Perfis do Brasil: representações do precário na ficção de Sacolinha

 

Thiago Antônio dos Santos*

Poeta, romancista e contista, Sacolinha integra a geração dos jovens escritores empenhados em trazer para a ficção elementos da cultura negra disseminados nos espaços urbanos da contemporaneidade. Desde o seu primeiro livro, Graduado em Marginalidade, publicado pela Editora Scortecci, em 2005, Ademiro Alves de Souza vem contribuindo para o crescimento intelectual de sua geração ao participar ativamente de diversas revistas, antologias e obras coletivas.

Suas produções mais recentes podem ser vistas nos Cadernos Negros, volumes 28, 29, 30 e 31, e nas narrativas de 85 letras e um disparo, publicado pela Ilustra em 2006 e reeditado em 2007 pela Global. O volume de contos consolida a literatura feita por um escritor que já não pode ser visto apenas como mais uma surpresa. O título do livro sugere a peculiaridade do fluxo poético exigido daqueles que vem circulando intencionalmente na contracorrente do campo literário instituído. A imagem presente na capa exprime a assimilação da velocidade das ruas, tão bem desenvolvida nos contos.

A reflexão sobre o que leu, digeriu, e o que o influenciou, presente logo no primeiro texto do livro, serve ao jovem escritor na explicitação de seus gostos – “Abri o romance do Graciliano Ramos” –, e na revelação das dificuldades existentes na vida da gente da periferia que vive no mundo do “não”: “...e quando estava me entrosando na leitura, o trem chega na estação Tatuapé” (SACOLINHA: 2007, p.19). Desde o inicio do conto, que tem o curioso nome de um prato japonês (Yakissoba), o autor revela o desespero que sentem os que vivem tentando vender seus livros e nada conseguem:

Cheguei cedo naquele dia.
As contas já estavam atrasadas e a geladeira, vazia, há muito vinha pedindo alimento.
Precisava vender no mínimo uns quatro exemplares do meu novo romance.
(SACOLINHA, 2007, p.13).

A constante tentativa de aceitação perpassa todo o texto:

Ensaiei algumas palavras e rumei para o escadão.
Trinta abordagens.
O resultado foi a minha saída de cabeça baixa daquele recinto. E, se elogio fosse dinheiro, sairia dali de bolso cheio. (ibidem, 2007, p.13).

O texto aborda as agruras de um escritor sem público. E nos faz compreender que ainda que o escritor seja capaz de produzir uma literatura múltipla e possuidora de diversos ângulos acerca das experiências humanas, ele não significa nada para muitos que, ao menos aparentemente, têm interesse pela cultura e pela informação:

Passando em frente à segunda universidade, abordo três estudantes. Apenas um deles me dá atenção, enquanto os outros dois se entretém tirando fotos com o celular.
[...]
Uma nova abordagem:
– Licença e boa noite. Podem contar no relógio, não irá passar de um minuto. Eu não quero encher o saco de vocês.
A recepção nada me alegrou, mas continuei:
– Sou o fulano de tal e sou escritor, autor deste romance... (ibidem, 2007, p.14).

Embora haja uma resistente negação presente nas respostas das pessoas – “Nenhum deles dava atenção ao que eu dizia. Um outro desistiu de continuar folheando e deu um gole na cerveja” –, o jovem escritor se mostra apenas momentaneamente desesperado, e consegue se manter tranquilo, sem se exaltar:

Pensei comigo: “Vendas, que vendas?”
Segui cantando: “Ando devagar porque já tive pressa e levo o meu sorriso, porque já sofri demais...” (ibidem, 2007, p.15).

Uma das questões que se levanta aqui é a da tomada de consciência que emerge nas lembranças do homem que parece viver, no limiar das suas produções literárias, uma crise motivada pelo fato de se encontrar fora do contingente de escritores ligados aos setores mais valorizados da cultura local. No entanto, essa problemática, visível em nosso cenário editorial, é capaz de criar nesse mesmo homem um sentimento de respeito por si mesmo e pelo seu sonho. Ela contribui para a exibição de valores que podem ser assimilados em situações como essas, tais como a integridade pelo muito que já foi feito – fruto do desejo de mostrar ao mundo o preço real de sua produção artística:

Tinha que pensar numa nova estratégia; já menti, usei do exagero, aumentei os fatos e nada. Nem no cheque consegui venda.
E a fome a bailar em meu estômago. (ibidem, 2007, p.16).

Nesse ponto do texto, podemos levantar a questão de que apesar da distração causada por um grande número de desejos, impulsos e imagens, a mente do escritor não se afasta da urgência representada pela fome.

O negócio é persistir.
E lá fui eu, rumo aos vários “não”, sentindo o fracasso daquela noite calorenta.
Agora andava devagar, parecia estudar os passos. A minha situação não me deixava avançar como antes. As pessoas que passavam por mim seguravam seus pertences. Comecei a cantar procurando desviar a atenção de tudo: da fome, das pessoas com medo de serem roubadas, da polícia que passava na viatura e me encarava, dos mendigos que se preparavam para dormir e dos “não” constantes. Só não conseguia desviar a atenção de uma coisa: daquele macarrão que os japoneses produziam na beira da calçada. (ibidem, 2007, p.17).

Na medida em que vamos nos aproximando do final do conto, tomamos consciência de que um ser humano que vive em circunstâncias semelhantes às descritas em “Yakissoba” tem uma tarefa dupla: primeiramente é preciso eliminar a fome, para em seguida poder vislumbrar algo melhor:

Num certo momento da minha caminhada comecei a ter ilusões. Via barracas e barracas lotadas de orientais. Esfreguei os olhos e sentei por um instante. Acho que a fome está me deixando louco, preciso de algum alimento urgente.
Levantei e andei sem parar, com a mochila cheia de livros castigando as costas.
[...]
Esse deu para mastigar e amenizar a fome. Até que é bom o macarrão japonês.
Terminei de mastigar e resolvi ir embora. Lá na periferia eu vendo mais livro do que aqui. (ibidem, 2007, p.18).

E é então, no ponto em que uma das problemáticas vividas pelo escritor – a fome, parece tema já resolvido e o personagem pode, por um momento, sentir-se satisfeito, que uma dilacerante realidade intervem. O homem da periferia segue mostrando passo a passo a confusão de um cotidiano injusto em que há sempre uma quantidade enorme de problemas e infelicidades:

Passei meu último bilhete na catraca do metrô. O dinheiro na carteira ó não havia zerado por causa dos 50 centavos de troco do amendoim. Troco que gastei na baldeação no Brás (metrô/trem) comprando um suco feito com água do banheiro feminino. Sei disso porque trabalhei três anos ali e via as mulheres entrarem e saírem do banheiro com baldes de água; além disso, todas as barracas daquela estação não são abastecidas com água encanada.
Sentei na escada, num local onde dava pra ver a chegada do trem. Na hora em que o danado encostar
vou me agarrar à porta, tenho que sentar de qualquer jeito, o meu corpo está dolorido ao extremo.
[...]
O trem chegou. Desci a escada quase quebrando as canelas e fiquei em frente a uma porta aguardando a sua abertura. Odeio fazer isso, mas hoje eu preciso.
Corri, mas só sobrou um banco que é destinado aos velhinhos. Olhei para as cabeças procurando a branquidão dos cabelos. Não vendo nada parecido, sentei-me e disse em pensamento: “Ninguém tasca”.
Dei mais uma olhadela para me certificar. Tudo gente nova; os idosos já estavam sentados. Se entrar algum tiozinho ou tiazinha numa outra estação eu levanto. Não quero encrenca, odeio gente barraqueira, e no trem está cheio delas. Inclusive quando o vagão está lotado e eu estou de pé. Procuro ficar de frente pra porta e de costas pros passageiros. É você se encostar na traseira de alguém e ser acusado de estuprador. Aí, tome porrada. (ibidem, 2007, p.18-19).

Mas, se é verdade que a história é feita pelos homens e mulheres que nela estão presentes, veremos como ainda é possível a um simples cidadão, depois de passar por tantas situações indesejáveis, atribuir a si mesmo um papel social de relevo, contrariando uma visão negativa enraizada em nossa cultura:

Sem grana, e a essa hora, sem ônibus, vou a pé pra casa. No caminho tenho a infelicidade de ser abordado pela polícia. Intimamente dou risada; lá na Paulista eu é que abordava, aqui me abordam.
O policial que olhou dentro da mochila perguntou se eu era livreiro:
– Sou livreiro, editor, escritor, vendedor, modelo da capa do meu livro...
Ele deu risada. Perguntou o que eu fazia àquela hora na rua:
– Estou vindo da labuta. Estava em São Paulo tentando vender algum livro.
– E conseguiu? – perguntou um outro policial.
– Que nada, lá só tem leitor de rótulo de cerveja. (ibidem, 2007, p.20).

O final do conto confirma a disposição de resistência: “Cheguei em casa e me aliviei do peso da mochila [...] O sono está igual galinha sendo cercada no terreiro: vem, não vem”. E o jovem escritor, embora exausto, tem ainda forças para a leitura – “Deito no sofá e volto ao Graciliano Ramos” – até que a realidade e a ficção se confundam no desejo transformado em sonho:

Minutos depois adormeço com o livro em cima da barriga e o pensamento no macarrão da Paulista. (ibidem, 2007, p.21).

A invenção literária de Sacolinha deixa-se impregnar pelos dramas anônimos vividos na periferia da megalópole. Ainda em 85 letras e um disparo, não podemos deixar de afiar nossa sensibilidade ao observarmos com atenção o perfil de um retirante nordestino tão bem traçado em “Sulfato Ferroso”. Nesse pequeno conto, o autor nos surpreende com a história de um capoeirista que, ao despertar do cochilo tirado num trem do metrô de São Paulo, descobre que ali, naquela cidade, solitário e sem visibilidade, não conseguiria viver livre dos tropeços e desilusões:

Despertou do cochilo limpando a saliva que escorria do canto da boca. Lembrou que estava num trem. Teve uma grande surpresa ao perceber que tudo estava escuro e que estava só no vagão.
Levantou e olhou para o outro carro do trem através da janela interna. Não viu ninguém, tudo escuro. Olhou para fora e só aí percebeu que havia dormido demais. (ibidem, 2007, p.105).

O autor confere dignidade às vítimas da desigualdade social. Sua matéria prima é a trajetória do homem que está à margem e vê sua resistência chegar ao fim. Alguém que, desafiando fronteiras territoriais e sociais saíra da Bahia com “25 anos de idade e nunca mais voltara” e agora “com 38 anos [...] se encontra desiludido com a vida. Casou duas vezes, mas não teve sorte...” Sulfato Ferroso, alcunha dada ao capoeirista em sua infância vivida nas ruas e praias de Salvador, se encontra impossibilitado de desenvolver suas qualidades: “os verdadeiros ensinamentos da capoeira e o dendê clássico dos passos e golpes da cultura popular”, e precisa então trabalhar de quase tudo para permanecer na grande cidade:

Em São Paulo fez quase de tudo que se refere a trabalho; pintor, ajudante de pedreiro, panfleteiro, cobrador de lotação, empacotador de supermercado, padeiro, vendedor de porta em porta, e mais uma dezena de profissões que não exigem experiência. (ibidem, 2007, p.106).

E é aqui nesse ponto do texto que Sacolinha bate direto em conceitos consagrados pela sociedade de consumo e, deixando transparecer a criatividade presente nas linguagens da arte urbana, subverte as imposições consagradas pela mídia – dadas como ideais:

Só não evoluiu porque se negou a acompanhar o mundo moderno:
– Celular, computador, emeio, sait, internet. Tudo besteira. Onde é que fica o olho no olho em tudo isso?
Acreditava mesmo é na capoeira. Só não sabia que em São Paulo ela não é tão valorizada quanto na Bahia. (ibidem, 2007, p. 106-107).

E a provocação de Ademiro Alves de Souza não acaba por aqui. Mostrando o deslocamento, a exclusão e o inconformismo presentes no personagem, o texto os confronta com aquelas que eram suas grandes motivações iniciais:

– João Peitudo, vô mimbora pra Sum Paulo ensinar capoeira. Levantar uma casa e criar uma família por lá.
Por aqui passou por vários lugares ensinando capoeira, mas quase não ganhava dinheiro. Na maioria das vezes era por amor. Adorava ver aquela criança sorrindo por ter aprendido um primeiro golpe. (ibidem, 2007, p. 107).

E segue o texto sintonizando, com irreverência, seu anseio por justiça e pela valorização daqueles que se empenham dia-a-dia em favor da arte popular, mas ainda assim permanecem invisíveis e necessitados de uma atenção muito mais direta de nossa sociedade:

Ficava aborrecido quando recebia convites de ONGs que movimentavam muita grana e diziam que não tinham dinheiro:
– Poxa vida, mestre Sulfato Ferroso, é pela molecada da periferia, tudo gente humilde e carente.
Logo cedia ao convite, seu coração era mole demais para dizer “não” diante de uma fala dessas. O ruim mesmo era quando o aluguel atrasava.
– É, nessas zoras não tem ninguém de ongue e nem de entidade pra pagar as minhas contas, muito menos essa tal de humildade e carência.
Há muito tempo estava pensando em voltar. Era livre, não tinha nenhum dependente. É só chegar em Salvador, pular no mato e levantar um barraco. Melhor que ficar nessa cidade ingrata e mal agradecida. (ibidem, 2007, p. 107).

A maneira como Sacolinha escreve certamente tem a ver com a recuperação do falar corrente de um determinado grupo da sociedade. A apresentação de algumas palavras em sua forma mais econômica é um meio que encontra Ademiro Alves de Souza para sustentar o registro da fala popular, numa preciosa medida de subversão. Existe, portanto, todo um trabalho de assumir na forma de literária a expressão e linguagem do excluído, assim como a representação do problema. Tomando o lugar do personagem Sulfato Ferroso, o autor mostra que a vida e a linguagem dessas pessoas não deve ser ignorada ou destruída, mas reinventada, tendo a sua existência recriada a cada dia:

A sobrevivência por aqui judiou de Sulfato Ferroso. Preocupação lhe dava olheiras. Até barriga aqui ele criou:
– Magine só, um capoeirista feito eu, cum barriga sobrando...
Talvez podia ser a idade, pensou. Teve muitas desilusões por aqui, inclusive entrou em crise num momento de conflito interno. Ficou com aquela história de copo cheio e copo vazio na cabeça.
– Prumodequê será que na Bahia eu me sentia tão bem, hein?
Devia ser o sol, o ar, o tempo, as pessoas, os passos descalços nas ruas de terra, o ritual de Oxum na casa de Mãe Terta.
– Ô axé que acarma a alma.
[...]
O melhor mesmo é voltar para sua Bahia. Lá sim dá para viver sossegado. O custo de vida é suportável.
E além do mais não tem nada melhor do que jogar capoeira na areia da praia e depois tomar água de coco com uma baiana do lado. Nada com que se preocupar. (ibidem, 2007, p. 108).

Interessa-nos, portanto, no final das conclusões acerca de “Sulfato Ferroso”, informar que nosso capoeirista, depois de um delírio em que constavam um jogo de capoeira na areia da praia, água de coco e uma bonita baiana, adormeceu no chão do trem usando uma sacola como travesseiro e acordou na próxima estação, em cuja plataforma um relógio marcava 4:30 h. da manhã.

Referências

SACOLINHA. “Yakissoba”, In: 85 letras e um disparo. 2.ed. São Paulo: Global Editora, 2007.

SACOLINHA. 85 letras e um disparo. 2.ed. São Paulo: Global Editora, 2007.

* Thiago Antônio dos Santos é graduando em Letras na FALE-UFMG.

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