O abandono divino e a tomada de consciência

em Estela sem Deus, de Jeferson Tenório

 

Alen das Neves Silva*

 

Para que a literatura afirme sua potência própria, não basta que ela abandone as normas e as hierarquias da mimesis. É preciso que abandone a metafísica da representação. É preciso que abandone a “natureza" que a funda: seus modos de apresentação dos indivíduos e as ligações entre os indivíduos; seus modos de causalidade e de inferência; em suma, todo seu regime de significação.

Jacques Rancière 2008

Jeferson Tenório, escritor carioca que adotou Porto Alegre como morada, tem alcançado notoriedade no cenário literário brasileiro contemporâneo. Esse jovem autor foi premiado em 2013 por seu primeiro romance O Beijo na Parede, e com o seu segundo romance, Estela sem Deus, recebe em 2019, o prêmio Ages – Associação Gaúcha de Escritores – na categoria Narrativa longa e também é indicado ao Prêmio Minuano de Literatura, na categoria Ficção/ Romance – Novela. Atualmente está na finalização de seu terceiro romance, O avesso da pele e a conclusão de seu doutorado.

Tenório concilia o trabalho de ficcionista com a carreira acadêmica, pois é professor e pesquisador.  O autor propõe em sua literatura uma quebra da noção mimética ou da representação, suas personagens são a tentativa de apresentar a essência da escrita, a reflexão a partir da exposição. Assim, como propõe Rancière, é necessário que se abandone as normas de representatividade e de significações, pois desta forma a Literatura adquire sua potência que é dar voz às classes e coloca-las em contato para interagirem, produzirem questionamentos e proporem caminhos para possíveis respostas, lembrando que estas respostas serão múltiplas e situacionais.

Em Estela sem Deus, Jeferson desvela as mais profundas atrocidades que o ser humano traz em sua essência. Ele apresenta uma família que passa por situações que fariam qualquer um dar fim a sua sofrida existência. Nesta obra, Tenório nos apresenta a protagonista, Estela, sua mãe Irene, e seu irmão Augusto; todos convergem para uma realidade que é recorrente em muitas das famílias brasileiras que compõem a base da pirâmide social: o abandono pela figura paterna. Eles residem em Porto Alegre, mas devido à penúria em que vivem, Irene, a mãe, vislumbra apenas uma saída: enviar seus filhos para o Rio de Janeiro. O que a leva tomar essa decisão é o estupro que sofre e a tentativa contra Estela.

Durante a estadia em Porto Alegre, essa família se constrói, e se une, entre a solidão e o abandono. E esta temática perpassa o projeto estético de Jeferson Tenório, pois em seu primeiro romance, O beijo na parede, o abandono já se faz presente no título, assim como em Estela sem Deus. O autor confere à Estela essa fala: “Quando meu pai desapareceu, eu também não chorei.” (TENÓRIO, 2018, p.19). Assim, o abandono presente no romance, pode ser definido como uma inexistência de possibilidade de controle da própria vida, pois as personagens são levadas de roldão pelas situações vivenciadas.

Estela apresenta uma reatividade, mínima, às leis naturais, quando questiona a existência de Deus e sua benevolência. Sobre abandono, apoio-me nas palavras de César Aira, na aula-conferência “a-ban-do-no”; nela o autor diz que

Abandonar é permitir que o mesmo se torne outro, que o novo comece. E assim nunca abandonaremos o bastante, tão grande é nossa sede de desconhecido. (Por isso nos fizemos escritores.) Buscamos algo mais para abandonar, outra coisa, outra além, nos esforçamos como nunca nos esforçamos em nenhum dos trabalhos que empreendemos, mobilizamos toda nossa invenção, até mesmo a alheia, em busca de novas renúncias. E já não se trata de abandonar técnicas, gêneros, uma profissão, nossas velhas mesquinharias... O que aparece, afinal, como objeto digno de nosso abandono é a vida em que vínhamos acreditando até agora. (AIRA, apud Marquardt, 2008, p.34)

As diversas situações da não-presença de Deus conduzem a leitura para uma reflexão sobre até que ponto as religiões são (ou podem ser) o esteio para os necessitados. E necessidade é a base desta família sem identidade, ou seja, a não pertença é a marca destes sujeitos negros. Com essa temática o autor propõe reflexões sobre o que é existir e como é existir na sociedade. Ser sem Deus é ser sem identidade? Ou é ser sem personalidade? Tais dúvidas conduzem a leitura do romance e quando se imagina encontrar uma possível resposta, o autor “puxa o tapete” e desconstrói toda a argumentação. Para isso, apoia-se no desejo da protagonista de se tornar filósofa, uma vez que o questionar é o que mantém a atividade e o sentido de quem almeja ser um pensador.

A encenação da violência instiga reflexões sobre como a sociedade compreende o corpo adolescente, negro e feminino, pois a protagonista as vivencia de maneira sublime, e estigmatizada, ao ponto de se culpar por ter sofrido essa ou aquela violência. Dessa forma, Tenório discute como a violência institucional recai sobre o corpo feminino vulnerável e o deprecia. O texto do romance traz à tona os pensamentos de Estela, que são coabitados pelos jargões sociais de ser culpada por despertar o desejo dos homens, e também por toda e qualquer violência que venha a sofrer. Para expressar esse pensamento, o autor dá voz à “vítima”, Isaías, o filho do pastor que se apaixonou pela protagonista. O jovem relata as ordens de Estela, o que reforça o estereótipo de que a mulher é a culpada pelo desvio do homem. Apoiada no desejo de ser filósofa, a adolescente questiona e reflete sobre os acontecimentos. Assim, a obra abarca esse tom de tratado sobre as mais diversas dores da adolescência. Das paixões platônicas às reais, dos abusos físicos aos psicológicos, das privações de afeto às financeiras. Estela as questiona e se constrói ao tentar se entender nessa sociedade dilacerante. Seu questionamento aponta para a compreensão de que Deus é, e está, nas mulheres com quem convive e conviveu:

Quando me lembrei de minha mãe, quando fiz um esforço para enxergar cada detalhe do seu rosto, compreendi com assombro algo importante: que Deus estava mais próximo do que eu imaginava. Deus estava espalhado em algumas mulheres que conheci. Deus não era homem. Deus sempre foi mulher. Seria honesto pensar dessa forma. Suportar a vida como elas fizeram, dar conta de tudo era sobre-humano. Tive uma dor no peito e que me trouxe outra revelação: a de que Deus era, na verdade, minha mãe limpando o chão nas casas das madames1. Deus era minha mãe tendo de sustentar a casa sozinha porque meu pai nos esquecera2. Deus era a minha tia cuidando do tio Jairo com derrame3. Deus era a Melissa querendo voar pela janela. Deus era a minha madrinha Jurema suportando o Padilha4. Deus éramos nós sendo violentadas. Deus era eu carregando um filho morto no ventre5. Pensei que, se um dia eu voltasse a Porto Alegre, poderia dizer isso tudo a minha mãe. Talvez ela precisasse saber disso também. Queria que tivesse o mesmo espanto que tive. Quando passei por Copacabana, olhei o mar e pensei que não havia culpados, ou então todos eram. Sofremos o que tínhamos de sofrer. Não precisávamos ter medo de mais nada. A tristeza nos absolveria de Deus.” (TENÓRIO, 2018, p. 206)

A fala da protagonista demonstra uma tomada de consciência, que promove uma leitura dos diversos papéis que as mulheres assumem em suas trajetórias. Neste caso, o tom bíblico remete aos pecados capitais, e o autor mostra que tais sujeitos femininos performam o oposto para lidar com essas situações degradantes. Assim, quando se nota a soberba, a ação para combatê-la é a humildade, pois será a necessidade que fará lidar com a soberba, por exemplo, das patroas. Desta forma, Irene se torna sublime, ao reconhecer essa característica em algumas patroas. Essa atitude, apenas uma Deusa pode demonstrar. Outra faceta divina é a Tia Jurema que, para combater a avareza, se vê obrigada a lançar mão da caridade, pois é preciso ter compaixão e, assim, doar para o outro aquilo que a pessoa tem de mais precioso: o tempo. A tia que se dedica ao marido é a expressão clara da caridade, pois, as fragilidades humanas despertam esse sentimento naqueles que realmente se entregam e se dispõem a minimizar as dores que um ser humano pode viver.

Outra questão que já está enraizada na sociedade é o prazer sexual. No romance, surgem duas personagens que são privadas dele e que decidem vivê-lo. Irene e Estela, tomam consciência de que todas as violências que sofrem materializam-se na dualidade luxúria e castidade. Uma vez que ambas se lançam ao prazer de maneira consciente, ou seja, procuram um sentido para viver as relações sexuais, o sentido (ou sentidos) que encontram é que, ao experimentarem o prazer e se satisfazem com ele, violam sua “essência”, socialmente construída, de mulher-objeto para os homens. Desta forma, ambas se permitem ser felizes e esta felicidade, que pode ser momentânea, é necessária para elas diante de todas as atrocidades que sofreram e que tiveram o sexo como a válvula propulsora. Tenório encena o tom pecaminoso que o sexo e o prazer advindo dele adquirem, sim, nos abusos sexuais, na violência psicológica oriunda da religião e, também, na violência simbólica imposta pela sociedade, que as estigmatiza por serem mulheres, negras e periféricas. As personagens se questionam se devem ou não se relacionar sexualmente, se estão em idade para tanto e quais seus papéis na sociedade. Assim, quando chegam à conclusão de que se satisfazerem não é um crime, compreendem que a castidade era mais uma forma de controle social sobre elas.

Em consonância, tem-se a figura de Melissa que, neste tour pelos pecados capitais, é a inveja... que será contraposta com a bondade que ela pratica para com a amiga. A protagonista não esconde que Melissa é um ideal a ser alcançado, pois esta vive todos seus desejos na plenitude. Querer ser livre é um ato de bondade consigo mesma e se trata de uma atitude ou de um predicado divino. Esses sentimentos se unem a mais dois para que o leitor possa construir e compreender que Deus é mulher. A ira traz como dicotomia a paciência, pois será apenas com força e amor, que essas representações divinas femininas, Jurema e Estela, serão capazes de lidar com os abusos dos homens que cercam seus espaços: um pai ausente, um namorado sem personalidade, um marido machista. E por fim, a mais recorrente das lutas presentes no enredo, a preguiça. Irene será a faceta representante, pois a preguiça não pode estar presente na vida desta mulher-deus. Para combatê-la, a mãe de Estela não abre mão da responsabilidade de encontrar saídas para os entraves que a vida lhe impõe. Ela tem que buscar forças na fragilidade física a fim de poder cuidar dos filhos e de si.

Com a ausência dos companheiros, Irene pode apenas se fiar na responsabilidade que ser mãe para transpor as barreiras que a limitam. Para tanto, ser acometida pelo desânimo não se coloca como opção, e cabe a ela criar estratégias para sanar seus percalços: perdoar, se aceitar e se compreender como a solução. Assim, todas essas mulheres podem (e são) Deus, uma vez que se entendam como força e salvação. A noção de que o Deus masculino e bíblico é o único culpado de todos os males que tais personagens sofrem se comprova e se solidifica. Tenório em Estela sem Deus expõe que não ter o divino é não o ter da maneira canonizada pela parcela hegemônica da sociedade. Partindo da premissa bíblica de que os seres humanos são a imagem e semelhança do criador, então dizer que Deus pode ser mulher, lésbica, gay, negro(a), periférico(a), pecador(a) seria uma blasfêmia ou comprovação das palavras atribuídas a ele?

Belo Horizonte, março de 2020.

Referências

TENÓRIO, Jeferson. Estela sem Deus. Porto Alegre, Rio Grande do Sul: Editora Zouk, 2018.

MARQUART, Eduard. A ética do abandono: César Aira e a nova escritura, Florianópolis, SC, 2008.

 

Notas

[1] Espelhamento com um dos pecados originais expostos pelo cristianismo que foi combatido por: Necessidade.

[2] Espelhamento com um dos pecados originais expostos pelo cristianismo que foi combatido por: Responsabilidade.

[3] Espelhamento com um dos pecados originais expostos pelo cristianismo que foi combatido por: Compaixão.

[4] Espelhamento com um dos pecados originais expostos pelo cristianismo que foi combatido por: Força.

[5] Espelhamento com um dos pecados originais expostos pelo cristianismo que foi combatido por: Amor.

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Alen das Neves Silva é professor, graduado e Mestre em Letras, Estudos Literários, pela UFMG e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.


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