Coração do mar: sensibilidade e respeito à cultura afro-brasileira

no universo da literatura infantojuvenil

Cristiane Côrtes*

 

A primeira obra infantojuvenil publicada de Carol Fernandes, Coração do mar, leva os pequenos leitores a um mundo encantado onde Iemanjá e Odara são amigas queridas que se encontram no mar para vivenciar emoções e aventuras inesquecíveis.

Publicado pela Crivo Editorial, em 2019, o livro apresenta a história da menina Odara que desde pequenina ama ficar na água. Apelidada pela mãe de “peixinha”, está sempre ligada ao universo aquático. Suas brincadeiras e interesses denotam uma conexão com a grandiosidade de Iemanjá. Assim, a menina se revela “misteriosa, profunda e envolvente” como a mãe d’água, protetora dos mares e oceanos.

Peixinha sente que na infinidade dos oceanos mora Iemanjá e, mesmo distante, sabe que estão conectadas. A rainha do mar lhe conta histórias antigas e compartilha segredos. Odara sonha ao longo do ano com o dia em que sua família vai para o litoral e ela pode, finalmente, encontrar sua grande companheira e, quando chega o momento, sua alma se invade de silêncio e alegria. Emoções profundas como as águas envolvem as duas e faz Odara perder a noção do tempo.

A religiosidade de matriz africana é um elemento de suma importância para a literatura afro-brasileira. Não há como abordar a cultura e a tradição afrodescendente sem mencionar a tradição mitológica. As práticas religiosas provenientes de África, em geral, carregam uma conotação negativa e isso acaba por proporcionar uma posição de distanciamento da população negra em relação a elas. Esses equívocos são, não raro, provocados pelo desconhecimento e quando abordado na literatura infantil, abre-se uma possibilidade de minimizar o preconceito produzido pela ignorância relacionada ao tema. Nesse sentido, Coração do mar, traz uma importante contribuição não apenas por retratar a questão, mas pelo respeito e naturalidade com que o assunto permeia a trama da história.   

Outro aspecto de relevância, quando se trata de uma obra literária dessa matéria, seria o fato de que a formação do universo pelos orixás e as religiões de matriz africana são negligenciadas pelos professores, que muitas vezes não conhecem ou não aceitam as religiões africanas. O resultado dessa intolerância reflete na educação que se pauta no preconceito e não na diversidade. O problema se torna ainda mais grave quando pensamos que a maioria das escolas brasileiras, quando ligadas a alguma religião, restringem-se a religiões de origem europeia. Quanto a isso, a pesquisadora Marina Horta afirma, com razão, que a criança negra brasileira precisa se enxergar como parte formadora da sociedade, não como vítima ou algoz e sim colaboradora. Tão importante como denunciar a discriminação é apresentar ao universo infantil motivos para se interessarem e valorizarem as culturas africanas (Horta, 2010: 6)

Carol Fernandes é uma jovem escritora que se revela por seu talento seja nas belíssimas ilustrações que a obra nos apresenta, seja pela história envolvente da encantadora Odara. Fernandes é pedagoga formada pela escola de Educação da UFMG, nasceu em 1987, na cidade de Belo Horizonte, onde mora ainda hoje. A edição cuidadosa, ilustrada em aquarela e lápis de cor, nos apresenta o olhar da professora que, com capricho e ternura, traz respeitosamente para o universo infantil a grandeza dos mitos africanos na figura de Iemanjá.

A obra estabelece um forte diálogo com as questões ligadas à escrita de mulheres negras por trazer poeticamente a potência da presença de Iemanjá e seu arcabouço de representações ligado à força da ancestralidade que a entidade e todo panteão africano carrega. Tal força pode ser mencionada como um aspecto predominante da estética de Carol Fernandes. Isso fica muito claro quando temos acesso às demais ilustrações da autora ou a um Zine produzido artesanalmente por ela chamado Mulheres que guardo em mim. Nele, a prosa poética tece uma teia que conecta mulheres ligadas à autora a outras que se identificam com a trajetória da mulher negra brasileira. O texto que explica o pequeno e delicado livro já carrega a questão da ancestralidade e diz muito sobre a estética de uma autora que é também ilustradora:

Em uma noite dessas eu conversei com minha bisa Francisca, que vez ou outra me visita em sonhos. Acordei com algumas palavras dançando em minha mente, mas com o passar dos dias o som dessas palavras aumentou muito e eu percebi que precisava escrevê-las. Escritas, agora elas não paravam de brincar. Brincaram tanto, mas tanto, que acabaram encontrando suas próprias cores. (Fernandes, 2019, Quarta capa.)

A referência à “bisa”, bem como essa voz que ecoa do passado e chega para encontrar as próprias cores nos remete ao célebre poema de Conceição Evaristo, “Vozes mulheres” (2008). A voz da ancestral de Fernandes coincide com o início do poema – “A voz de minha bisavó/ ecoou criança/ nos porões do navio” – e adquire uma perspectiva de superação quando dança, brinca e ganha identidade. Aqui, a voz da filha ganha força, como no poema – “Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância/ O eco da vida-liberdade” – o som das palavras aumenta e a artista encontra a necessidade de transformar em palavras o que antes eram imagens para dar a essas vozes, contornos próprios.

A obra de Carol Fernandes segue uma tradição da escrita de mulheres negras a que Conceição Evaristo se inclui e defende, afirmando ser Carolina Maria de Jesus uma de suas predecessoras. A epígrafe do livro aqui resenhado, Coração do mar é a evidência desse lugar em que a autora decide se posicionar entre as escritoras brasileiras contemporâneas. O trecho do poema “Recordar é preciso” de Evaristo já insere o leitor na atmosfera da riqueza ancestral e da força das águas de Iemanjá: “Sou eternamente náufraga, / mas os fundos oceanos não me amedrontam/ e nem me imobilizam.”

As aventuras de Odara e sua identificação com Iemanjá trazem para o universo da criança a perspectiva da cultura negra longe da estereotipia e cumpre o que se espera dessa categoria, pois as obras infantojuvenis podem desempenhar, além de todas as propriedades estéticas próprias de sua natureza, um papel decisivo na construção de uma sociedade que, por se afirmar diversa, multicultural e pluriétnica, precisa considerar seus componentes culturais africanos e afro-brasileiros como integrantes fundamentais e, por conseguinte, ser mais justa e igualitária. O livro ainda cumpre o propósito da Lei 10.639/03 que ressalta a importância do ensino da cultura africana e afro-brasileira nas escolas tornando-as componentes obrigatórios no currículo escolar.    

A obra de Fernandes insere a criança naturalmente no universo mitológico das religiões de matriz africana, pois, além da imagem de Iemanjá ser uma referência positiva e fundamental para a protagonista, o nome da personagem também nos remete ao panteão africano, pois Odara é uma das fases de Exu, poderoso orixá que representa a ligação entre os humanos e os deuses. Conhecido por seu temperamento travesso, na fase Odara, ele se encontra em harmonia, livre do caos.

Se pensarmos na construção da identidade da criança como algo que vai passar inevitavelmente pelos referenciais que forem a ela apresentados, é fundamental que ela tenha contato com os diversos elementos de formação da cultura brasileira pelos motivos já elencados aqui. Dessa forma, a figura de Exu – estigmatizada, em muitas situações, como a imagem do mal, demonizado – apresentada em sua fase harmônica é uma maneira de reverter estereótipos e cumprir um dos mais importantes papeis da literatura infantojuvenil, que é oferecer à formação da criança uma gama de informações para que se torne um adulto intelectualmente mais crítico e sensível.

Dessa forma, os livros que retomam traços e símbolos da cultura afro-brasileira, tais como as religiões de matriz africana, a capoeira, a dança alcançam um estímulo positivo e uma autoestima favorável ao leitor negro, bem como uma possibilidade de representação, segundo Jovino, que permite ao leitor não negro tomar contato com outra face da cultura afro-brasileira que ainda é pouco explorada na escola, nos meios de comunicação, na sociedade em geral. Trata-se de obras que não se prendem ao passado histórico da escravização. (Jovino, 2006, p. 216).

Carol Fernandes é uma escritora que, já no início da carreira, revela-se por seu compromisso com a estética afro-brasileira. Leitora de Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, a educadora já desponta por uma narrativa sensível e expressiva que merece ser lida pelas crianças para que tenhamos adultos com sensibilidade para a diversidade presente na cultura brasileira.

Nepomuceno-MG, junho de 2020

Referências

FERNANDES, Carol. Coração do mar; ilustrado por Carol Fernandes. Belo Horizonte: CriviNHO, 2019.

FERNANDES, Carol. Mulheres que guardo em mim. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.

CARDOSO, Rosane. A criança que se lê, o mundo que se percebe, o sonho que se constrói: possibilidades da inclusão étnico-racial. In: OLIVEIRA, Alexandre et alii. Deslocamentos críticos. São Paulo, Itaú Cultural/Babel, 2011, p. 129-142.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

HORTA, Marina Luiza. Colorindo a história: a literatura infantil afro-brasileira de Heloisa Pires de Lima. In: literafro – Portal da literatura afro-brasileira. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/274-colorindo-a-historia-a-literatura-infantil-afro-brasileira-de-heloisa-pires-de-lima-critica. Acesso em 10 jun. 2020.

JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In: SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (Org). Literatura Afro-Brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro – Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006

ZILBERMAN, Regina. A Literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2005.

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* Cristiane Cortes é Doutora em Letras, Literatura Comparada pela UFMG, pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, desta Instituição, e professora efetiva de Literatura e Redação do CEFET MG, campus IX. Coorganizadora dos volumes críticos: Mulheres em letras: Diáspora, Memória e resistência. 1. ed. Viçosa: Gráfica Universidade de Viçosa, 2019; Escrevivencias: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. 1a. ed. Belo Horizonte: Idea, 2016; Literatura Afro-Brasileira - Abordagens na Sala de Aula. 1a. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

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