores de pa­letó comerem a feijoada. Assim como no tempo da senzala, não tem garfo, não tem colher, não tem faca. Come-se com as mãos. Eles não sabem fazer aquele bolinho com a farinha. A maioria prefere nem comer. Esse tipo de coisa me diverte. Muitas daquelas pessoas eu já conheço de vista, imagino os seus embaraços. Aperto os olhos por causa da miopia – a visão do velho está cansada – e revejo o vereador de tantas eleições. Está ali em busca de mais um mandato.

As saias branquinhas das vovós incorporadas rodopiam no terreiro ao ritmo dos atabaques. Os vovôs também dan­çam, enquanto o povo bate palmas cadenciadas. É uma fes­ta bonita. Eu me divirto em assistir à jovem russinha dan­çando como uma velhinha. Dizem que é neta de general. Ano passado doou alta soma de dinheiro para a casa. O zím­bo foi suficiente para que fosse concluída a obra na sede campestre, na Costa Verde. Cê sabe, alguns trabalhos têm que ser arriados na mata...

É bonito ver toda aquela gente que chega e que sai se ajoe­lhar em frente à imagem do preto-velho, logo na entrada do terreiro, ao lado da Cachoeira de Oxum. Como eu fico na direção da porta, cá de fora olho pra ele e ele lá de dentro olha pra mim cá fora. Não precisamos dizer nada. Na verda­de, um é a cara do outro, parece até um espelho: carapinha branca, roupa puída, pés descalços, o pito numa das mãos. Somos filhos da África.

Todos se benzem diante do meu irmão; pedem licença para entrar e para sair. Alguns jogam até dinheiro. E ele me olha nos olhos, imóvel, me fitando o tempo todo. Eu sei que se ele pudesse se levantaria dali e me daria o coité com café que acabaram de colocar à sua frente. Mas, que impor­ta? A noite está fria, mas eu ainda tenho folhas de jornal para me cobrir. A marquise é grande, me protege do sereno. Por isso, não saio desse canto por nada. A rua é minha casa. Vou dormir ao som de atabaques e de uma boa cantoria. Afinal, é Dia de Preto-Velho. Tudo me diverte.

(Circo de pulgas, 2014, p. 39-41).

Como nascem os mortos

Marujo empurrou com cuidado a porta de ferro, que já esta­va semiaberta. Um rastro de sangue no chão de pedra con­firmava sua suspeita: os garotos se refugiaram ali. Meio que pisando em ovos, o homem foi entrando lentamente com o seu cajado no recinto malcheiroso, iluminado apenas por um feixe de luz. Um amontoado de gente começava a se for­mar do lado de fora do velho chafariz de Mestre Valentim, no berço da cidade de São Sebastião.

Com a mesma rapidez que surgiam curiosos por todos os lados, diversas versões sobre o que ocorria circulavam de boca em boca. A primeira delas dava conta de que se trata­vam de assaltantes de banco. Momentos antes houvera um tiroteio entre a polícia e bandidos na avenida Rio Branco.

Com a confusão, os bandidos conseguiram fugir. A infor­mação de que um PM havia morrido na troca de tiros logo foi desmentida. Na verdade, a polícia só apareceu meia hora depois. O tiroteio teria sido com seguranças particulares.

O zum-zum-zum aumentava na medida em que os mi­nutos se passavam e nada acontecia, além do fato de o ve­lho marinheiro ter sido o primeiro a chegar ao local e ter entrado sem receio algum no chafariz, que, mais do que peça histórica, transformou-se ao longo do tempo em abri­go para a população de rua. Transeuntes do Largo do Paço e comerciantes viram quando os meninos chegaram ali. Eram quatro na realidade. Dois tinham sido feridos: uma garota e um garoto, que foram carregados para dentro pelos outros dois, que saíram rapidamente do local e, antes de fugir, avi­saram a Marujo sobre o acontecido.

Senhor dos mares em tempos idos, Marujo, outrora conhe­cido como Almirante, era um negro respeitado entre os me­nores que sobreviviam por ali pedindo trocados, cometendo pequenos furtos, cheirando cola. Apoiado sempre num velho cajado – na verdade um pau de jequitibá talhado –, cochi­lava durante o dia, mas varava as noites sem dormir. Excluí­do dos mares, foi vendedor de peixes da feira da Praça XV e, com o fim do mercado, passou a viver sob as marquises do Arco dos Teles. Mas era nele que os meninos confiavam.

Marujo ouviu sem espanto o relato do garoto maltrapilho e ofegante: "Mira queria uma camisa da Seleção. A gente pegou uma do cesto da loja e saiu correndo. Os seguranças vieram atrás e largaram o dedo na gente. Deixamos os dois lá no barraco da praça. Tá saindo muito sangue", disse o moleque, que, logo em seguida, sumiu entre os carros com o comparsa. O velho levantou com algum esforço e foi ver o que estava acontecendo.

Após entrar no chafariz, o mendigo sumiu no breu da es­curidão. Isso fez com que o burburinho aumentasse entre o povo, que aumentava cada vez mais do lado de fora. As pes­soas não entravam com medo de que os bandidos armados as fizessem de refém. E era isso que acreditavam ter aconte­cido com Marujo. "Fizeram o mendigo de refém", falavam uns aos outros.

Um policial militar de arma em punho foi abrindo cami­nho no meio da multidão e entrou no abrigo. Todos ficaram em silêncio. Minutos depois ele saiu, meio atordoado, com a arma guardada no coldre e as mãos sujas de sangue. Ma­rujo surgiu logo atrás, com um bebê nas mãos. Mira estava grávida, mas antes de morrer entrou num prematuro traba­lho de parto e deu à luz um menino.

O burburinho se desfez rápido, com cada um seguindo para um lado apressadamente. A época era de copa do Mundo, e o Brasil entraria em campo naquela tarde. O Pai do menino também estava morto.

(Circo de pulgas, 2014, p. 71-73).


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