Aimé Césaire: a palavra empenhada.1

 Maria Nazareth Soares Fonseca*

SOL SERPENTE2

Sol serpente olho fascinando o meu olho
e o mar miserável de ilhas crepitando nos dedos das rosas
lança-chamas e o meu corpo intacto de fulminado
a água exalta as carcaças de luz perdidas no corredor sem pompa
dos turbilhões de gelo em pedaços aureolam o coração fumegante dos corvos
nossos corações
é a voz dos raios cativados girando sobre seus gonzos de camaleoa
transmissão de anolis à paisagem de vidros quebrados são
as flores vampiras na troca das orquídeas
elixir do fogo central
fogo justo fogo mangueira de noite coberta de abelhas meu
desejo um acaso de tigres surpresos nos enxofres mas o despertar
estanhoso dá jazidas infantis
e o meu corpo de seixo comendo peixe comendo
pombas e sonos
o açúcar da palavra Brasil no fundo do pântano.

 

A importância de Aimé Césaire, como poeta, dramaturgo, orador e político, é sempre ressaltada quando são relembrados aspectos de sua trajetória política e literária, particularmente a partir do momento em que ele deixa sua terra natal, a Martinica, para concluir seus estudos em Paris, como bolsista do governo francês. Ao deixar seu país, Césaire sentia-se influenciado pelas ideias que o império colonial francês difundia sobre a assimilação, considerada, nos espaços colonizados, como condição para vivenciar a civilização. Como “herdeiro do humanismo crítico do século XVIII” (DELAS, 1991, p. 7), Césaire chega a Paris no início da década de 1930, trazendo em sua bagagem muito dos estereótipos legitimados pela civilização europeia com relação aos povos africanos.

Em Paris, desde o início da década de 1930, Césaire vivencia o desconforto de se sentir estrangeiro na capital francesa, que o acolhe, mas indica-lhe a cada momento ser ele pertencente a outro espaço, o da Martinica, que, vista a distância, podia ser melhor compreendida por ele em sua condição de colônia francesa. Césaire logo perceberá que ser francês na Martinica não é a mesma coisa que saber-se francês, tendo de viver no país que subjuga vastas regiões das Antilhas e do Caribe com a monocultura da cana de açúcar, o que expõe um traço perverso da colonização gerenciada pela França e pela Inglaterra. Ainda assim, é em Paris que Césaire terá oportunidade de ampliar seus estudos e vivenciar a ebulição de novas ideias sobre o continente africano e suas culturas. Vale lembrar que, na década anterior, em 1928, o romance Banjo, do norte-americano Claude Mac Kay, já tinha sido traduzido para o francês, e que, em 1936, é publicada a obra Histoire de la Civilisation Africaine, do etnólogo alemão Léo Frobénius, que repercutirá nas teses a serem defendidas pela Negritude. Essa obra de Frobénius e outras de Maurice Delafosse sobre o continente africano exercerão forte influência na formação de Aimé Césaire como negritudinista.

Em Paris, Césaire associa-se a outros estudantes negros como ele vindos da África, como Ousmane Socé, do Senegal, que publicará o romance Karim, roman sénégalais, em 1936, cujo tema aborda o sentimento vivido por Césaire: o de estar na interseção entre duas culturas. Césaire se associará, também, a Léopold Senghor, do Senegal, e a Léon Gotran Damas, da Guiana Francesa, este conhecido de Césaire, desde os tempos da escola Victor Schoelcher, na Martinica.

Em 1934, Aimé Césaire funda o jornal L’Étudiant noir, juntamente com Léopold Senghor e Léon Damas. Nesta publicação, aparece, pela primeira vez, o termo negritude que mais tarde irá consubstanciar o movimento em defesa dos valores da África negra e da independência de suas novas nações. Enquanto se empenhavam na publicação de números do L’Étudiant Noir, Césaire, Damas e Senghor tomaram contato com as obras de escritores negros americanos como Langstone Hughes, cujos poemas são publicados em seis números da Revue du Monde Noir, nos anos 1931 e 1932, em Paris. Pela primeira, como acentua Kesteloot (1962, p. 23), os negros tomam a palavra para dizer aos seus iguais que era preciso lutar contra a alienação advinda da imposição de valores ditados pela cultura europeia e fortalecer as vozes que dizem não ao esmagamento cultural imposto pela colonização, na África e nas Antilhas.

No ambiente parisiense dos anos 1930, o jovem estudante, que saiu de uma Martinica marcada, à época, por forte “alienação cultural das elites e por intenso preconceito de cor em todos os níveis da sociedade” (Kesteloot, 1962, p. 14), irá compreender, de forma mais profunda, o perverso processo de assimilação imposto aos espaços colonizados, responsável pela imposição de diferentes formas de dominação que fabricam as imagens de um “bom negro, um verdadeiramente bom negro, o bom negro para o seu patrão”3. Os versos do famoso poema de Césaire, Cahier d’un retour au pays natal, nascem em um momento em que Césaire convive com a efervescência da vida intelectual de Paris, com ideias que lhe permitiam rever sua condição de negro oriundo de uma colônia francesa nas Antilhas, de um mundo que hostilizava os africanos. Em estado de “extraordinária ebulição” (KESTELOOT, 1962, p. 24), Césaire escreve os versos do longo poema publicado em Paris, em 1939. O livro, entretanto, passará despercebido do público até a edição da Présence Africaine, em 1947, através da qual a palavra empenhada de Césaire anunciará ao mundo sua revolta diante da situação vivida pelos negros, expressa na construção poética dos sentidos da palavra negritude em versos do Cahier:

Ma négritude n'est pas une pierre, sa surdité ruée contre la clameur du jour
ma négritude n'est pas une taie d'eau morte sur l'œil mort de la terre
ma négritude n'est ni une tour ni une cathédrale
elle plonge dans la chair rouge du sol
elle plonge dans la chair ardente du ciel
elle troue l'accablement opaque de sa droite patience.4

O termo negritude nomeará um esforço de desalienação “de toda uma raça” e, aos poucos, metaforicamente, edificará as fortes colunas com as quais se construirão ideias e ações voltadas à redescoberta das origens africanas do povo da Martinica e ao fortalecimento das lutas pela descolonização da África (KESTELOOT,1962, p. 23). Considere-se que, à época, as propostas do visionário Aimé Césaire não alcançaram a maioria dos estudantes negros que, como ele, estudava em Paris, num momento em que a ameaça da Segunda Guerra Mundial impunha-se inexorável e o racismo alcançava níveis inimagináveis na Alemanha.

O Cahier é lançado, em Paris, sob um clima de desamparo. O poema, épico e lírico ao mesmo tempo, assume estratégias discursivas inovadoras e pungentes que se exibem no uso que o poeta, “o pequeno selvagem que sequer conhece os dez mandamentos de Deus”,5 faz da língua francesa, tensionando-a com sonoridades e ritmos que destacam traços da herança cultural africana. A força da revolta contra um sistema excludente e racista etnocêntrico, contra a razão e o racionalismo ressalta a importância dos versos do Cahier para a concretização dos pressupostos da Negritude e a crítica à ideologia do colonialismo.

A linguagem hermética do poema e as construções imagéticas que remetem ao universo antilhano e às culturas afrodescendentes antecipam, de certa maneira, os arranjos literários que se mostrarão na poesia de Césaire e mesmo em seus textos para o teatro. A força inventiva do poema deixa claro o propósito de mostrar ao mundo a exuberância das manifestações créoles próprias de culturas que se formaram com a mão-de-obra africana escravizada. Com esses artifícios inovadores, a linguagem do Cahier expressa, poeticamente, a revolta contra a situação vivida pelos negros, no cenário da escravização dos africanos e da colonização, expressando, ao mesmo tempo, a proposta da Negritude para a edificação de uma sociedade livre e justa. Como salienta Benelli (1987, p. 25), a revolta de Césaire não se fortifica em ódio, porque, para ele, o ódio é ainda uma forma de dependência, como acentua o escritor, em uma passagem da peça Et les chiens se taisaient (1958, p. 57-580): “Qu’est-ce la haine, sinon la bonne piece de bois attachée au cou de l’esclave et qui l’empêtre ou l’énorme aboiement du chein qui vous prend à la gorge”6. Como se depreende do trecho citado, ao ressaltar a ineficácia do ódio, Césaire defende uma ação revolucionária calcada na fraternidade, no amor ao outro, também escravizado pela ganância capitalista. Benelli acentua que, ao distender os pressupostos da Negritude ao proletariado europeu, Césaire faz com que o movimento se amplie para alcançar outros “condenados da terra”; a revolta do negro As várias explicações de Aimé Césaire sobre os sentidos da Negritude demonstram sua intenção de ver o movimento como uma forma de luta pela conscientização dos direitos dos negros e não como um tratado ou conceito filosófico. Para ele, a Negritude é, antes de tudo, uma reação contra as ideias que justificavam a colonização e a assimilação, conforme explica a Charles H. Rowell, em texto publicado na revista Callaloo 12, de 1989. Rejeitando as visões que acentuavam no movimento da Negritude formas de um racismo negro contra o racismo branco, uma espécie de racismo às avessas, Césaire destaca o caráter de anti-alienação do movimento.

As ideias de Aimé Césaire estão presentes em suas obras poéticas e, de forma acentuada, naquelas pertencentes ao gênero teatral, sobretudo, porque, nas peças, ele conseguiu investir, de forma mais concreta, em dramas vividos pelo homem negro submetido aos horrores da opressão e às provações que lhe são impostas, acentuadas pelo medo, desespero e pela solidão. Estes sentimentos estão em Et les chiens se taisaient, em suas duas versões: 1946 e 1956, quando retoma a paixão de Cristo para ressaltar as provações sofridas pelo protagonista Rebelle que, como Cristo, foi traído e vendido, precisando morrer para que seu sangue pudesse ser oferecido em sacrifício ao povo negro (MOREAU, 1987, p. P. 270).

Mas é, certamente, com a peça, La tragédie du roi Christophe - que, como Les chiens se taisaient, tem duas versões publicadas, em 1963 e 1970, que Césaire será reconhecido por sua força dramática. A peça retoma a história de Henry Christophe (1767- 1820), que se proclamou rei do Haiti, em 1811, tendo governado seu país até sua morte, em 1820. A história do rei haitiano será ressaltada por elementos que indicam a preocupação do autor com o destino das novas nações africanas saídas do longo período de opressão colonialista e com inovações cênicas reveladoras da intenção de explorar estratégias interativas capazes de provocar uma ativa participação do público. Pode-se ainda perceber, em La tragédie du roi Christophe, a preocupação do escritor martiniquense com as tradições populares de sua cultura, bem como com o mundo africano, particularmente marcadas pelo uso de estratégia dialogal, que caracteriza as diferentes versões da peça. O fato de Césaire reescrever a peça, para conferir-lhe maior intensidade dramática, revela o respeito que o escritor tinha pelas observações feitas pelos atores africanos sobre a figura do rei Christophe. É bastante conhecido o fato de o ator senegalês Douta Seck (1919 - 1991) ter incorporado, na representação de Henry Christophe, a simbologia do orixá Xangô, para celebrar a cosmologia Yorubá, bem como para fortalecer as referências à luta dos povos africanos contra o colonialismo.

Thomas Hale (1987, p. 197) relata o interesse de Aimé Césaire pela reação do público africano à peça, constatado em sua efetiva participação nas sessões realizadas no Festival de Dakar, no Senegal, em 1966. Nas grandes sessões abertas ao público, o escritor ficou atento à interação do texto com os espectadores e pode constatar que os africanos eram capazes de perceber nuances específicas do texto, o que indicava uma interessante diferença com relação ao que observara nas sessões exibidas para diversos públicos europeus. Essas características revelam a preocupação de Césaire por fazer de suas peças uma reflexão sobre situações concretas vividas em diferentes contextos africanos e antilhanos.

Alguns críticos referem-se ao aproveitamento, nos textos cênicos de Césaire, de referências concretas a líderes africanos que podem ser percebidas na construção de personagens e de situações alusivas a processos de libertação do colonialismo, bem como em referências à implantação de novas formas de governo, na cena internacional. Nas diferentes versões de La tragédie du roi Christophe, podem-se perceber algumas das alterações assumidas por Césaire para que a peça, ao encenar uma história que se passava distante da África, pudesse assumir situações muito concretas vividas em diferentes países africanos. Muitos estudiosos da dramaturgia do escritor martiniquense perceberam as estratégias desenvolvida por ele, no sentido de fortalecer a interação das peças com os diferentes públicos. Um deles, Thomas Hale, detectou, na construção da personagem central da peça La tragédie du roi Christophe, o aproveitamento de motivações inspiradas no comportamento de líderes africanos e em práticas de poder desenvolvidas na África. Além desse traço que faz de Henry Christophe uma personagem-símbolo, o teórico reiterou a preocupação de Aimé Césaire com a recepção de suas peças. Como já dito, a reação do público motiva o escritor a reescrever partes dos textos a serem encenados para diferentes públicos. Thomas Hale ressalta a intenção do escritor de dar às suas peças uma dimensão catártica e mesmo de retomar traços da tradição do teatro ambulante africano e de suas estratégias de interatividade com o público, através de performances de grande efeito cênico.

Essa estratégia já se mostrava em Une tempête (1969), inspirada em A tempestade, de Shakespeare, principalmente no papel destinado ao “metteur en scène”, o apresentador, o hierofante, o encarregado de “abrir a peça” ou de destacar o clima em que ela se desenrolará, estratégia que tanto remete ao teatro grego, quanto a práticas do teatro interativo produzido por Césaire. Em La tempête, o apresentador assume claramente a função do hierofante, do advinho que conhece os mistérios da vida e, em La tragédie du roi Christophe, o “présentateur-commentateur” singulariza a mesma função, ao acentuar o descompasso entre as cortes europeias, com seus rígidos papeis sociais e políticos, e os assumidos pelas novas nações africanas. O descompasso assinalado pela peça marca, claramente, a intenção parodística do texto, através da qual se manifesta uma espécie de antropofagia praticada pelo governo de Henry Christophe, quando “devora” as normas ditadas pela corte de Napoleão Bonaparte que o inspira.

La tragédie du roi Christophe, ao desenvolver-se a partir da mistura entre o parodístico e o trágico, indica o modo como a palavra empenhada, estratégia marcante da construção dos textos de Césaire, reitera a intenção de mostrar tanto Christophe, líder dos negros, quanto Pétion, representante da facção mulata do país, como sujeitos de uma nova ordem. A intenção parodística da peça precisa, portanto, ser considerada em seus diferentes sentidos porque é uma estratégia que inscreve a tragédia do rei num processo de auto-conhecimento e de amplidão contextual. Nesse sentido, por uma estratégia cênica de grande efeito, o rei haitiano passa a incorporar os dilemas de uma nova ordem político-social, a da descolonização em África. Ao assumir elementos do imaginário africano, a peça sela um compromisso com as culturas do continente, criticando, ao mesmo tempo, o modo como essas questões eram assumidas pela Martinica. Talvez, por isso, possa ser dito que essa peça, utilizando-se de uma estratégia singular, faz emergir do texto ações que se mostravam no espaço histórico-político de sua criação e em outros que conviveram com o longo do processo de colonização.

A palavra empenhada de Césaire está impressa em outro momento de sua trajetória, quando, ainda em Paris, critica uma posição tomada por seu amigo René Depestre, do Haiti. O momento a que me refiro, já aludido em texto publicado no ano 20007, remete ao poema "Lettre brésilienne"8 publicado na revista Présence Africaine, número1-2, de abril-julho de 1955, considerado por Mário Pinto de Andrade, conforme entrevista concedida a Michel Laban (1997), "um poema sangrento, de ruptura", uma “poética”, porque retoma dados da história do Haiti e da luta dos negros marrons, e a intenção de Aimé Césaire de fortalecer os signos da diferença e da alteridade. O poema faz claras referências a uma questão que é literária e política ao mesmo tempo, ao assumir a defesa de uma poética negra, tal como a entendiam os criadores da Negritude. Nesse sentido, o testemunho de Mário Pinto de Andrade (1997) sobre os antecedentes do Congresso dos Escritores e Artistas Negros, realizado em 1956, como uma iniciativa da Présence Africaine, fornece informações importantes relacionadas com a definição de um projeto de literatura nacional negra a ser legitimado a partir das independências dos espaços africanos colonizados.

Elementos dessa proposta estão delineados no poema de Césaire, porque ele, de certa maneira, expressa o compromisso da Negritude com as lutas dos africanos em busca de sua expressão legítima. As referências, no poema, ao escravo Boukmann, que comandou uma revolta no Haiti no século XVIII, aos negros marrons e, por extensão, à ação desenvolvida por eles contra os donos de escravos, na colonização da América Central e do Caribe indicam os sentidos transgressores construídos pelo texto poético do escritor martiniquense. A divergência entre Aimé Césaire e René Depestre, encenada pelo poema, remete a uma luta que se desenvolvia no meio literário, sustentada pelos intelectuais negritudinistas e defensores das revoluções africanas.

 “Lettre brésilienne”, em sua primeira versão, tinha um título incisivo, claramente voltado às propostas da Negritude: “Réponse à Depestre, poète haïtien (éléments d´un art poétique)9, que acentua a origem haitiana de René Depestre. Césaire critica, intencionalmente, o incentivo dado por Depestre à proposta de Louis Aragon, publicada em Les Lettres Françaises, em 2 de dezembro de 1953, de os poetas voltarem-se às regras tradicionais da versificação e ao soneto. A proposta de Aragon era dirigida aos poetas franceses e não teria tido maior repercussão se René Depestre, poeta haitiano, não a tivesse defendido em carta dirigida a Charles Dobzynski, publicada em 16 de junho de 1955, expondo, de certa maneira, seu desacordo com a poesia negritudinista, defensora de uma criação poética que assumia o ritmo e as construções características da oralidade e, sobretudo, as feições de uma busca identitária negra. Nesse sentido, é importante, no poema “Lettre brésilienne”, a conclamação feita a René Depestre para assumir a força da palavra poética através de gestos que retomem a luta dos negros marrons contra seus algozes:

Marronons-les Depestre marronons-les comme jadis nous marronions nos maîtres à fouet10 (p. 110).

Anunciam-se, nos versos do poema de Césaire, elementos de uma poética que, à semelhança das lutas dos negros marrons, não se intimida “com o chicote nas mãos do feitor”. Em termos literários, o apelo a Depestre, expresso pelo poema, insiste em valorizar as formas livres, as insubordinações poéticas, as construções que, metaforicamente, assumam a força advinda de um vodu poderoso”11, da religião do país de origem de Depestre, o Haiti. É também importante perceber, no poema, o modo como Aimé Césaire se apropria, ironicamente, de estereótipos construídos pelo discurso escravagista, para desconstruí-los:

Depestre j'accuse les mauvaises manières de notre sang
est-ce notre faute
si la bourrasque se lève
et nous désapprend tout soudain de compter sur nos doigts
de faire trois tours de saluer12.

Retomando o contexto das lutas empreendidas pelos negros marrons no Haiti, o poema assume a palavra marronagem e seus sentidos como uma força que paralisa a situação instalada pelo colonialismo ainda presente em espaços antilhanos e africanos na época em que Césaire publica o famoso poema.

Mais tarde, o próprio Depestre, em texto publicado no México, em 1978, utilizará a expressão “marronagem cultural”, para se referir a uma poética negra construída em processos de rebeldia, num meio cultural que a hostiliza13. De algum modo, o termo, no poema de Césaire, ao ser proposto como uma ação - marronizar -, aproxima-se dos sentidos construídos pelo verbo “canibalizar” e retoma as atitudes da personagem Caliban, recriada por Aimé Césaire na peça Une tempête (1966), uma releitura de A tempestade de William Shakespeare, como já mencionado.

Retoma-se, neste célebre poema de Aimé Césaire, a força da palavra empenhada que, como ferramenta poética, cunhou a obra do escritor martiniquense, fazendo dela uma referência fundamental para se compreender uma escrita que acentua, na palavra, sua dimensão polissêmica e polifônica e, sobretudo, sua força literária e seus sentidos políticos.

A repercussão dessa palavra empenhada pode ser visualizada em várias obras de escritores e escritoras africanos(as) dos espaços culturais que assumiram a língua portuguesa como língua oficial, fazendo dela uma estratégia de afirmação de uma proposta literária e dos rumos que as literaturas dos diferentes países poderiam seguir.

Notas

[1] - Versão ampliada da palestra proferida no Seminário Internacional sobre Njinga Bandi e Aimé Césaire em Luanda, Angola, em dezembro de 2013.

[2] - Poema traduzido por Éclair Antônio Almeida Filho. Disponível em:

http://cantarapeledelontra.blogspot.com.br/2009/11/tres-poemas-de-aime-cesaire.html. Acesso em 8/12/2013,

[3] - Tradução livre dos versos: “Les blancs disent que c’était un bom n`egre, un vrai bon negre, le Bon n`egre à son maitre (CÉSAIRE, 1983, p. 59).

[4] Minha negritude não é uma pedra, sua surdez corrida contra o clamor do dia
minha negritude não é uma almofada de água morta sobre o olho morto da terra
minha negritude não é nem torre nem catedral

ela mergulha na carne vermelha do solo
ela mergulha na carne ardente do céu
penetra na prostração opaca de sua real paciência. (Tradução livre da autora do artigo).

[5] - O aposto retoma o verso do Cahier “Ce-petit-sauvage-qui-ne-sait-pas-un-seus-des-diz-commandements-de-Dieu.

[6] - “O que é o ódio senão uma boa peça de madeira presa ao pescoço do escravo e que o interdita, ou o agudo uivo de um cão preso na garganta”. (Tradução livre da autora).

[7] - FONSECA (2000).

[8] - Neste trabalho utilizo a versão do poema transcrita por Lilyan Kesteloot e B. Kotchy em: KESTELOOT, L. et KOTCHY, B. Aimé Césaire; l’homme et oeuvre. Paris: Présence Africaine. 1973, p. 109-111.

[9] “Resposta a René Depestre, poeta haitiano (elementos de uma poética)”. Tradução da autora. A versão original do poema foi publicada na nova série da revista Présence Africaine, n. 1-2, 1955.

[10] - “ Marronizemo-los, Depestre, marronizemo-los (os versos da poética francesa tradicional)/como outrora marronizávamos nossos feitores”. Tradução livre da autora.

[11] - Remete-se ao que é dito no poema : “En verité le sang est un vaudou puissante” ( O sangue é, verdadeiramente, um vodu poderoso” - tradução livre da autora.

[12] - “Depestre, eu acuso os maus modos do nosso sangue/ é nossa culpa se a borrasca se levanta/ e nos faz desaprender rapidamente contar nos dedos e fazer referências?” Tradução livre da autora.

[13] - Refiro-me ao texto “Problemas de la identidad del hombre negro en las literaturas antillanas” (1978), de René Depestre.

Referências

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Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Letras, Literatura Comparada, pela UFMG e professora aposentada dos cursos de Letras da UFMG e da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq, coordena o GEED – Grupo de Estudos de Estéticas Diaspóricas, desde 2010. Além de diversos ensaios e artigos críticos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, organizou os livros Brasil afro-brasileiro (2000) e Poéticas afro-brasileiras (2003). É autora dos ensaios publicados nos livros Literaturas africanas de língua portuguesa – percursos da memória e outros trânsitos (2008) e Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). E coorganizadora da coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (4 vol., 2a Reimpr., 2021).


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