Em que língua escrever?

A língua e seus conflitos na literatura da Guiné-Bissau1

 

Maria Nazareth Soares Fonseca*

 

Posso dizer que a oralidade é o elo mais forte da minha escrita. Para mim a oralidade dá mais dinâmica à palavra. Não gosto da palavra escrita que não se pode “ouvir”. Para mim essa história de ser bilingue, ou trilingue, ter uma cultura ser africana e escrever numa língua europeia é um grande dilema. Porque, muitas ideias, que eu tenho, as ideias mais belas e mais profundas, tenho-as na língua em que as coisas me foram contadas ou em que certas ações realizadas, tratando-as de fatos reais. Os momentos mais sagrados da minha vida ou da vida de qualquer indivíduo só podem ser expressos na língua que aprendemos desde o primeiro momento. Para os meus filhos será talvez o português. Mas para mim? Nem uma expressão de amor, sem uma expressão de amargura, nada que se pareça, não pode ser em português.2

 

Os dilemas ressaltados pela escritora Paulina Chiziane, de Moçambique, no trecho de sua entrevista a Patrick Chabal que serve de epígrafe a este artigo, estão relacionados com conflitos que dizem respeito ao fato de a língua portuguesa - antes língua da opressão colonialista - ter-se transformado em língua oficial de alguns países do continente africano.

A questão aludida por Chiziane acirra indagações que sempre estiveram presentes, de forma mais intensa em alguns países, mais branda em outros, voltadas à discussão dos caminhos a serem trilhados pela literatura nos espaços colonizados. Relaciona-se, portanto, com as tensões que transparecem no modo como o escritor utiliza a língua portuguesa para se expressar em territórios de feição bilíngues ou multilíngue. Nas literaturas africanas de língua portuguesa, tais tensões estão presentes nos embates ferrenhos travados em defesa do uso mais desarmado das línguas europeias, ainda no período colonial, e na experiência desconstrutora, legitimada por produções literárias de escritores que intencionalmente rasuram a língua literária para fazer dela um instrumento capaz de assumir as transgressões que se efetivam em culturas caracterizadas por uma grande diversidade de línguas e de costumes. A escrita literária, considerada veículo para a concretização de identidades culturais híbridas, mescladas, imprimem, na língua oficial de cada espaço, marcas e tons diferenciados.

Essa estratégia é deliberadamente assumida por escritores e escritoras africanos que decidem construir os seus textos em crioulo ou em português ou misturando intencionalmente a língua oficial do seu país com as línguas “da terra” ou mesmo decidindo publicar os textos somente na língua de uso, o crioulo. Na literatura da Guiné-Bissau, por exemplo, o texto literário produzido em crioulo pode ser publicado, no mesmo livro, junto com a sua “tradução” em língua portuguesa ou legitimar o uso das duas línguas, ainda quando assume de forma mais concreta as estruturas da língua oficial. Essas opções que, sendo literárias, são também políticas, motivam intensos debates e reflexões relacionados ao uso da língua oficial como língua literária nos países africanos que têm o português como língua oficial e mesmo naqueles em que a literatura assume os conflitos decorrentes do uso das línguas europeias.

Essas questões vêm à tona sempre que se pergunta a um escritor africano por que escrever em língua europeia. E quando a pergunta é feita a um escritor de “projecção midiática”3 como Mia Couto, as discussões ampliam o seu alcance.

A resposta do escritor moçambicano: “Minha pátria é a minha língua portuguesa”, ao retomar, em diferença, a afirmação conhecida de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”, em que expõe a questão sempre presente na criação literária de escritores de espaços colonizados: “Em que língua escrever”?

Essa questão já se fazia presente na proposta literária do escritor Aimé Césaire, da Martinica, quando, no célebre Cahier d’un retour au pays natal (1983) assume que a liberdade do homem negro - e por extensão a de todos os dominados - está atrelada a “uma consciência poética” (CÉSAIRE, 2044, p. 14) que seja capaz de quebrar o silêncio imposto por processos de opressão dos quais, certamente, faz parte a obrigatoriedade de uso de uma língua dominante que silencia as demais num mesmo território cultural. O poeta da Negritude legitima a rasura das línguas europeias levadas aos países africanos pela colonização como uma estratégia de desmontagem.

Com a mesma intenção, escritores africanos de língua portuguesa assumem o confrontamento da opressão no âmbito da língua portuguesa; alguns, como os oriundos da Guiné-Bissau optam, por vezes, pela utilização de “línguas híbridas” como o crioulo guineense, “língua autônoma tanto do ponto de vista gramatical quanto lexical” (AUGEL, 2007, p. 82). Moema Parente Augel (2007) observa que o crioulo da Guiné, o guineense, tem seu início de formação no decurso do século XVI, com os primeiros contatos entre os viajantes e navegadores portugueses e as populações da costa da Senegâmbia, espaço em que se localizam o atual Senegal e a Gâmbia e as regiões adjacentes: Casamansa, Guiné Conakri e Cabo Verde. “Tolerado mas também combatido”, salienta Augel (p. 83), o crioulo passa a conviver com o português, conhecendo grande expansão no período das lutas de libertação. Esse fato faz com que o crioulo desloque-se do campo, onde circulava com maior intensidade no período anterior à independência, para o espaço urbano, onde se eruditizou, como observa LOPES (1988, p. 231).

Na história da expansão do crioulo, na Guiné-Bissau, verifica-se a passagem do estágio de comunicação rudimentar entre os viajantes e os nativos ao de língua de comunicação oral, desprezada pelos colonizadores, proibida ao ensino (LOPES, 1988, p. 231). O fato de ter um papel significativo na formação dos quadros revolucionários durante as lutas de libertação, dá ao crioulo guineense o estatuto de “língua da unidade nacional” . Talvez seja essa a razão que possa explicar o fato de o crioulo surgir na literatura como a língua na qual os sentimentos mais íntimos podem ser expressos com profundidade. Nesse sentido, pode-se dizer que se dá, com o crioulo guineense, o mesmo fenômeno apontado por Édouard Glissant (1980) na formação e expansão do créole antillais. Língua falada pela maioria da população das Antilhas, o créole, como o crioulo guineense, é a língua usual em processos comunicacionais e em várias instâncias. E na literatura oral, na oralitura (GLISSANT, 1981, p. 345), o crioulo está sempre presente.

O poema “Em que língua escrever”, (Na kal lingu ke n na skirbi nel) de Odete Semedo toca em conflito que está indicado em diversas produções literárias de escritores oriundos de países multilingues porque diz da importância que o crioulo tem no cotidiano dos seus falantes.

Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei crioulo!

Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Aos herdeiros do nosso século

Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
        (SEMEDO, 1996, p. 12-13)

Os versos do poema, publicados em 1a. edição no final do século XX, aludem à questão que a legitimação de línguas europeias como línguas nacionais dos países colonizados, no continente africano, acarretou aos falantes da língua veicular, estendendo-se às línguas étnicas, em uso em países multiculturais e multilíngues como a Guiné Bissau. As indagações que atravessam o poema de Semedo expressam os impasses que se põem entre falar crioulo, a língua de identificação nacional, o idioma em que se expressam os afetos mais íntimos, e escrever em português, a língua oficial do país.

O poema de Semedo, talvez de forma inconsciente, recupera questões que estão presentes no poema “Trahison”, do haitiano, Leon Laleau4, cujos versos expressam o desespero de se de usar a língua francesa para expressar os sentimentos mais íntimos. A traição se configura ao poeta pela imposição de escrever numa língua que não é a sua, de só poder cantar as suas emoções mais íntimas em idioma que o desnuda da língua que está em seu corpo como uma segunda pele. Escrever em francês seria, conforme se expressa no poema, trair os sentimentos do poeta com relação à sua terra, e, por extensão, ao poema que ele cria para expurgar a dor de aprisionar em outro idioma as palavras que saem do coração “vindo do Senegal”, referência que remete certamente aos seus ancestrais africanos.

Em que língua escrever”, de Odete Semedo, permite, pela proximidade que estabelece com o poema de Laleau, publicado na Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache, em 1948, a retomada de questões que, relacionadas ao contexto de produção do poema do poeta haitiano, reafirmam-se, conforme será demonstrado, no da escritora guineense.

O poema e Laleau, no contexto em que foi produzido, assume as intensas interrogações postas sobre a questão identitária nos espaços culturais ainda sob o domínio da colonização. Mas também significa o conflito existente em países que, tendo alcançado a liberdade, precisam ser enfrentados os problemas advindos da necessidade de assumir a língua da colonização como a língua da nova nação e, por isso, também como língua literária. É nesse sentido que uma observação feliz de Glissant, em nota à p. 345 do livro Le discours antillais, de 1981, expressa a necessidade de o texto literário, em culturas marcadas pela colonização, assumir marcas da oralidade que, transformadas em escrita, não deixam de expressar a força do grito ou do gemido5, trazendo explícito o tom da rebeldia.

No poema “Trahison”, de Laleau, a questão apontada por Glissant está presente quando se depreende, nos versos, uma espécie de malestar característico dos espaços colonizados e que se expressa na tentativa de legitimar, pelo menos no espaço da literatura, o bilinguismo ou multilinguismo, tentando frear o monolinguismo como exigência de uma instituição literária cada vez mais globalizada. Ao mesmo tempo em que se acirra a consciência de pertença que o monolinguismo tende a apagar, crescem as exigências de que a obra literária não apresente entraves à comercialização, à sua livre circulação por espaços culturais mais amplos. A constatação de uma incompatibilidade que trava a “língua do coração”, se anuncia no poema de Laleau e também no de Semedo a partir de recursos diversos de criação poética. O poema de Laleau é escrito em francês, língua oficial do Haiti (e do Senegal referido) e, por isso, trai os sentimentos do poeta e o pulsar de um “coração obsedante” que se sente pulsar conforme o ritmo de outra língua. O título, “Trahison”, por tal razão, pode ser entendido com diferentes significados: traição porque se escrevem em francês os sentimentos do poeta; também o é, porque significa permitir que a interdição à língua de uso, o crioulo, e às línguas étnicas em geral, também se expresse no poema. Considere-se ainda que um outro sentido poderia indicar que a aceitação do silenciamento da “língua do coração” é estratégia para que o poema possa ser conhecido além do universo de circulação das línguas orais. Nesse sentido, escrever o poema em língua francesa, metaforicamente, trai os anseios de libertação tão próprios às lutas que se desenrolaram no espaço da literatura negritudinista, legitimando um processo glotofágico6 que, em conflito, passa a ser aceito pelo poeta e, por extensão, pela antologia em que o poema que foi publicado.

Assumindo uma estratégia diversa, mas não tão diferente, Odete Semedo, decide escrever o poema em língua guineense e em português, garantindo, com esse recurso, a permanência do que Lopes (1996) considera “a sofreguidão do saheliano” (Apud Semedo, 1996, p. 6). Semedo assume deliberadamente o bilinguismo como uma ferramenta hábil ao trabalho de criação literária e, por isso, distancia-se da eficácia glotofágica aludida por Mata (2007, p. 84). No corpo do poema, as duas línguas, em aparente convivência, conflituam-se, como bem se mostra na estrofe seguinte:

Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
(SEMEDO, 1996, p. 13)

Em depoimento da escritora publicado no livro Do músculo da boca (2001), a questão da língua volta a ser tratada. A coletânea, organizada por Elias J. Torres Feijó, reúne depoimentos de mais de oitenta participantes do Encontro Galego no Mundo - Latim em pó, realizado em 2000, na cidade espanhola de Santiago de Compostela, e traz considerações muito importantes sobre a questão do uso da língua como expressão de cultura, ressaltando os conflitos que esse uso gera em espaços multilíngues, como o da Guiné-Bissau. Não é por acaso que, na publicação, no depoimento dos escritores Odete Semedo, da Guiné-Bissau, Mia Couto, de Moçambique e Paula Tavares, de Angola, a questão da língua é considerada a partir dos usos característicos das culturas a que pertencem os escritores.

Ana Paula Tavares conta uma lenda que fala de línguas, língua e silêncio. Falar a mesma língua não significa conseguir um maior entendimento. Sublinarmente, na lenda “Língua da terra” expõem-se os conflitos relacionados a poderes e à morte da multiplicidade. A mesma questão está evidenciada na declaração de Mia Couto quando se refere ao fato de a língua portuguesa, embora falada por pouco mais de 20% da população do seu país, Moçambique, à época da independência, ser a língua literária adotada pelos escritores. Mas é no uso que a literatura faz da língua portuguesa que o escritor destaca o fato de que escrever em português ser sempre um exercício de transformação porque possibilita que a língua, que ficou no país junto aos espólios da colonização, mostre-se como um idioma adequado “à cor e à textura na nação” (COUTO, 2001, p. 113).

Interessa particularmente acompanhar a visão que a escritora Odete Semedo desenvolve no texto publicado no livro Do músculo da boca (2001) porque, ao destacar o uso da língua, fala de línguas, das línguas várias com que se expressa o seu país. Carpindo os mortos, contando histórias, cantando os rituais de casamento, a língua, expressão dos sentimentos mais íntimos, é línguas, porque, na Guiné-Bissau, as línguas são várias como vários são os grupos étnicos. A escritora não deixa de ressaltar todavia que, para além dessa diversidade que caracteriza os contornos multilíngues da nação, é o crioulo guineense de base portuguesa, a língua franca “falada por cerca de 70% da população” (SEMEDO, 2001, p. 130) que ocupa o maior espaço na comunicação social, intermediando-se com a língua oficial, o português, usado na administração e no ensino. Pode-se dizer que, de fato, o país tem uma língua oficial, falada por menos de 20% da população, com uso ainda restrito a determinados espaços, e uma língua de uso que se faz intermediária ao português e às línguas étnicas. Em uma realidade sócio-cultural constituída de muitas feições linguísticas, diferentes acentos e variações, a língua literária terá mesmo que assumir o tipo de conflito sempre presente, retomado pela escritora no poema, “Em que língua escrever”. A diversidade linguística, no depoimento da escritora, acentua particularidades que se expõem na relação amorosa, doce, mas por vezes dura dos escritores guineenses com a língua oficial que obriga o escritor a optar sempre entre a língua do coração e a língua que atravessa fronteiras do país para levar os seus escritos para o mundo.

Édourd Glissant e Homi K. Bhabha e, no caso específico das culturas/literaturas de língua portuguesa, Inocência Mata, destacam aspectos significativos relacionados às demandas postas pela literatura que, de certa forma, estão presentes na interrogação que nomeia o poema de Semedo : “Em que língua escrever?” Essas considerações, ainda que forma breve, são aqui recuperadas.

Em textos publicados em 2003 e 20067, referi-me ao fato de Édouard Glissant sempre ter destacado os conflitos que se encenam no texto literário quando, no interior da língua literária, explicitam o enfrentamento a formas de controle impostas pelo uso da língua oficial. Na visão do teórico, as línguas europeias, transportadas para o Novo Mundo, foram alteradas a partir da “provocação” imposta pela palavra viva e por uma sintaxe particular que aos poucos foi “contaminando” a língua oficial da colonização, de uso obrigatório nos quadros administrativos, nas atividades escolares e nos contatos oficializados como “os da terra”. Não se pode desconhecer que à revelia da imposição de censura ao uso das línguas locais, as línguas europeias sempre estiveram ameaçadas pela inevitável aproximação dos usos e costumes da terra conquistada. Glissant considera diversas estratégias de uso de uma língua outra mais afeita à expressão do “sentir-se em casa”, condição que demarca os territórios dos afetos e convivências entre os legislados pelas demandas oficiais ou oficializadas.

Dulce Almada Duarte (1998, p. 23), referindo ao uso do crioulo em Cabo Verde, destaca tanto “sua presença constante nas relações informais, mesmo daqueles que dominam o português”, quanto o fato de haver ainda em seu país heranças de ações passadas a rejeitarem a língua “materna”, a língua da identidade do povo cabo-verdiano. No caso da Guiné-Bissau, basta frequentar com ouvidos mais atentos os lugares em que o povo circula mesmo na capital ou observar como os administradores se comunicam não oficialmente com os seus pares e uma situação semelhante à observada por Glissant e por Dulce Almada Duarte rapidamente se evidencia. De certa forma, nesses países, se efetivam, com relação ao crioulo e também ao português, processos de naturalização e de expansão semelhantes aos verificados em outros espaços colonizados por culturas europeias. O tensionamento provocado por esses processos dissemina-se pela literatura, veículo por excelência de formas de desestabilização da língua oficial e, como acentua poeticamente Odete Semedo (2001, p. 129), ao se referir às mudanças ocorridas nas línguas, provoca um travestimento, descrito por ela, de forma metafórica, no uso de “vestidos requintados e com diferentes enfeites de lantejoulas; vestidos com contornos de emoção, roupa de mendigo com remendos”. As metáforas utilizadas por Semedo aludem a espaços ocupados pela oratura, a literatura oral, e pela literatura escrita, a usos que se estendem aos lugares expressos pelas línguas da terra e a outros considerados de maior prestígio.

No caso específico da literatura da Guiné-Bissau é preciso considerar o esforço de alguns escritores para se expressarem nos dois domínios linguísticos, escrevendo em português e em crioulo - como o fazem Odete Semedo e Tony Tcheka e outros -, misturando, por vezes intencionalmente, os dois idiomas, fortalecendo os elos com a língua do coração, língua materna, o crioulo, conforme nos mostram as produções em música e a literatura de José Carlos Schwarz8.

Pode-se dizer que José Carlos Schwarz transporta para os seus textos escritos em crioulo e particularmente para as canções, com que alcançou grande popularidade, as desestabilizações de que falam Glissant (1980) e Homi. K. Bhabha (1998), quando acentuam processos de insurreição radical que se mostram no uso da língua literária. Nesse sentido, a intenção do poeta- cantor José Carlos Schwarz de escrever em crioulo faz com que seus versos, sus canções e sua história, ainda hoje, passados já 32 anos do seu precoce falecimento, recordem os seus poemas de amor e as canções em que retoma a violência “dos métodos utilizados para dominar e humilhar a população” (AUGEL, 1998, p. 226). Escrever em crioulo tem certamente uma motivação política e isto fica evidente quando se lêem algumas de suas canções como “Ke ki mininu na tchora?” (Por que é que o menino está chorando?), cujos versos “Pastru garandi Bin/ku si obus di fugu/ pastru garandi Bin/ ku si obus di matansa”9 lembram as imagens utilizadas pelo escritor angolano Boaventura Cardoso (1980, p. 37 - 48), no conto “Gavião veio de sul e pum!”. Nos dois textos as imagens do “pássaro grande” que põe seus ovos de fogo na terra, causando intensa devastação, remetem ao horror causado pela guerra. Na letra da música de Schwarz e no conto de Boaventura, a guerra é descrita através da visão da criança - da que chora por causa da “dur, dur, dur” (“dor, dor, dor”) e da que vê o avião de guerra como um grande pássaro, um passarão que põe ovos de fogo na plantação, deixando-a devastada. E, certamente, ao cantar a canção, o poeta-cantor José Carlos Schwarz toca mais fundo o coração do povo, dos “Fidjus di Guiné”, porque o faz em crioulo. São também em crioulo os versos com o poeta-cantor afirma “N na nega bedju”10(Recuso-me a envelhecer), justificando seu canto com uma intensa declaração de amor a Guiné-Bissau e a Cabo Verde, as duas terras que muito amou.

Em livro mais recente do guineense Tony Tcheka, Guiné Sabura que dói ( 2008), a questão da língua é retomada no poema “Lusa Língua” (p. 60), cujos versos celebram a língua chamando-a “minha companheira, “amiga fraterna”. A que língua se refere o poema? À língua portuguesa que invadiu os territórios da Guiné tentando sufocar as “línguas mátrias”? À língua outra em que essa mesma língua se transforma a cada dia, misturando a lírica de Camões ao “compasso ancestral do bombolom”? (p. 60). Que língua canta o poema de Tony Tcheka quando alude à convivência da língua portuguesa com as línguas guineenses e com o crioulo, delineando a construção de “uma terra nova”, vista como uma “enciclopédia viva de tolerância”? Certamente, ao se referir à língua lusa como uma “ferramenta operária”, o poeta alude a uma língua outra que pode ser posta a caminhar “por espaços dantes negados...” porque os tempos são de convivência mas também de resistência ao desaparecimento das expressões locais.

Neste canto de amor à língua portuguesa, vestida “literariamente de tendências universalistas “ (p. 60) ressoa o desejo do poeta de assumir o idioma como uma ferramenta de trabalho que possibilita a seus versos deslocarem-se dos espaços herméticos, para assumir a “dança multirracial” que, sendo a do país, é também a do mundo cada vez mais mestiço, misturado. De certa maneira o poema, “Lusa-língua” (p. 60), ao considerar a língua portuguesa como “alma gêmea” e fazer dela parceira das “mais de dezenas de outras línguas” existentes na Guiné-Bissau, pode ser lido como uma rejeição ao “vazio cultural” referido por Dulce Almada Duarte (1998, p. 80), com relação a Cabo Verde, como decorrência do intencional esquecimento dos valores culturais imposto pelo sistema colonial, de que as línguas africanas “foram, praticamente, o último reduto de resistência”.

A língua portuguesa, ao se fixar em diferentes cenários, ansiosa por ampliar o seu lastro entre os falantes de países africanos que a têm como língua oficial, veste-se de diferentes trajes, como criativamente percebe Odete Semedo (2001), despojando-se do sentido bélico com que Luandino Vieira a identifica ao afirmar: “a língua portuguesa é um troféu de guerra” (VIEIRA, apud MATA, 2007, p 85). É certo que o escritor angolano alude ao fato de a independência de Angola ter conquistado o direito de uso da língua do colonizador como o veículo possível à efetivação do projeto de nação. E, nesse caso, reitera-se o fato de que o “vazio cultural” provocado pela imposição de uso do português aos falantes das muitas línguas correntes nos espaços colonizados começa a ser enfrentado quando “um veículo de dominação se transforma em veículo de libertação” (MATA, p. 85-86). E como reconhece Mata, a literatura torna-se importante nesse processo de alteração de um quadro de imposição de domínio porque vê-se como ferramenta necessária à construção da identidade não apenas literária mas também cultural.

O movimento assinalado por Mata com relação à literatura em Angola não se mostra diferente na literatura da Guiné-Bissau, ainda que nesse país, a intenção de escrever em crioulo, presente na obra de Odete Semedo, de Tony Tcheka e na produção lítero-musical de José Carlos Schwarz, procure imprimir contornos diferenciados à literatura num país, que legitima o crioulo, o kriol, língua de unidade nacional, ainda que o português seja a língua oficial. Sendo o crioulo, o kriol, a língua de comunicação presente em todos os espaços, mesmo naqueles em que o uso do português faz-se obrigatório, a questão da língua literária precisa ser vista no quadro de referências específicas do país e de sua cultura.

Não é por acaso que Odete Semedo e Tony Tcheka, somente para citar os bastante conhecidos fora da Guiné-Bissau, trazem em seus textos a questão com que se inicia este texto, certamente sem a amargura que se depreende do poema “Thraison” de Laleau. Se no poema do escritor haitiano, a dor de usar a língua francesa advém de resquícios do “vazio cultural” referido por Dulce Almada Duarte, nos poemas de Odete Semedo e Tony Tcheka, o crioulo e o português convivem como expressões de um país multilíngue cuja literatura se expressa por duplas vias. Diferente, por exemplo, da literatura de países como Angola e Moçambique, em que a questão linguística pode se mostrar como tensões translinguísticas (MATA, 2007, p. 86-87), como um processo de oraturização do idioma português que pode ser percebido na escrita de escritores como Luandino Vieira, Boaventura Cardoso, Uanhenga Xitu, Manuel Rui, de Angola e em Mia Couto, de Moçambique, somente para citar os mais conhecidos, a literatura da Guiné-Bissau procura caminhar por vias mais afeitas às características do país.

No caso específico da literatura da Guiné-Bissau a intenção de escrever em crioulo está presente na coletânea Kebur, Barkafon di poesia na kriol, organizada por Moema Augel e publicada em 1996. Como um sabor forte da terra, os poemas, escritos em diferentes variantes do kriol, exibem ao leitor - mesmo àquele que não consegue compreender bem os sentidos dos poemas - a sonoridade de uma língua que percorre os vários caminhos escritos em línguas várias que convivem com a variedade étnica do pais. A coletânea diz bem de um país cuja produção literária precisa ser estudada com olhos mais perspicazes para não referendar a falsa ideia de que o “espaço em branco” que muitos estudiosos definiram como escassez de produções literárias significativas é abundância, riqueza de criações que trazem no seu bojo inevitavelmente a questão da língua literária porque, ao se encenarem essas questões no modo de escrita e de publicação dos textos, outras expressões da cultura se fazem conhecidas. São excelente exemplo do trânsito de língua e de tradições, no espaço da literatura, os diálogos que o texto literário de alguns escritores vem deliberadamente construindo com as cantigas de mandjuandadis, expressão de sentimentos mais íntimos de mulheres, mas também de homens que colocam sua palavra em feições femininas. Cantadas em crioulo essas cantigas expressam o intimidade da casa, das tabancas e dos espaços por onde circulam as vozes-mulheres. Assumidas pela literatura, essas cantigas inscrevem no texto escrito as peculiaridades culturais do país, possibilitam conhecer as mandjuandadi, espaços ou ambientes onde são cantadas e dançadas as cantigas de dito. O modo como vários escritores do país vêm assumindo os cantos como uma das expressão da identidade da Guiné-Bissau demonstra os intrincados fios que se tecem entre o canto em crioulo e os textos que por vezes traduzem para a “língua lusa” a alma e os costumes da terra.11

Notas

1 - FONSECA, Maria Nazareth Soares. Em que língua escrever? A língua e seus conflitos na literatura da Guiné-Bissau. In: RIBEIRO, Margarida Calafate: SEMEDO, Odete Costa (Orgs.). Literatura da Guiné-Bissau – Cantando os Escritos da História. Porto: Afrontamento, 2011, p. 71 – 82.

2 - Depoimento de Paulina Chiziane (CHABAL, 1994, p. 300).

3 - A expressão está Mata (2007, p. 81)

4 - Léon Laleau (1945)
Trahison
Léon Laleau (1892 - 1979)

Ce cœur obsédant, qui ne correspond
Pas avec mon langage et mes coutumes,
Et sur lequel mordent, comme un crampon,
Des sentiments d'emprunt et des coutumes
D'Europe, sentez-vous cette souffrance
Et ce désespoir à nul autre égal
D'apprivoiser, avec des mots de France,
Ce cœur qui m'est venu du Sénégal ?

5-  “... Le cri devient parole écrite sans cesser d’être cri, ni meme hurlement” (GLISSANT, 1981, p. 345).

6- Ver Inocência Mata, 2007, p. 89. MATA, Inocência. A literatura , universo da reinvenção da diferença

7 - Ver referências bibliográficas no final.

8 - O sobrenome do escritor, letrista e cantor é grafado SCHWARZT, na publicação Kebur – Barkafon di poesia na kriol (1996), do Instituto Nacional e Estudos e Pesquisa (INEP).

9 - “O pássaro grande veio/ com seus ovos de fogo,/ o pássaro grande veio/ com seus ovos de morte” (Moema AUGEL.1997, p. 49).

10 - O poema-canção “N na nega bedju” está gravado na sepultura do poeta, no antigo cemitério de Bissau (AUGEL, 1997, p. 17).

11 - Indica-se, para maior aprofundamento desses diálogos, SEMEDO (2001).

Referências

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq desde 2001. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). É também autora de vários capítulos de livros e artigos sobre as literaturas africanas de língua portuguesa, cultura/literatura brasileira e afro-brasileira e teoria da literatura, publicados no Brasil e no exterior. Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, passou a coordenar, a seção literÁfricas do Portal literafro, disponível em www.letras.ufmg.br/literafro, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as).

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