Palavras subterrâneas: memória e literatura no romance
A biblioteca debaixo da cidade de Adelino Timóteo
Eni Alves Rodrigues
Suzana continuava a passar os dias emergida naqueles escritos, como se pretendesse desempoeirar a memória e encontrar fisicamente os autores escondidos, debaixo da caligrafia dos versos e das provas que lera, como quem decalcasse o alfabeto, para lograr a descida às catacumbas, para uma vez aqui despertá-los do sono das suas eternidade.
(Timóteo, 2023, p. 382)
Adelino Timóteo, escritor moçambicano exímio na poesia, na narrativa e nas artes visuais, entrega-nos em A Biblioteca Debaixo da Cidade, publicado pela Editora Rua do Sabão, em 2023, um dos mais densos romances da nova literatura moçambicana. Com 448 páginas, a obra trilha caminhos complexos da história moçambicana, da reconstrução e da memória coletiva, usando a metáfora da biblioteca subterrânea tanto como arquivo do inominado quanto como espaço de resistência literária.
Provocando o leitor, logo nas primeiras páginas, a refletir sobre o esquecimento e a falta de arquivo — “Pois, me iludia que o esquecimento destrói a alma escurece a memória.” (p. 264) —; Timóteo constrói um romance que opera o cruzamento de tempos, espaços e vozes. Não é casual que afirme “os arquivos do sofrimento, quando trazidos à cena literária, não se querem mórbidos; carregam esperança e ação”, lembrando Paul Ricoeur, ao discutir o papel da memória coletiva para a justiça dos povos (RICOEUR, p. 230, 2007). Em outra passagem, o teórico afirma: “a memória é expressão da vida e da identidade, enquanto o arquivo preserva o que se quer salvo do risco do esquecimento” (RICOEUR, 2007, p. 405).
A biblioteca subterrânea funciona como verdadeiro topos da “memória soterrada” (p. 382), onde “os fantasmas desses grandes escritores que estão no meu imaginário” são convocados não apenas como homenagem, mas como instrumentos de reinvenção do cânone e da própria historicidade africana. O diálogo com Machado de Assis, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Cervantes, bem como com figuras populares e anônimas da história moçambicana, expande o romance para o território do universalismo literário.
Como assinala Pierre Nora, “os lugares de memória existem porque não há mais ambientes de memória” (Nora, 1993, p. 8), sendo estes marcados pelo trabalho com símbolos, arquivos, rituais e textos, mecanismos através dos quais os povos tentam fixar o que escapa à vivência quotidiana. Timóteo transforma a ausência de ambientes reais – uma Beira distante, um Moçambique sensorialmente ausente – em lugares de memória textual, carregando o romance com estratégias de arquivo, reconstrução e transmissão entre gerações.
O próprio escritor, em entrevista no canal de YouTube (15 de agosto de 2025), explica ter escrito o romance “em reclusão, distante da África, sentindo a necessidade de revisitar as ruas da Beira como quem arquiva o passado e perscruta as ausências”. Esta fala, acessível no vídeo, é extensão oral da proposta textual do romance: a escrita como um reencontro subterrâneo com a cidade, as pessoas e os livros que o tempo não conseguiu sepultar por inteiro.
Nesse ambiente labiríntico, o romance recusa a linearidade temporal, mergulha em idas e vindas. Francisco Noa é categórico ao afirmar que “a moçambicanidade literária se constrói como rasura: por vezes aproxima-se do centro, por vezes, vive à margem, mas nunca abdica da sua capacidade de reinvenção e de diálogo com os outros espaços da língua portuguesa” (Noa, 2013, p. 37). Timóteo dramatiza o que diz Noa, ao trabalhar com personagens históricos, fictícios e fantasmáticos em simultâneo, promovendo a universalidade da literatura moçambicana sem diluir as suas raízes.
A obra valoriza a intertextualidade, abordando também sobre o que há de comum entre diferentes tradições atlânticas nos trânsitos entre Moçambique, Brasil e Portugal. O constante diálogo com o Brasil – terra, também ela, de trânsitos e arquivos incompletos – inscreve a obra de Timóteo no conjunto dos grandes projetos literários pós-coloniais, reafirmando a ideia de um “mapa-múndi desenhado do avesso”, como propõe Achille Mbembe (MBEMBE, 2017, p. 181).
Nas páginas finais, A Biblioteca Debaixo da Cidade revela-se um livro sobre a própria necessidade da literatura, sobre a função do arquivo e da transmissão cultural: “Apenas os livros, e só eles, podem levar a levedar e voar em alto, com as suas asas, os livros soltam faíscas…” (p. 342). Essa postura do escritor ecoa, mais uma vez, Pierre Nora: “a memória é vida, carregada pelo grupo vivo de que ela faz parte, em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento” (NORA, 1993, p. 9).
Sob o signo da memória e da promessa, Timóteo não fecha a porta ao futuro, antes convoca o leitor a persistir no desafio: “Livros são eternos. Mamãe, já compreendo porquê os livros aqui têm vida eterna.” (p. 257). Com riqueza formal, agilidade narrativa e intenso diálogo com a história literária e política moçambicana, A Biblioteca Debaixo da Cidade é leitura indispensável para investigadores, críticos e leitores atentos ao devir da literatura moçambicana.
Betim, setembro de 2025.
Referências
YOUTUBE. Entrevista com Adelino Timóteo sobre “A Biblioteca Debaixo da Cidade”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=biadBBcys-A. Acesso em: 27 ago. 2025.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução: Mariana Echalar. Lisboa: Antígona, 2017.
NOA, Francisco. Letras de combate: questões de identidade, literatura e sociedade moçambicana. Maputo: Alcance, 2013.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução: Yara Aun Khoury. Revista Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 07-28, 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 27 ago. 2025.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François Tolentino et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
TIMÓTEO, Adelino. A biblioteca debaixo da cidade. Santo André: Rua do Sabão, 2023.
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* Doutora em Letras / Literaturas de Língua Portuguesa (PUC Minas). Professora de Português e Inglês Instrumental na Universidade Federal de Viçosa – MG. Bibliotecária da Prefeitura Municipal de Betim-MG. Pesquisadora filiada a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) e à AMPIC (Associação Mineira de Pesquisa e Iniciação Cientifica) Pesquisadora dos grupos de pesquisa: Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED) desde 2015 e Grupo de pesquisa Mikhail Bakhtin, desde 2023. Integrante da Equipe de apoio do literÁfricas/UFMG. (http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.