Poesia e fúria ao som da memória coletiva

 

Adélcio de Sousa Cruz*

Noite
Que conserva
Orgulhosamente 
A despeito de tudo
Um punhado de estrelas
Em cada mão
(Autorretrato, p. 51)

Reler/ler Carlos de Assumpção é sempre um presente envolto num turbilhão de emoções. A voz ancestral e simultaneamente contemporânea, performando versos rápidos, sonoros, cadenciados, pode tirar nosso fôlego, a depender dos ares do dia e/ou da noite.

Curioso notar, entretanto, que em alguns dos poemas a rima se parte ou é quebrada ao final, em tom de mimese daquele dramático momento em que inúmeras trajetórias de nossos ancestrais foram interrompidas, abruptamente, pelo rapto seguido de escravização. O passado que é inalterável, contudo, precisa ser revisitado e comparado aos acontecimentos que, infelizmente, continuam a ecoar e a se reprisarem no tempo presente. Outro ponto crucial à voz poética impressa nos textos é a consciência a respeito do papel do poeta:

                    Neste mundo

                                    para Luiz Cruz

          Neste mundo de homens de aço
          Eis o palhaço
          A poesia é minha ocupação
          É meu pão
          Sou poeta louco pobre-diabo
          Sou declamador de minha dor
          Sou meu irmão irremediável truão 

          Neste mundo de homens de aço
          Sou sim o palhaço
          Eu que em difícil missão
          Em público desnudo
          O coração
                                                (p. 57)

 

O diálogo com poetas/escritores como Cruz e Sousa, em especial, e Lima Barreto, deixa em evidência o tom de consciência trágica no qual são lançadas todas aquelas pessoas que se mostram abertas e empáticas às dores dos outros. O incômodo maior se dá diante da impiedosa impunidade para crimes que se repetem, se perpetuam em modo de constante atualização. Vale lembrar ainda, o “emparedamento” retratado no ensaio em prosa poética de Cruz e Sousa, somando-se ainda à trajetória de personagens criados por Lima Barreto, como por exemplo, Clara dos Anjos e Isaías Caminha.

Retomo os versos utilizados na epígrafe deste breve texto – “Autorretrato” – nos quais temos a presença da palavra “noite” vinculada ao corpo individual/coletivo da voz que emite os versos, simultaneamente, apontando para cor de pele/etnia, oposição ao dia e esperança (esta última simbolizada pela luz das estrelas). Carregar na pele os tons da noite, pode trazer experiências únicas. Os poemas de Carlos de Assumpção tornam-se passarelas-aquarelas, visitando o passado (distante e recente) e o cotidiano da comunidade negra, além das constantes menções a outras identidades subalternizadas como os povos nativos do Brasil e a população empobrecida econômica e socialmente (campo e cidade), somada ainda aos bilhões de “desvalidos/subalternizados” de todo o planeta (numa referência indireta e fragmentada ao poema “Litania dos pobres”, de Cruz e Sousa). A voz poética possui e nos apresenta sua ampla e diversificada consciência.

O título escolhido para a primeira edição da obra poética de Carlos de Assumpção, foi retirado de seu poema mais emblemático: “Protesto”. Originalmente, o texto veio ao conhecimento público pela performance do próprio poeta na Associação Cultural do Negro (São Paulo/SP), no ano de 1958, tendo sido escrito dois anos antes, em 1956. Sua publicação, entretanto, ocorreu também em 1958 no livro Cadernos de Cultura da ACN. Esse poema em particular, desde sua publicização, percorre gerações do movimento negro brasileiro como referência poético-político-performática. O título “Protesto” pode ser lido como verbo e substantivo, ecoando o rebelado e a “rebeldia” (palavra que também denomina um de seus poemas). Reservo aqui espaço para o trecho no qual a palavra “grito” aparece na estrofe (um quarteto), como substantivo, no plural:

Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
                             (p. 32)

 A necessidade imperativa da performance continuada do ato de gritar e sua materialização no substantivo grito – em modo plural – poderia remeter à estratégia de aliar/encantar/encarnar/conjurar simultaneamente as vozes individuais e coletivas. Alterando a ordem das letras na palavra “grito”, surgirá vocábulo capital para a poesia negra/afro-brasileira, africana e suas diásporas: griots, os guardiões/narradores/poetas da memória e do saber que fazem do verso oralizado sua melhor e ancestral tecnologia. É sempre tempo de reler/ler os gritos/ritos impressos em versos nesta reunião histórica de rebeldia poético- performática. Especialmente, quando ainda se faz necessário gritar em forma dos seguintes versos, expulsando/dispensando em indignada fúria os pontos de interrogação:

Quem mandou matar Marielle
Quem mandou matar Marielle
A nossa nova Dandara
Quem mandou matar Marielle
A enviada de Ogum 

Quem tem ceifado tantos sonhos
Quem tem coberto todo o país
Com tantas mortes sem explicação
Quem tem matado tanta gente inocente e culpada 

Há no ar silêncio enorme
Não há nenhuma resposta
Será que a justiça dorme
Ou a justiça está morta

                                                     (p. 138)

 

Referência

ASSUMPÇÃO, Carlos de. Não pararei de gritar – poemas reunidos. Organização e posfácio de Alberto Pucheu. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Edição do Kindle.


* Adélcio de Sousa Cruz professor Adjunto do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Viçosa – UFV e membro da Comissão Editorial que coordena o Portal literafro (www.letras.ufmg.br/literafro). Autor de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins, Ferrez (Sete Letras, 2012).


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