Os sonhos nunca são velhos, de João Melo

 

Luciana Brandão Leal

 

 João Melo é reconhecido escritor e poeta angolano. Nasceu em Luanda e possui formação acadêmica bastante diversificada: estudou Direito, em Coimbra (Portugal) e em Luanda (Angola); licenciou-se em Jornalismo, na Universidade Federal Fluminense, e é mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, as duas últimas são reconhecidas Universidades brasileiras.

 

Como jornalista, atuou em importantes veículos de comunicação, como a Rádio Nacional de Angola, o Jornal de Angola e a Agência Angola Press. Entre 2017 e 2019, ocupou a função de Ministro das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social de Angola. É membro fundador da União dos Escritores Angolanos e da Academia Angolana de Letras e Ciências Sociais de seu país.

 

Sua produção bibliográfica é diversa e é composta, até este momento, de vinte e seis publicações, contando com livros de poesias, contos, ensaios e um romance. Possui edições lançadas em Angola, Portugal, Brasil, Estados Unidos, Cuba, Itália, Espanha, Reino Unido e Tunísia.

 

O escritor optou, a partir de 2020, por se dedicar exclusivamente à produção literária, permanecendo em trânsitos entre Angola, Portugal e Estados Unidos. No mês de maio de 2025, João Melo esteve no Brasil e participou de diversas atividades acadêmicas e literárias, divulgando seu último livro de poesias, publicado em 2024, cujo expressivo título Os sonhos nunca são velhos desafia e arrebata, dede a capa, seus leitores.

 

Neste período em que esteve no País, João Melo integrou diversas atividades acadêmicas em renomadas Universidades e livrarias; participou, inicialmente, da FLIPOÇOS, em Poços de Caldas (MG), em seguida, esteve presente em conferências e nos lançamentos de seus livros em Brasília (DF), Goiânia (GO), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro e Niterói (RJ) e São Paulo (SP), em um curto período de tempo, mas extremamente profícuo para formação do público-leitor brasileiro. Nestes percursos, o autor realizou conferências sobre “literatura, história e política”, além da apresentar seus livros, especialmente o recém-lançado Os Sonhos Nunca São Velhos, que integra a coleção Infame Ruído (São Paulo, 2024), apresentada por Anelito de Oliveira.

 

O título dessa obra do escritor angolano evoca, imediatamente, a bela música de Milton Nascimento e Lô Borges, compositores mineiros, que assinam “Clube da esquina nº 2”, um hino sobre a resistência e sobre o sonho/utopia como preponderantes na condição humana. Os versos de Milton e Lô ecoam: “Porque se chamavam homens / Também se chamavam sonhos / E sonhos não envelhecem...”.

 

Os “gases lacrimogêneos” de que tratam os poetas mineiros também perpassam o livro de João Melo, ressignificados em alusões a diversos conflitos / questões contemporâneas, em um processo de intertextualidade que acentua a proposta metapoética do livro. Afinal, como nos dizem os compositores mineiros: “De tudo se faz canção / E o coração na curva /De um rio, rio, rio, rio, rio...”

 

O livro de João Melo é composto por quatro seções: “Abertura”, “Até que minhas palavras comecem a fazer sentido”, “O mundo não morrerá sem luta”, “A guerra não respeita a casa dos poetas”, em que a voz lírica se apresenta de forma multifacetada, elaborando e reelaborando a própria condição de ser poeta e o lugar da poesia no tempo/espaço contemporâneo, com vieses metalinguísticos que provocam, no leitor, reflexões sobre seu próprio tempo e sobre diversos acontecimentos que tencionam o cenário político e social mundial.

 

Em prefácio ao livro – “A coragem de sonhar” –, Anelito de Oliveira ressalta a condição do poeta como um ser dissonante em meio às imposições instantâneas, tecnológicas e “algorítmicas”. O crítico ressalta que, nesta obra, especificamente, “o sonho se revela recorrentemente como referência de humanidade em contraponto aos pesadelos tantos a sacrificar africanos, asiáticos e latino-americanos, angolanos, palestinos e brasileiros” (Oliveira, 2024). Este é, coletivamente, “um estímulo à nossa sobrevivência” (Oliveira, 2024).

 

Na primeira seção, “Abertura”, a voz poética evoca a África e a condição de “ser africano”, perpassando diversas questões que vão desde o pertencimento até a elaboração poética em uma língua, a princípio, “estranha”, imposta, já que é a língua do colonizador. O poema “Africanos”, primeiro do livro, promove reflexões sobre o processo de colonização em territórios africanos e sobre diásporas forçadas pela Europa e pelas Américas: “Os nossos caminhos são tão antigos / como os caminhos da humanidade [...] Assim povoámos o mundo, / forjando povos, nações, culturas.” A voz poética desloca-se para a contemporaneidade para promover reflexões sobre os sessenta anos passados das lutas pela independência de países africanos de língua portuguesa, como Angola: “Sessenta anos depois, ainda culpamos o passado. / Continuamos presos ao espelho, / mas hesitamos sobre qual dos lados devemos de escolher.” (MELO, 2024, p. 15).

 

Em outro poema da seção “Abertura”, intitulado “Pessoa, Caetano e eu”, a voz lírica dialoga com outros poetas de língua portuguesa, questionando sua condição de homem colonizado e, portanto, obrigado a se expressar em uma língua que não é a sua própria: “A minha pátria não é / a língua portuguesa”. Em um gesto de resistência pós-colonial, evoca a canção “Língua”, de Caetano Veloso, cujos versos enunciam: “E deixe os Portugais morrem à míngua / Minha pátria é minha língua”. (MELO, 2024, p. 19).

 

Na segunda seção do livro, intitulada “Até que as minhas palavras comecem a fazer sentido”, o enfoque metaliterário, já anunciado, prevalece na dicção do poeta. No poema “Para que escrevo?”, a pergunta é autocentrada, mas desdobra-se na percepção do leitor, como uma reflexão: “Para que / Por que leio poesias?”. As reflexões aí propostas extrapolam o duplo movimento autor/leitor, escrita/leitura, texto/experiência literária quando promovem uma reflexão sobre o tempo e o espaço contemporâneo: “Sim podeis perguntar para que serve a poesia nos dias que vivemos / em que os velhos fascistas assumem novas caras”. (MELO, 2024, p. 35). Esses versos são do poema “Relatório poético dos dias que vivemos”, em que os insistentes questionamentos prevalecem: “Sim para que serve a poesia / quando a perplexidade tomou conta do mundo” (MELO, 2024, p. 35). Embora o cenário apresentado seja inquietante e devastador, e as perguntas pareçam atormentar a voz lírica, conclui-se, que “a poesia resiste e resistirá”, já que:

 

Mais do que uma necessidade uma esperança

ou uma arma

a poesia é um estado de espírito

um dispositivo interno feroz e radical

sem o qual a humanidade simplesmente se extinguiria

de repente

e para sempre

como um definitivo cataclismo cósmico.

(2024: 36)

 

Dando continuidade às indagações que promovem o jogo do texto e intensificam o duplo movimento entre o eu lírico e o leitor de João Melo, a terceira seção, intitulada “Onde foi que nós erramos?”, apresenta cenas em poemas multifacetados, incluindo um poema em prosa. Nesta seção, os títulos são inquietações partilhadas, em alguns momentos a pergunta é direcionada ao leitor, como, por exemplo, “O que fazer com esta culpa?”. Prevalece o uso da primeira pessoa do plural, incorporando ações e resultados que são coletivos.

 

Por fim, definindo o lugar do poeta como um “lutador”, bem ao gosto de Drummond, a voz lírica assume um compromisso ético e estético, ao afirmar que “O mundo não morrerá sem luta”, e no poema “Juramento”, cuja estética retoma os preceitos concretistas, as palavras/versos dispersos no papel definem um propósito: “O mundo definha sangra / quase / grita / Morrerá dizem / Mas não / sem luta”.

 

Este livro de João Melo, Os sonhos nunca são velhos (2024), é um convite metaliterário ao leitor, à reflexão e à problematização de diversas questões que perpassam o cenário político, econômico e social contemporâneos; mais que um convite à reflexão, é um apelo à resistência, uma convocação insistente às sutilezas. O lugar do poeta e da própria escrita literária são os eixos norteadores desta proposta, considerando-se que “o sonho”, “a utopia”, “a fantasia” e, especialmente, “a poesia” não envelhecem, já que são alicerces fundamentais para condição humana.

 

Pará de Minas, setembro de 2025.

 

Referências

 

MELO, João. Os sonhos nunca são velhos. São Paulo: Inmensa Editora, 2024 (Coleção Infame ruído).

OLIVEIRA, Anelito de. Apresentação. In.: MELO, João. Os sonhos nunca são velhos. São Paulo: Inmensa Editora, 2024 (Coleção Infame Ruído).

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* Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Publicou, em 2019 e 2020, dez artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais com estudos sobre poesias das literaturas de língua portuguesa, além de artigos sobre a obra de Machado de Assis. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 

 

 

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