Tradição, opressão e amor em Sob as árvores de udalas, de Chinelo Okparanta

 

Wilson Barreto Fróis

homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem;

a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.

(Karl Marx)

 

 

Em 2023, a editora paulista Kapulana publica Sob as árvores de udalas, da escritora nigeriana Chinelo Okparanta. Trata-se do seu primeiro romance (publicado originalmente em inglês, em 2015). Anteriormente, a escritora havia publicado a coletânea de contos Happiness, like water nos EUA, para onde migrou com a família aos dez anos, em 1981. Lá realizou seus estudos e hoje é professora universitária de Inglês e de Escrita Criativa.

 

Assim que a obra em foco foi lançada, sua recepção crítica foi bastante positiva, sendo indicada para várias premiações. No ano seguinte à publicação, foi vitoriosa com o prêmio “2016 Lambda Literary Award”, na categoria “General Lesbian Fiction”, uma vez que narra a experiência homoafetiva entre a menina Ijeoma e a amiga Amina. Quando esse enlace, abominado pelo contexto, se rompe, Ijeoma, ainda às escondidas, envolve-se afetivamente com a professora Ndidi.

 

Por meio de um delicado enredo, a autora desenvolve sua narrativa em seis partes e um epílogo, compreendendo setenta e sete capítulos, o que, aparentemente, pode dar uma ideia de um texto exaustivo. Entretanto, são seções curtas, lembrando blocos de uma novela televisiva, favorecendo a dinâmica de uma leitura gradual. O romance, nesse sentido, prima pela concisão, fazendo uso de frases nominais e de períodos sem complexidade sintática, o que confere ao texto leveza e fluidez. Além disso, o livro se destaca pelo seu refinamento estético. Como exemplo disso, é possível verificar em seu interior nuances expressionistas, quando promove uma conexão semântica entre os episódios da trama e os elementos da natureza.

 

Em relação ao enredo, a princípio, o leitor é levado a induzir que a história se desenvolveria em torno da guerra movida pela nação nigeriana contra a república separatista de Biafra, embate insano e cruel, que resultou em grave crise humanitária, que afeta diretamente a família de Ijeoma, narradora-protagonista. Esta experimenta a dor da perda do pai e é levada a viver, ainda criança, nesse contexto de conflito, praticamente como escravizada doméstica, com outra família em outra cidade.

 

Entretanto, à medida que a narrativa avança, a história do amor lésbico de Ijeoma se firma como o núcleo temático do texto, quando ela se envolve amorosamente com a menina Amina. A concretização dessa relação homoafetiva se torna dramática e inviável, a partir da sua interdição pela tradição religiosa que circunscreve a vida dos personagens. Em quase toda a tessitura textual, estabelece-se uma tensão entre o desejo de Ijeoma e o que dispõe a Bíblia, que se torna presente, de forma muito contundente, no romance.

 

Nesse livro de Chinelo Okparanta, as Sagradas Escrituras não são apenas aludidas ou sugeridas, como ocorre em outras obras da literatura universal, como, por exemplo, em Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane, em que se observa uma conexão com o último livro do Novo Testamento, por meio de imagens inseridas na narrativa que tratam de destruição, transformação e revelação. Tem-se ainda Na colônia penal, de Franz Kafka, em que o sofrimento de um prisioneiro numa estranha máquina evoca o martírio cristão no calvário. No romance nigeriano, a escrita bíblica ocupa o corpo da obra. Diversos trechos do Velho e do Novo Testamento, de Gênesis até Apocalipse, são transcritos para o romance, principalmente por meio da fala da mãe de Ijeoma, Adaora, que se apresenta como o principal porta-voz do discurso religioso na narrativa.

 

A presença é tão significativa que se pode pensar na concomitância de dois textos na estrutura narrativa. O primeiro, o texto propriamente dito, em que Ijeoma narra a sua luta, a sua resistência, no intuito de se tornar senhora de sua própria história; o segundo, uma espécie de contratexto, fragmentos bíblicos em que se expõe uma concepção de mundo que reorienta e asfixia os desejos dos personagens. Trechos sagrados, extraídos de vários livros, são inseridos no corpo do texto, funcionando como fundamentação do discurso opressivo de natureza religiosa. Essa vigilância, em várias oportunidades, se revela triunfante. Ora quando impede a realização dos amores de Ijeoma, ora quando esta cede aos valores tradicionais, quando se casa com o amigo de infância, mesmo sem ter amor por ele.

 

A saga de Ijeoma, por conseguinte, não é nada fácil, pois sua relação amorosa com Amina é duplamente transgressora, à luz da religiosidade cristã e da cultura do país, pois, além de agredir preceitos bíblicos, tenta unir etnias rivais – atitude condenada pela por sua nação. Adaora enfatiza para Ijeoma fragmentos do Antigo e do Novo Testamento, em que se condena o amor homossexual: “Você tem que entender que esse comportamento entre você e aquela garota é a influência de espíritos malignos. I ne ghe nti? Você está ouvindo? (p. 109). Microtextos de Levítico, Coríntios, Timóteo, Judas, Marcos, Apocalipse, dentre outros livros, reforçam, por meio da catequese de Adaora, a demonização do comportamento de Ijeoma. Legitimam a condenação da “abominação”, termo que repercute bastante no interior do texto e que aflige Ijeoma.

 

Ela, no entanto, não é passiva diante dessa doutrinação. Não se resigna diante desse patrulhamento ideológico, estabelecido pela família em consonância com a religião. Encontra a contradição no discurso bíblico ou na leitura que se faz desse livro. Reflete seu conteúdo, sua linguagem, seu sentido metafórico ou alegórico, seu contexto e flexibiliza seus cânones. A protagonista questiona o fato de Ló, personagem bíblico – que, para salvar a própria pele, sob o pretexto de não deixar que ocorra a “abominação”, amor entre pessoas do mesmo gênero – permitir que suas próprias filhas sejam transformadas em objetos sexuais.

 

Ló, “homem bom?” (...) “Ele ofereceu suas próprias filhas para serem usadas como os sodomitas desejassem(p. 88). O amor-padrão, de Adão e Eva, dos Escritos Sagrados, Ijeoma coloca em cheque: “Só porque a história se concentrava em um Adão e uma Eva, não significa que todas as outras possibilidades estivessem proibidas” (p. 99). A filha de Dona Adaora também não é reticente em relação à interpretação do aspecto punitivista do texto sagrado: “Todos os nossos castigos não foram absolvidos por Jesus na cruz?” (p. 257).

 

Em relação a esse caráter extremo da aplicabilidade das leis, o momento mais sinistro da narrativa ocorre quando a jovem Adanna, em função de seu amor homossexual, é barbaramente queimada pelos “fiéis”, que devem ter encontrado o argumento para a grave violência em Levítico, 20:13: “Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometerão uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão a sua culpa” (p. 107).

 

Esse acontecimento brutal e desumano leva narrador e leitores, inclusive, a questionarem o verdadeiro sentido da própria religiosidade cristã. Aqui, pode-se dizer que essa violência deturpa o conceito de religião, ancorado no princípio do amor, da misericórdia, da solidariedade, e se torna um argumento para dar vazão ao ódio, à bestialidade, a atitudes repugnantes. Esse instante, somado ao da guerra, mencionada anteriormente, inevitavelmente faz vir à lembrança versos de “Imagine”, memorável canção do cantor, compositor e ativista da paz de Liverpool, John Lennon”: “Imagine there's no countries /It isn't hard to do /Nothing to kill or die for /And no religion too /Imagine all the people /Living life in Peace”.

 

Nessa percepção crítica em relação a premissas, supostamente cristãs, o texto ainda coloca em rota de colisão Antigo e Novo Testamento, quando este reorienta a concepção daquele. O brutal apedrejamento das mulheres adúlteras, chancelado pelo Antigo Testamento, fica em xeque no próprio Evangelho de São João, no Novo Testamento, nas próprias palavras de Cristo, quando Este questiona a radical punição:
Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra (p. 229).

 

A obra, além da discussão da demonização do amor lésbico, proporciona outros debates. Sua temática exorbita desse núcleo semântico específico. Se não fosse assim, poderia, inclusive, diminuir o seu valor literário. O romance em pauta reflete também a subalternidade da mulher no contexto cultural, a ponto de que ela, como “costela”, para existir, é necessário que se case com o homem, subordinando-se a ele. A diminuição do valor feminino é patente quando, como exemplo, o personagem Chibundo, esposo de Ijeoma, nega à sua própria filha o brinquedo que seria reservado ao filho homem. Além disso, o romance valoriza aspectos culturais da terra natal da autora, quando insere na narrativa trechos dos diálogos das personagens na língua autóctone da Nigéria, o igbo, ao lado da língua em que se produziu originalmente a obra, e ainda insere cantos e lendas populares. O próprio titulo do livro, repercutido em momentos significativos da trama, é uma maneira de se fazer uma homenagem à identidade nigeriana. No transcurso do texto, episódios importantes da história ocorrem literalmente “Sob as árvores de udalas”, as quais identificam a natureza e a cultura da Nigéria.

 

Em que pese essa possibilidade de abertura à discussão de variados tópicos, além da alta capacidade polissêmica da obra como um todo, o romance gira em torno de um eixo semântico: a relevância da tradição. E o seu valor, pois, não é positivo na vida dos indivíduos. Impede-os de construírem livre e espontaneamente suas trajetórias existenciais. Esse aspecto, hegemônico no texto, é a própria protagonista que, no final do romance, sabiamente o define: Olhei em volta sem expressão, tentando entender onde eu estava. Foi então que percebi: Chidinma e eu estávamos sufocando sob o peso de algo maior do que nós, algo pesado e denso, o peso da tradição e da superstição e de todas as nossas lendas” (p. 349).

 

Itaobim, setembro de 2025.

 

 

Referências

 

LENNON, John Winston Ono; LENNON, Yoko Ono. Imagine. In: LENNON, John. Imagine, 1971. Disponível em: <https://www.letras.mus.br> John lennon> trad. Html> Acesso em: 25 agosto 2025.

 

OKPARANTA, Chinelo. Sob as árvores de udalas. Trad. Carolina Kuhn Facchin. 1ª. e São Paulo: Kapulana Publicações, 2023.

 

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* Wílson Barreto Fróis é estudioso voluntário do GEED, doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MINAS (2018). É autor de “A expressividade da angústia: Rubião, Kafka e o Expressionismo” e “Kafka em processo: da Lava a Vaza Jato”, ambos publicados em 2021.

 

 

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