Carolina, Carolinas, e um futuro que se abre

Fernanda Rodrigues de Miranda*

Carolina Maria de Jesus é um signo. Uma mulher preta insubmissa. Altaneira. Um caminho luminoso que se abriu na mata fechada. Uma clareira. Uma revolução.

Sabe dela quem sabe das bifurcações de cada gesto, quem sabe dos desafios de si, quem colhe vento de mudança porque antes lutou pelas mudas de ousadia. Carolina é uma estrada.

Sua grande marca na literatura é aquela que sinaliza a nossa cor, a nossa cara, a nossa resistência, a nossa herança. De tudo que ela nos deixou, ficou principalmente o sim, eu escrevo.

 “– Sim, eu escrevo. E mais: Na minha opinião, escreve quem quer”.

Essa afirmação, apenas aparentemente simples, significa uma transformação muito densa em todo o estado da arte das letras brasileiras, historicamente constituído pela chave da escrita como privilégio de alguns sujeitos muito específicos, que tem em comum o fato de serem homens, brancos, heterossexuais, pertencentes à elite econômica, geralmente circunscritos às territorialidades urbanas das capitais do país. Esse perfil de sujeito, que por muito tempo se autointitulou como “universal”, vem desde sempre ocupando o papel consagrado de autor e usufruindo do status de escritor legitimado pelas instâncias de poder que espreitam a circulação de textos.

Tal lógica colonial, ainda tão contemporânea, foi confrontada por Carolina Maria de Jesus de forma avassaladora. Depois dela, ficou gravado no edifício literário uma resposta muito altiva contra o silenciamento que mantém pessoas negras, pobres, periféricas, de fora da possibilidade de inscrição na literatura.

Este livro que tens em mãos, caras leitoras, caros leitores, é herdeiro dessa insurreição. E por isso brilha e aquece. Consegues sentir?

Carolina no plural, Carolinas de norte a sul, de várias idades, de muitas histórias... Carolinas é um livro-celebração. Um livro que traduz o encontro de duzentas mulheres negras consigo mesmas, com sua escrita, com Carolina Maria de Jesus, com os processos formadores e transformadores promovidos pela histórica Flup que a homenageou.

É um livro que ousa.

“Falavam que eu tenho sorte, eu disse-lhes que eu tenho audácia.” Assim sentenciou Carolina diante dos falsos confetes que recebeu em vida. Ela sabia exatamente o que significava sua presença nos espaços citadinos e literários que frequentou.

A audácia para tomar a escrita para si e a fazer transgredir, em um país ainda muito marcado pelo poder de silenciar, é mérito também deste livro. Um livro coletivo, que parece criar uma comunidade para Carolina, que faz da literatura sua morada, que toma o cotidiano em crônica de dias possíveis, que reflete novos exercícios espelhados no diário mais clássico da literatura brasileira, que constrói amarelíneas para expressar sentimentos insulares e encrespados, que acalenta um ontem, um hoje e um amanhã para a permanência desse sonho, que funda quilombos na palavra-Carolina, que dança e canta o seu território, que cata palavras etéreas, concretas, erráticas.

 O livro Carolinas é composto por textos curtos e heterogêneos, densos e suaves, provocativos e reflexivos, encantados e críticos. Textos que passeiam por estilos diferentes e caminhos próprios, revelando pontos de partida de autoras estreantes e pontos de chegada de autoras maduras.

Em comum, as autoras dessa obra de muitas mãos (elas) guardam o lugar autoral, pois todos os textos aqui dispostos são escritos por mulheres negras brasileiras. E também, o fato de terem sido atravessadas por Carolina Maria de Jesus de alguma forma pela vida afora e pela palavra adentro.

A síntese que melhor recolhe o sentido dessa publicação talvez seja a ideia revolucionária da partilha, que nós, pessoas negras, aprendemos desde muito tempo como tecnologia ancestral. Então receba, caro leitor, esse gesto, como quem pode assuntar neste presente distópico em que vivemos um futuro que se abre.

Referência

LUDEMIR, Júlio (Org.). Carolinas. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo / FLUP, 2021. 

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* Fernanda Rodrigues de Miranda é mulher negra periférica, atualmente professora adjunta da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará. Sua tese de doutorado percorreu o corpus de romances de autoras negras brasileiras e foi premiada com o Prêmio Capes de Teses 2020, publicada pela Editora Malê com o título Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006).

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