Machado de Assis, escritor negro

Paulo Sérgio de Proença*

 

Chega à terceira edição o livro de Eduardo de Assis Duarte, cujos estudos são referência para quem quer compreender a obra de Machado de Assis a partir do lugar de negro que ele foi e do qual produziu sua obra. Essa nova edição, enxertada com novos textos do autor carioca e com novos ensaios críticos, testemunha a receptividade e a pujança da investigação dessa dimensão da obra machadiana, em fase de exploração e descobertas.

A capa do livro estampa linda foto de Machado maduro, posando elegância, de barbas embranquecidas em contraste com sua vistosa pele negra. Como é possível, a partir dessa imagem, admitir que Machado era branco (como registra seu atestado de óbito)? Se nisso pode haver algum constrangimento, a sensação não pode estar ao lado dos que defendem a negritude do autor.

Quem gosta da letra impressa e lê também com as mãos vai apreciar muito a obra publicada pela Editora Malê, cujo nome homenageia a insurreição conhecida como Revolta dos Malês, ocorrida em 1835 em Salvador (quatro anos antes do nascimento de Machado de Assis); a Editora, ainda recente no mercado, já ostenta títulos relevantes, convergentes com escravidão, preconceito e racismo e dá a público a produção negra que, de outra forma, dificilmente seria conhecida.

Eduardo de Assis Duarte estudou Jorge Amado em sua tese; preparou novas edições do romance Úrsula de nossa primeira romancista negra, Maria Firmina dos Reis; organizou, com Maria Nazareth Soares Fonseca, a antologia crítica Literatura e afrodescendência no Brasil, em quatro volumes, que contempla a literatura afro-brasileira desde as origens; atualmente prepara novo livro sobre a ficção brasileira de autoria negra; e coordena o portal literafro, que publica exclusivamente autoras e autores negros e veicula produção de ensaios que estejam em conexão com os seus objetivos.

Apesar de não ter tido as mesmas motivações e de não relevar as origens étnicas de Machado de Assis como critério para entender sua obra, Magalhães Júnior já tinha percebido a relevância da escravidão em Machado de Assis desconhecido (1ª edição de 1955), mas sem eco significativo na crítica.

Depois disso, muita coisa aconteceu no Brasil: em 1978 surgiria o MNU-CDR (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial), em plena ditadura militar; a voz negra passaria a ser amplificada pela organização da resistência e disposição para reivindicar direitos, como a implementação de políticas públicas compatíveis com princípios elementares de justiça social, sempre operadas por instituições racistas. A década de 1980 foi agitada (como a de 1880 tinha sido), com a mobilização social pela redemocratização, a campanha das “Diretas já”, a instalação da Assembleia Constituinte; o MNU pleiteia iniciativas políticas nas quais pudessem ecoar as reivindicações dos movimentos negros e os esforços surtiram efeitos: a Constituição criminalizaria o racismo e medidas reparatórias passariam a ser adotadas pelo Estado. Por outro lado, a comemoração do primeiro centenário da Lei Áurea não foi motivo de comemoração para a população negra, que adotou o dia 20 de novembro para estimular a consciência crítica da condição étnica.

A ressaca do pós-guerra promoveu, a partir dos anos 1960, o surgimento do protagonismo de negras e negros, jovens, mulheres e minorias em luta por afirmação e reconhecimento; a independência de países africanos, a luta contra o apartheid e o surgimento de estudos africanos e afro-brasileiros ganhavam espaço nas universidades, com reflexos positivos também para pesquisas sobre a escravidão na história, na literatura, na antropologia. A crítica machadiana se enriqueceria também com o desenvolvimento das ciências linguísticas e literárias.

Os movimentos negros, dentre outras reivindicações, passaram a apontar a origem étnica de Machado, cada vez com mais consciência e veemência. Percebe-se, assim, que as injunções históricas interferiram decisivamente na interpretação da obra e do pertencimento étnico de Machado de Assis, como observou Hélio Guimarães (2017).

Nesse cenário surge Machado de Assis afrodescendente, a mais potente reivindicação não só da negritude de Machado, mas principalmente da proposição desse lugar social como chave interpretativa para se compreender a exuberante obra machadiana. Desde a primeira edição (2007), o livro de Duarte tem impactado novas pesquisas nos estudos machadianos.

Machado foi por muito tempo acusado de ter sido omisso quanto à escravidão e à sua ascendência étnica – e ainda é; sua considerável ascensão social, improvável para mestiços, seria prova de que ele estava no lugar próprio de brancos, o que se comprovaria pelo fato de em seus romances maduros personagens principais pertencerem à elite econômica e social; isso seria evidência de que o autor estava assumindo a ótica da classe dominante e sendo cooptado por essa sedução; essa nota parte da confusão entre narração e autoria, a partir da qual muitos veem em Brás Cubas um alter ego de Machado, por exemplo.

O fenômeno pode ser atestado, também, na recepção de Dom Casmurro, em que diversos críticos adotaram a perspectiva do narrador e interpretaram a obra de acordo com a proposta de Bento Santiago. Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Pujol e Astrojildo Pereira, fiando-se no narrado, consideraram Bento ingênuo e confiante; a Capitu, inteligente e pérfida, só cabia o banco dos réus. Pujol afirma: “Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu [...] traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela [...] instintiva e talvez inconsciente.” (2007, p. 209). Não é difícil concluir que a interpretação é alinhada ao patriarcalismo, calcado no relato de um de seus representantes, fruto da incompreensão do mecanismo enunciativo da obra, articulado sob a técnica da jinga capoeirista (para aplicar um princípio analítico de Duarte), em cujos movimentos a instância autoral se imiscui para desdizer o que seus narradores afirmam. Mantidas as especificidades, o mesmo vale para excertos em que Machado trata da escravidão; é por isso que dizem ter havido em sua obra silêncio e indiferença.

Machado de Assis afrodescendente indica que o autor não se omitiu quanto a temas espinhosos de seu tempo; a escravidão esteve presente em toda sua trajetória literária. Duarte apresenta peças e excertos principalmente de crítica teatral, crônicas, contos e romances e demonstra que as menções à escravidão não são poucas nem irrelevantes e chegam à irrisão da pretensa superioridade racial de brancos; o exemplário compõe a primeira parte do livro e é acompanhado de esclarecedoras notas explicativas, em frequência que não trunca a leitura. Na parte final há seis ensaios críticos, acompanhados por uma seção de fotos, as quais acrescentam sensações pictóricas a alguns lances da vida do autor.

 “Poética da dissimulação” sustenta que não há nenhuma passagem, nem de forma implícita, que sugira algum apoio à escravização nem deformação de negras e negros na literatura machadiana; muito menos foi motivo de trauma ou vergonha a condição afrodescendente; ocorre que Machado criou mecanismos próprios de expressão literária compatível com sua condição étnica “a marcar as escolhas do autor quanto à expressão antiépica, irônica e, mesmo, carnavalizadora que marca a maioria de seus escritos” (p. 274). “O jornalismo como tribuna” reconhece nas crônicas machadianas peças de intervenção consciente para tratar de assuntos espinhosos e denunciar a violência de que eram vítimas os escravizados. “A capoeira literária de Machado de Assis” atesta a ginga verbal, à moda capoeirista, “sempre pronto ao disfarce e ao engodo” (p. 285), mecanismo de defesa necessário à sobrevivência em arranjo social hostil. Em “Narrativas de escravização e branquitude”, Duarte analisa os contos mais incisivos: “Virginius (narrativa de um advogado)”, “Mariana”, “O espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana”, “O caso da vara” e o poema “Sabina”, escritos em que sobressai a violência.

 Nos enredos ficcionais machadianos é recorrente a morte do senhor, como registra “A morte do senhor e as memórias póstumas da escravidão”; nos romances, Machado declara sentença de morte ao regime, ainda que de forma simbólica, ao atingir a figura-pilar do sistema servil. “O caramujo e o carcará: vozes negras na luta antiescravista” contrasta estratégias literárias e políticas de Luiz Gama e de Machado. Ambos eram negros, pobres, órfãos e contemporâneos; mais aproximação: “convergem sobretudo na preparação do funeral dos escravocratas” (p. 338).

A Literatura em suas conexões com a afrodescendência é a paixão de Eduardo de Assis Duarte, como demonstra sua carreira de professor, de pesquisador e de ensaísta; para ele, a formação acadêmica não é prisioneira de exercícios de abstração, mas ferramenta e motivação para ação e para transformação do mundo a partir do questionamento de ideias que secularmente dirigem e controlam nosso imaginário. Assim, é preciso recontar a História; rever cânones literários; fugir às ideias impostas: é preciso reler Machado de Assis – e o mundo – a partir do lugar de negros ao qual pertencemos e do lugar de negro que o patrono da Academia Brasileira de Letras foi. Isso não é pouca coisa.

Machado de Assis afrodescendente retrata a competente trajetória acadêmica de Duarte, vitoriosa nas trincheiras das ideias, e continuará cada vez mais motivando a gente negra a descobrir a riqueza de sua História e de sua Literatura – nelas se reconhecer e delas se orgulhar.

 

Referências

DUARTE, Eduardo de Assis. Seleção, notas, ensaios. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Race and Color in the Reception of Machado de Assis.  Luso-Brazilian Review, 54(2), 2017.

LITERAFRO. O portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro.

MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971.

PUJOL, Alfredo. Machado de Assis. Curso literário em sete conferências na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. [Rio de Janeiro; São Paulo]: Academia Brasileira de Letras; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.


* Paulo Sérgio de Proença é Professor do curso de Letras da UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês (BA). É autor, entre outros, de Sob o signo de Caim: Machado de Assis e a Bíblia (2015), O Diabo protagonista em Machado de Assis: dilemas da eterna contradição humana (2017) e de O protagonismo do Diabo em Machado de Assis (2018).


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