#NegríciaPresente!

  

                                                                                                                                                                                                 Eduardo de Assis Duarte*

  

     A noite é bela,
     como as faces
     do meu povo.
     As estrelas são belas,
     como os olhos
     do meu povo.
     Belo, também,
     é o sol,
     belas também são
     as almas do meu povo.**

     “My people”

     Langston Hughes,
     1923

Fundado 1982, no contexto da abertura “lenta, gradual e segura”, que marcou o fim da ditadura militar, o coletivo de escritores Negrícia Poesia e Arte de Crioulo abrigou em seu seio poetas e ficcionistas empenhados em tomar a palavra e interferir na arena discursiva onde se construíam tanto as narrativas do passado, quanto as da futura nação democrática sonhada pelos brasileiros. E o fez encarando a poesia como gesto político: o livro como arma que arma a fala do Outro; e o verso como condutor das figurações do pensamento de afirmação da afrodescendência e aquisição da cidadania plena.

Foram tempos de Ebulição da escrivatura, sugestivo título da antologia publicada anos antes pela Civilização Brasileira reunindo “treze poetas impossíveis”, entre eles dois aqui presentes, Éle Semog e Salgado Maranhão, organizador da coletânea. Ebulição presente em todo o país, em todas as artes. A cidade das letras negras made in Rio se irmana às letras paulistas do Quilombhoje, às gaúchas do Palmares, e às baianas do GENS, entre outras. De norte a sul do país, é toda uma geração a reivindicar e se fazer presente, a refletir e se expressar em consonância com “seu tempo e seu país”, como já prescrevera Machado de Assis um século antes. Nesse diálogo, ecoa o passado recente do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, a poesia e o teatro de Solano Trindade e de tantos outros precursores, dentro e fora do Brasil.

“Nossos passos vêm de longe” é mantra ainda hoje presente em falas de poetas e ficcionistas afro-brasileiros atuantes nas últimas décadas. Finda a censura ditatorial, amplia-se o debate, e se refaz o acesso ao arquivo da literatura negra produzida no Ocidente. Publicados em 1923, os versos do afro-estadunidense Langston Hughes, citados em epígrafe, ilustram a retomada moderna que consolida uma tradição presente nas Américas desde o século XIX. E mostram o caminho que, a partir da Renascença do Harlem, será trilhado pelo fenômeno da Literatura Negra – primeiro movimento literário transnacional iniciado nas Américas e só mais tarde implantado na Europa pelos escritores da Négritude francófona dos anos 1930 e seguintes.

A par da linearidade e clareza implícitas aos propósitos que os norteiam, os versos de Hughes recuperam tanto a postura dos escritos diaspóricos dos séculos anteriores, quanto a milenar tradição dos griots africanos: a figuração do poeta como porta-voz, conhecedor das relações entre saber e poder, que fala por si e por sua comunidade. Tais versos apontam ainda para o futuro, antecipam o black is beautiful dos anos de 1960-70, e anunciam uma tendência que irá se manifestar em praticamente todos os países em que autores negros se puseram a falar de e para sua gente: afirmação identitária, reconhecimento da multifacetada herança cultural africana, reivindicação de direitos, libelo antirracista.

Os versos do poeta o colocam como ser de seu tempo e de seu lugar. À noite iluminada pelos olhos-estrelas do povo negro se agregam as almas solares, a povoar os espaços da diáspora com os saberes ancestrais trazidos nos tumbeiros. A estes se soma a memória dos antepassados, “cheinhos de inteligência”, como inscreve Solano Trindade, mas ainda marcados pelos ecos das correntes arrastadas. Poesia-presença, a encenar o hoje e pensar o amanhã sem tirar olhos e ouvidos do ontem. Poesia-arquivo, poesia-memória.

Esse intercâmbio entre tempos, espaços e, sobretudo, sentidos marcados pelas falas do negro se mantém vivo na contemporaneidade e concede força e substância ao livro. Passados 37 anos, o Grupo Negrícia se faz presente nessa reunião antológica em que os remanescentes da formação inicial se juntam a companheiras e companheiros de geração, anseios e projetos. E não só temos de volta Semog, Conceição, Lawa, Deley, Hélio e Siqueira. O livro recebe ainda os versos de Elisa Lucinda, Salgado Maranhão, Ana Cruz, Luís Turiba, Amélia Alves, Lia Vieira, Vivande B. Filho, Jurema Araújo e Cizinho Afreeka.

Amor e outras revoluções revela ao leitor a forma múltipla e, talvez por isto mesmo, inquietante, da poesia negra contemporânea. O gesto político se explicita desde as primeiras páginas, em que Amélia Alves exalta a escola como espaço de afirmação. Colocado na abertura da antologia, “Atrás das Borboletas azuis” eleva-se a metáfora de todo o livro, também ele um arquivo revelador de ensinamentos e aprendizagens. O tom se eleva nos versos de Ana Cruz, ao construir uma sarcástica “gratidão sincera”, “ao homem para quem eu e meus nove irmãos / fomos trabalhar, aos sete anos de idade, doze horas por dia, por casa e comida.” E assim prossegue em “Revide”, de Cizinho Afreeka: “Nos quer doces / Dóceis / Quem nos impôs / O lado amargo / Da cana de açúcar”. Ganha contornos de violência sexual em “A Menina e a pipa-borboleta”, de Conceição Evaristo: “E depois, sempre dilacerada, / a menina expulsou de si / uma boneca / ensanguentada / que afundou num banheiro / público qualquer.”

O ímpeto de denúncia e protesto explicita a violência contemporânea sofrida pelos subalternos, como nos textos de Deley de Acari: “Porque amamos a paz / Pensam que tememos a guerra”; e também nos de Éle Semog: “Pois sei que as balas dos patrões, / que as balas dos políticos, da polícia / correm atrás de mim sem-terra, / correm atrás de mim sem-teto, / correm atrás das minhas razões”. A indignação toma a forma de libelo acusatório em “Quem mandou matar Marielle”, de Luiz Turiba: “são tropas / comandos / são quadrilhas / são milícias / polícias / sem treliças”. Prossegue com força em “Arrastão”, de Hélio de Assis: “Ontem / Arrastavam correntes / Hoje descontentes / Arrastam gentes”. Passa também pelo poderoso verbo poético de Salgado Maranhão: “e de blues e urublues / ouço a moenda / dos novos senhores de escravos / com suas fezes de ouro / com seus corações de escarro”; para desaguar nas inscrições metapoéticas de Eustáquio Lawa: “Os quilombos de hoje em dia / Não têm bairro ou geografia / E estão por toda parte / Na Prosa e na Poesia”.

A entonação quilombista se faz presente também entre as poetas atentas à intersecção de etnicidade e gênero, como nos versos já clássicos de Elisa Lucinda: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio / nada disso se cura trepando com uma escura!”. Ou na escrita também indignada de Jurema Araújo: “Eu, a porca, gesto burros e porcos / para puxarem as carroças dos nossos donos. / Você, burro, fecunda-me [...] lembre-se que você é um burro / e dê graças ao senhor!”. E ainda na explosão poético-retórica de Lia Vieira: “MEU VERDUGO GOZA. / Meus olhos marejam em suprema humilhação”, aos quais se segue o emblema feminista transmutado em poesia: “Aborto … um direito só meu”.

Assim, Amor e outras revoluções faz jus ao nome de batismo. O amor aqui presente é também polimórfico, cheio de desvãos e pontos fora da curva canônica. Em “Poema de amor sobre a vida inteira de cada pessoa”, Éle Semog faz o sentimento surgir com “vieses de alegria”, para em seguida, torná-lo “obsceno em sua fúria”. Já Deley de Acary se desdobra em versos carinhosos: “Cuidando d’ocê / Eu cuido d’eu! / Ocê deix’eu / Cuida d’ocê / É seu jeito / De cuida d’eu!”, para mais tarde inscrever uma tocante declaração sobre o amor que constrói a masculinidade não-tóxica em “Sem você ainda somos a espera, com você somos a esperança”.

Com efeito, ao reunir a poesia de quinze vozes negras contemporâneas, Amor e outras revoluções demonstra o vigor criativo do Grupo Negrícia e da escrita afro-brasileira contemporânea, como bem sintetizam os versos de Salgado Maranhão: “aceito o temporal – redemoinho / de pedras: tanto degrau... tanta esgrima... / e ao ter somente a voz como caminho / agarro a poesia pela crina / e me arrimo na minha própria rima.” São, portanto, vozes e falas conectadas, que vêm de longe, sem deixar de serem sujeitos-testemunhas de seu tempo e de seu país.

Belo horizonte, Julho de 2019

Referência

SEMOG, Éle (Org.). Amor e outras revoluções, Grupo Negrícia: antologia poética. Rio de Janeiro: Malê, 2019.


 ** The night is beautiful,/so the faces of my people./The stars are beautiful,/so the eyes of my people./Beautiful, also, is the Sun./Beautiful, also, are the souls of my people. Trad. nossa.

* Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade de Letras da UFMG e Coordenador do literafroPortal da Literatura Afro-Brasileira, disponível no endereço: www.letras.ufmg.br/literafro. Organizou, entre outros, Machado de Assis afrodescendenteescritos de caramujo (3ª ed., 2019), a coleção Literatura e Afrodescendência no Brasil – antologia crítica (4 vol., 2011), e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI (2014) e Literatura afro-brasileira – abordagens na sala de aula (2014).

 

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