O Sagrado-íntimo de Arleam Dias em Poemas da janela
Kelvin Jorge Batista Silva*
Arleam Francislene Martins Dias é mineira de Belo Horizonte, advogada especialista em Psicologia do Trabalho, Direito Material e Processual do Trabalho. A escritora é poeta, mãe, avó, modelo e muito mais. Assim, é uma mulher de muitas ocupações, sua vivência é repleta de desafios: enquanto mulher negra abriu caminhos no meio acadêmico e profissional. Além disso, é uma audaciosa defensora e militante na luta pelos direitos das mulheres, essa missão é um dos principais pilares de sua vida.
A autora possui outras obras publicadas, como o seu livro de poemas e outros textos Entre Edemas, pandemias & poemas (2021), além de organizar e ser uma das autoras do livro SALUTAR: o imperativo das vozes negras femininas (2021). Somando-se a isto, publicou o artigo “Esperança Garcia: a ancestralidade como ponto de partida e chegada para o caminho de mulheres pretas”, que integra o É tempo de Esperança Garcia (2023), publicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), representando as advogadas negras de Minas Gerais.
Em seu Poemas da janela (2023), vê-se a face, o avesso e o interior da escritora. No decorrer dessa obra, ela convoca o leitor a mergulhar nas múltiplas facetas de sua subjetividade, essas dimensões refletem muitos dos sentimentos e lutas da vivência de mulheres negras. Por meio da mineiridade, Arleam convida o leitor para a velha e boa prosa de janela, simultaneamente torna-se íntima do coletivo de leitores.
O conjunto de versos poéticos de Poemas da janela é dividido em dois momentos: “O Sagrado Feminino” converte-se no Capítulo I e “O Sagrado Masculino” configura o Capítulo II. A primeira seção reúne a maior parte das poesias e nesta nos deparamos com uma diversidade de temas trabalhados. É possível encontrar temáticas relacionadas ao amor, à paixão, à sensualidade, à força da ancestralidade, ao poder comunitário, às lutas e batalhas das mulheres, principalmente das negras e, ainda, o combate ao assédio, à violência contra as mulheres e a busca pela ocupação de seu espaço de direito.
Em outras palavras, expressa-se, nessa parte, a interioridade do eu poético, o sagrado e a coletividade, pois muitas das vivências femininas são experiências coletivas. Em seus versos, poetisa defende o direito de amar, de se apaixonar, do merecimento do afeto e, ao mesmo tempo, demonstra a necessidade de a mulher conscientizar-se para entender a diferença entre amor e a importunação.
Tratando-se da violência e do assédio, inúmeros poemas são dedicados a estes dois temas, demonstrando um despertar poético contra a opressão, uma conscientização da não aceitação da violência, por meio do fortalecimento ancestral e da rede de apoio para superar condições de opressão. A trajetória da autora, como advogada que defende a causa feminina e negro-feminina, pode ser observada através do eu-lírico que denuncia as dores das mulheres e transmite o não contentamento com injustiças em seus poemas, como se lê em “Desperta”:
Desperta!
Mesmo que isso signifique despetalar o sorriso
A flor do instinto contido
Que tenha que virar do avesso
Que precise dizer “não tenho preço”
Desperta!
Mesmo que não seja contigo
Que o abuso, o desrespeito esteja escondido
Entre as páginas da história do outro
Desperta!
Mesmo que a tempos tenha vivido
Fazendo-se de tonta e de conta
Como se nada tivesse acontecido
Desperta!
E desperta de novo
Se levanta e diante do espelho, olho no olho
Ordene a si mesmo
Despertar!
(p. 27)
Na segunda parte do livro, a autora traz as lentes do olhar masculino sobre o amor: a expressão de sentimentos, a obsessão, a masculinidade e suas fragilidades. Nesses poemas, assim como na primeira parte, a autora busca trazer dimensões subjetivas por meio da figura do masculino, além disso, dimensiona um homem que se relaciona com outras mulheres, o seu sagrado. Nisto, muitos dos atos desse sujeito poético podem ser provenientes de momentos vividos pela própria autora e pelo universo de mulheres que a cercam. O que a poeta faz não é uma tentativa de colocar o homem na posição de vítima, esta demonstra que dentro desse ser existe a capacidade de amar de maneira plena e respeitosa, por outro lado, deixa claro que também existem homens capazes de trazer dor e violência para uma relação na qual se dizia ter amor. A autora expressa a pluralidade masculina de ser e sentir, ao mesmo tempo em que expõe a repressão sentimental do homem, configurada como um dos pilares da masculinidade hegemônica, que agrega valores tóxicos a estes indivíduos, tanto para o próprio homem quanto para as mulheres com quem se relacionam. Sobre isso, leia-se o poema “Minha linda”:
Quando vejo essa mulher maravilhosa
Me sinto pálido
Quando eu vejo essa mulher poderosa
Me sinto ávido
E emergem
Todas as limitações da masculinidade
Da incapacidade de parir
Da pobreza de sentir
Do medo de assumir
As fragilidades de ser homem.
(p. 80)
Por fim, observamos que a autora traz em sua obra uma voz estético-literária permeada por dualidade, pois dispõe, através do eu-lírico, de visões do masculino e do feminino e, a partir destas interlocuções dialógicas, consegue abordar aspectos desses gêneros de forma contundente. Arleam reconhece outros modos de expressão, ela compreende que sujeitos masculinos e femininos foram sempre colocados em caixas, lugares pré-definidos e cristalizados socialmente. Acompanhado de um “cafezin” no estilo mineiro, convidamos para a leitura de seus poemas os leitores que anseiam por contemplação das incontáveis janelas poéticas que se abrem na obra. Prepare-se para viajar no íntimo-sagrado da autora, apaixone-se, revolte-se e fortaleça-se com sua poesia.
Belo Horizonte, maio de 2024.
Referência
DIAS, Arleam F. M. Poemas da Janela. São Paulo: Dialética Literária, 2023.
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* Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte –UniBH e Bacharel em Inglês pela UFMG. Atualmente, é mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da FALE-UFMG e atua como pesquisador do literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/literafro