Do que não foi passado:
ficção e história na narrativa pós-colonial moçambicana1

 

Gustavo Henrique Rückert*

Inicio estas reflexões por meio de um breve trecho do conto A história do ladrão e do papagaio, do angolano Luandino Vieira. Recém preso, Xico Futa é questionado pelos companheiros de cela sobre os motivos de estar ali. Ele reflete: “Pode a gente mesmo saber, com a certeza, como um caso começou, aonde começou, porquê, praquê, quem?” (VIEIRA, 2008, p. 70). Suas indagações acabam por levá-lo a uma complexa reflexão acerca das genealogias.

É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, (....). Ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas. Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus de fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais-velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Fiquem malucos, chamem o tractor ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão a espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora, com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, sacodem-lhes, destroem, secam, queimam-lhe mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito mitos fumos, preto, cinzento-escuro, sinzento-rola, cinzento-sujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho, ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio, e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. (VIEIRA, 2008, p. 70-72)

Pensar sobre as relações entre ficção, história, colonialismo e pós-colonialismo é bastante complexo e possibilita diversas abordagens. Uma das abordagens possíveis para costurar esses fios, ao meu ver, é pensar na ideia de narrativa. Se narrar é pensar o movimento ou a alteração que vai de uma situação inicial a uma situação final, narrar é humanizar o tempo, atribuindo-lhe sentido, como quer Frank Kermode (1967). Eis então, na narrativa, uma das mais rebuscadas tecnologias a que chegou o conhecimento humano, permitindo às sociedades dar forma ao tempo, organizando-o e manipulando-o de acordo com suas compreensões do mundo, bem como de seus anseios, desejos e traumas.

É necessário refletir, no entanto, que narrar tem sempre como pressuposto básico selecionar. Quem narra escolhe determinados personagens, espaço e tempo. Escolhe a ordenação do enredo: seus pontos de partida e de chegada, propondo a partir da linearidade estabelecida a lógica explicativa entre causa e consequência. A ideia de selecionar, no entanto, só é possível porque o seu pressuposto é a exclusão (Cf. Derrida, 2001). Seleciona-se determinados elementos porque não se seleciona outros. E tudo isso já ponderava o personagem ficcional Xico Futa, presidiário angolano. Sem acesso aos Mil platôs, de Deleuze e Guatarri, ele já compreendia que não existe narrativa isolada. As raízes entre os causos são inseparáveis, sendo a ideia de início mera idealização de pensamento. Todo início não passa, portanto, de um recorte. Narrar é, por isso, sempre um ato político, pois parte de uma escolha – como toda escolha pode ser consciente ou inconsciente, mas jamais ingênua.

É a partir da concepção exposta pela personagem Xico Futa que abordarei as relações entre a ficção moçambicana e a história da colonização: a partir do ato inevitavelmente político do narrar. Como é narrado o passado colonial pelos artistas moçambicanos? Que sentidos eles conferem ao passado e ao presente por meio dessas narrativas? De que forma suas concepções sobre a narrativa do passado possibilita a crítica às narrativas coloniais? Essas são algumas das perguntas que nortearão estas reflexões. Para respondê-las, elenco dois textos: o filme Mueda: memória e massacre, de Ruy Guerra (1979), e o romance As visitas do dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho (2004).

Para pensar nas implicações políticas da narrativa do passado moçambicano nas duas obras, é importante pensar nas narrativas do passado africano realizadas pela literatura colonial. Nesse sentido, é inevitável observar a estreiteza das relações entre narrativa e colonialismo. Para isso, tomo como exemplo o encontro de Vasco da Gama e seus homens com um sujeito africano no Canto V de Os lusíadas.

Achámos ter de todo já passado

Do Semícapro Pexe a grande meta,

Estando entre ele e o circulo gelado

Austral, parte do mundo mais secreta.

Eis, de meus companheiros rodeado,

Vejo um estranho vir, de pele preta,

Que tomaram per força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.

 

«Torvado vem na vista, como aquele

Que não se vira nunca em tal extremo;

Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

Selvagem mais que o bruto Polifemo.

Começo-lhe a mostrar da rica pele

De Colcos o gentil metal supremo,

A prata fina, a quente especiaria:

A nada disto o bruto se movia.

(CAMÕES, 2008, p. 151-152)

Na altura da Baía de Santa Helena, quando as naus lusitanas se deparam com a alteridade (“Nem ele entende a nós, nem nós a ele”), os limites culturais são definidos. “Ele” não entende a nós pelo fato de sua cultura não ser dotada de uma língua com complexidade de raciocínio. Ignorada a diferença, o “nós” que se vê dotado de linguagem e complexidade impõe a violência do nome (Cf. SAID, 2007) ao outro, definindo-o “Selvagem mais que o bruto Polifemo”.

A narrativa em questão, ao optar por representar o sujeito colonizador como detentor e produtor dos sentidos, e o sujeito colonizado como mero objeto a ser descrito, catalogado, salvo, explorado, além de criar os pressupostos para colonizar, cria as condições para manter a colonização. Esta se torna assim uma narrativa cujo esquema linear vai da barbárie à civilização. O mesmo esquema narrativo da colonização pode ser observado nos mais variados textos coloniais: demais epopeias, cartas, relatos, crônicas, ilustrações, fotografias, ensaios antropológicos, biológicos e, inclusive, historiográficos. Dessa forma, além da utilização da violência física, a colonização amparou-se em uma “violência epistêmica” (Cf. Bhabha, 2013, p. 80).

É preciso pensar, portanto, que todo aparato disciplinar da modernidade europeia, ressalta-se a ficção e a história, atuaram na legitimação dessa narrativa sobre o encontro do ocidente. Não se pode esquecer, como bem salientou Achille Mbembe (2018), em Crítica da razão negra, que a escravidão é a pia batismal da modernidade europeia. Assim, se por um lado a historiografia e a literatura modernas enfatizaram conceitos como o indivíduo, a nação, o progresso, a universalidade, a condição humana; por outro lado a exploração de recursos nas colônias e a escravidão de seus habitantes sustentava a sociedade ocidental.

No que diz respeito à história, é importante mencionar que a sua configuração enquanto disciplina na modernidade europeia faz com que assuma nova configuração epistemológica. Para Michel Foucault (2010, p. 30), “uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”. Assim, as disciplinas tornaram-se fundamentais na dominação dos povos colonizados ao disciplinar seus corpos, ordenando-os e classificando-os sob o prisma da ciência moderna (cartesiana, positivista, determinista e dualista).

No âmbito da teoria da história, o indiano Dipesh Chakrabarty (2009) destaca-se justamente ao evidenciar o eurocentrismo das narrativas historiográficas hegemônicas sobre as colônias. Para ele, a história dos lugares periféricos à metrópole sempre tende a tomar a história dos colonizadores como paradigmática para suas narrativas:

Trata-se de que no tocante ao discurso acadêmico da história – quer dizer, a “história” como um discurso produzido no âmbito institucional da universidade –, “Europa” continua sendo o sujeito soberano, teórico, de todas as histórias, incluindo as que chamamos “indianas”, “chinesas”, “quenianas”, etc. Existe uma peculiar maneira na qual todas estas outras histórias tendem a se voltar para uma variação de uma narração mestra que poderia se chamar “a história de Europa”. Neste sentido, a própria história “indiana” está em uma posição de subalternidade; só podendo articular posições de sujeito subalterno em nome desta história. (CHAKRABARTY, 2009, n.p.)

Narrar essa história, significa, portanto, erigir uma narrativa linear que toma como ponto inicial o caos, a barbárie, a selvageria para eleger como ponto final a ordem, o desenvolvimento, a civilização. O elemento transformador: a intervenção colonial, é claro. Ressalta-se, porém, que o colonizado jamais terá direito à mesma cidadania que seu colonizador. Portanto, trata-se de um progresso sempre no porvir, uma ideia de futuro nunca realizado, seja pela ausência de leis, direitos humanos, democracia, etc. Essa compreensão de uma eterna marcha ao progresso leva, então, à continuidade das relações de colonialidade e de imperialismo.

Os britânicos conquistaram e representaram a diversidade dos passados “indianos” mediante uma narração homogeneizadora de uma transição desde um período “medieval” até a “modernidade”. Os termos mudaram com o tempo. Alguma vez se chamou “despótico” ao “medieval”, e chamou o “moderno” de “o respeito à lei”. Uma variante posterior seria “feudal-capitalista”. (CHAKRABARTY, 2009, n.p.)

Daí a necessidade de uma concepção histórica que rompa com a linearidade da historiografia europeia, a qual se encontra alicerçada na episteme moderna ocidental, como ressalta o historiador burquinense Ki-Zerbo (2010) ao explicar o seu projeto de escrita de uma história da África por africanos.

A necessidade de construção de uma história outra, que aborde a narrativa dos sujeitos colonizados, acaba passando, então, necessariamente pela proposição de sentidos de percepção e de perpetuação do conhecimento histórico diferentes daqueles alicerçados pelo aparato disciplinar da modernidade europeia. Nesse sentido, o teórico indiano Homi Bhabha (2013, p.79) afirma que “a luta contra a opressão colonial não apenas muda a direção da história ocidental, mas também contesta sua ideia historicista de tempo como um todo progressivo e ordenado”.

Ainda tomando as reflexões de Bhabha como horizonte teórico, entendo que a narrativa pós-colonial como narrativa capaz de fraturar a linearidade da narrativa histórica colonial ampara-se sobretudo nos corpos dos sujeitos colonizados como corpos que desejam, ou seja, corpos pulsantes, vivos, complexos por contraditórios, escapando assim à objetificação construída pelas narrativas coloniais:

No texto pós-colonial, o problema da identidade retorna como um questionamento persistente do enquadramento, do espaço da representação, onde a imagem – pessoa desaparecida, olho invisível, estereótipo oriental – é confrontada por sua diferença, seu Outro. (BHABHA, 2013, p. 87)

Nesse sentido,

Os olhos que restam – os olhos como uma espécie de resíduo, produzindo um processo iterativo – não podem ser parte desse renovar copioso e progressivo do tempo ou da história. Eles são os signos de uma estrutura da escrita da história, uma história das poéticas da diáspora pós-colonial, que a consciência simbólica jamais poderia apreender. (BHABHA, 2013, p. 97)

Os olhos que restam do passado colonial, resíduo capaz de uma escrita outra da história, que perturba a narrativa erigida durante o processo colonial, estão presentes em Mueda e As visitas, textos moçambicanos que tomam os corpos dos sujeitos negros como espaço de criação e de manifestação dessa poética. Para pensar a forma de “escrita” dessa história a partir desses corpos, inicio pela produção audiovisual.

Mueda: memória e massacre, filme dirigido por Ruy Guerra, é uma produção do Instituto Nacional do Cinema lançada em 1979. É considerado o primeiro longa-metragem de ficção moçambicano. Tem como tema o Massacre dos Maconde – episódio de 1960 em que habitantes da etnia maconde, no município de Mueda – província de Cabo Delgado – na fronteira com a Tanzânia, foram assassinados por cipaios da polícia colonial. Os números sobre o episódio são divergentes, variando de dezenas nas versões coloniais a centenas nas versões dos líderes independentistas.

As filmagens abordam a encenação denominada Drama de Mueda: uma encenação que ocorre todos os anos, no mesmo dia e local do massacre, tendo como protagonistas as testemunhas sobreviventes do episódio. O massacre é assim reencenado, mantendo viva a memória do acontecimento mais trágico da comunidade por meio do corpo. É como se a cada ano, o corpo das diferentes gerações maconde fosse novamente agredido para que a violência colonial não seja esquecida e a história da comunidade seja perpetuada.

A estrutura do filme alterna então cenas ficcionais recolhidas da encenação local com o depoimento de testemunhas do massacre. Tanto as cenas do drama quanto os depoimentos alternam as línguas portuguesa e chimaconde. Assim, é narrada a história da reivindicação pacífica por independência realizada por emissários moçambicanos que vinham da Tanzânia e integravam a organização política MANU (Mozambique African National Union). A reivindicação é feita no Posto Administrativo do Chai e retaliada com discursos racistas e exaltações aos símbolos nacionais portugueses.

Após ganhar o apoio da população local (explorada pelos tributos e castigos físicos ordenados pelo administrador), as reivindicações acabam reprimidas com o tiroteio realizado pela polícia colonial, que culmina com diversos mortos e feridos. Por fim, há a reflexão por meio dos depoimentos e dos discursos proferidos após o fim da encenação de que o episódio foi o grande motivador para que, quatro anos depois, em 1964, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) iniciasse a luta armada exatamente no mesmo posto administrativo – movimento que seria fundamental para a conquista da independência em 1975.

Dessa forma, são três temporalidades distintas que as camadas narrativas de Mueda articulam pelo espaço do corpo dos atores da comunidade: o episódio do massacre em 1960 (tempo narrado); a encenação do massacre e os depoimentos no fim da década de 1970 (tempo da narração que se torna também tempo narrado); o filme produzido a partir da encenação do massacre e dos depoimentos em 1979 (tempo da narração).

Ganham destaque no filme os conflitos étnico-raciais principalmente por meio da encenação dos administradores brancos por parte dos atores negros. Ao invés da cor da pele, a burocracia, o autoritarismo e o racismo são os signos que fazem a comunidade interpretar os personagens como brancos. Em diálogo repetido após as reivindicações pacíficas por independência, a personagem do administrador sempre repete a ideia de que quem criou Moçambique foram os portugueses. Completa ainda afirmando que foram eles que haviam cortado o rabo dos habitantes locais – comparando-os a macacos.

Em resposta ao discurso burocrático, autoritário e racista legitimado pela administração colonial, a reivindicação justa, inteligente e elaborada dos moçambicanos pode ser destacada em duas falas – ambas proferidas em chimaconde. Em uma delas, Tiago e Modesta Mula afirmam que os negros não são macacos, mas os brancos que são peixes – uma vez que chegaram a Moçambique por meio das águas. Na outra, Shibiliti Diwani teoriza: “Nós sabemos que não somos macacos e não temos rabos. O fato de os brancos nos governarem e nos desprezarem faz com que nos tratem como se fôssemos macacos” (GUERRA, 1979, n.p.).

Já ao fim da encenação, um dos atores – que representa o caricato personagem de um policial negro que acredita ser branco por representar a instituição colonial – afirma (também em chimaconde):

Assim, quando chega o dia como este, em que encenamos o Massacre de Mueda, eu não enceno como pai de Mandushi, mas faço como imitação àquilo que ele fez. Somos da mesma comunidade, temos o mesmo antepassado, nascemos na mesma altura, temos a mesma infância. Aquilo que eu procuro encenar é exatamente aquilo que ele fazia. Quando nós fazemos a encenação aqui, os que nos assistem riem-se. Mas nós temos consciência de que se riem das atitudes do colono português, das coisas que ele nos fez passar aqui neste país. Termino aqui minha intervenção. (GUERRA, 1979, n.p.)

Dessa forma, o filme rompe com a distinção entre documentário e ficção, com a glamourização dos atores do cinema ocidental, com o afastamento da produção e da recepção cinematográficas. Assim, a comunidade de Mueda torna-se não apenas objeto da produção cinematográfica, mas sujeito, “grafando” à sua maneira, com a representação corporal e com a oralidade, as memórias do episódio que assume proporções mitológicas em relação à origem da luta anticolonial encetada pela FRELIMO no país.

O romance As visitas do dr. Valdez, publicado por João Paulo Borges Coelho em 2004, traz também uma leitura da história colonial moçambicana a partir do corpo dos sujeitos colonizados como corpo residual das experiências coloniais. O enredo da obra apresenta como protagonista Vicente, adolescente negro que trabalha como empregado doméstico de Sá Caetana e Sá Amélia, duas idosas irmãs pertencentes à decadente elite colonial, que deixam o ambiente rural da Ilha de Ibo, onde possuem propriedades, e passam a viver na urbana cidade de Beira nos anos que antecedem a independência, na década de 1970.

Sá Amélia, de saúde fragilizada e de memória pouco lúcida, é uma personagem marcada pelo mau humor e desinteresse. Sua irmã, no entanto, descobre um artifício para animá-la: a possibilidade de uma visita de Valdez, médico já falecido há vários anos por quem Amélia nutria uma relação bastante afetiva no Ibo. Após a ideia surtir efeito e Amélia tornar-se mais colaborativa, surge o dilema de como promover a visita prometida. A solução, embora inusitada, era a única possível: fazer com que Vicente se travestisse de Dr. Valdez – e é justamente nessa representação de um sujeito branco e de privilegiada posição social na sociedade colonial realizada por um menino negro e empregado doméstico que reside a principal intriga da trama.

Vicente herdara do pai, Cosme Paulino, homem de confiança da família, a subserviência – era tratado como uma posse das senhoras, a última posse do passado colonial que carregam consigo para Beira. As diferenças sociais, etárias e étnico-raciais entre Vicente e Valdez fazem com que Caetana duvide do sucesso da empreitada: “Sá Caetana surpreendeu-se. Depois relutou. Como pode um jovem fazer de adulto? Como pode um criado fazer de doutor? Como pode, até, um preto fazer de branco?” (COELHO, 2004, p. 38).

Embora inicialmente para o jovem a atividade ganhasse um contorno lúdico para atenuar seus trabalhos domésticos, quase uma brincadeira em que pudesse se fantasiar de médico de meados do século XX (com calções de sarja, meias altas e barba de algodão), logo surgem importantes questionamentos a respeito da representação das identidades coloniais: “Tanto tempo levou a preparar-se porque também por dentro se quis transformar. Como pensa um branco? Como sente um branco? Como age um homem branco?” (COELHO, 2004, p. 48).

Assim, Vicente percebe que para convencer Amélia, também o modo de seu corpo falar, ocupar os espaços e relacionar com as senhoras deve mudar. Dessa forma, ao mesmo passo que a performance convence a irmã mais velha (que fica cada vez mais alegre), incomoda a irmã mais nova, que vê as posições definidas da sociedade colonial serem subvertidas a cada nova visita do médico.

Vê como ele se senta, cruzando a perna e deixando-a balançar livremente. Vê como se levanta e se chega à janela, afastando ligeiramente o cortinado para espreitar o quintalzinho de trás onde vivem, miseráveis, os criados. Vê como se vira para reocupar o lugar no sofá. Por um momento irrita-se com a quase insolência do rapaz, e quando se contém é para evitar desfazer logo ali a encenação. (COELHO, 2004, p. 59)

Rapaz malandro e ladino”, pensa Sá Caetana enquanto sai. “Onde se viu?! O criado na sala fazendo de patrão, recusando até o açúcar do chá; a patroa na cozinha fazendo o seu trabalho”. (COELHO, 2004, p. 69)

Incomodou-a, isso sim, a altivez de Vicente, sentado no seu sofá, recebendo das suas mãos uma chávena de chá quando a podia recusar polidamente, impedindo que o jogo fosse além do que era necessário. Mas não, pareceu-lhe que o rapaz quis transpor essa fronteira. Vicente era o diabo, sempre pronto a aproveitar-se das situações. Ele e o seu ar ingénuo. Notava-lhe até uma mudança de atitude desde a primeira visita, um modo novo de a olhar que desafiava o respeito. Como se em vez de estar cumprindo ordens fosse ele a fabricá-las. Era sobretudo o olhar que a incomodava. Olhar de desafio, olhar de cúmplice, mesmo se nele não deixava de transparecer uma certa ingenuidade. (COELHO, 2004, p.91-92)

Quantas histórias cabem dentro de uma mesma história!” (COELHO, 2004, p. 77), reflete o narrador do romance. A história de Vicente apropriando-se dos privilégios sociais de um homem branco entrecruza-se com a história do seu amadurecimento, da independência de Moçambique e do falecimento de Sá Amélia – que contou com uma última visita do Dr. Valdez em seu funeral. A partir desse momento, Vicente encerra sua história de servilidade às senhoras com a partida de Sá Caetana de Moçambique e a recusa em herdar as abandonadas fazendas do Ibo.

É por meio do corpo negro de Vicente, portanto, que o passado colonial é recuperado no texto. É pela representação que faz do colonizador, pela compreensão das ambivalentes posições sociais, que está o seu aprendizado a respeito da sua situação no presente. Da mesma forma que em Mueda, é por meio do corpo que se compreende e se perpetua a história no romance de Borges Coelho. Assim como a encenação da comunidade maconde, mais uma vez é nos hábitos culturais do norte de Moçambique que está a compreensão do corpo como transgressor de temporalidades. No caso de Vicente, é na tradição das máscaras mapico – herança cultural de sua terra – que está a aptidão para a vivência do outro em seu corpo. Ao contemplar sua máscara, relembra as celebrações dos dançarinos mapico em sua infância:

A sua grotesca dança é feita de passos desconexos e gestos teatrais. Finge que é bicho, finge que é branco (fingiria ser o Dr. Valdez se acaso o conhecesse), finge que é coxo, finge que é demente. Desdenha dos mais velhos mimando-lhes as dificuldades no andar, o cenho carregado de quem parece pesar profundamente as coisas mas afinal é só lento a reflectir; finge respeitar as crianças fazendo-lhes vénias e reverências despropositadas, que as atemorizam; cortejam as mulheres feias com falsa e injustificada lascívia; enoja-se com as bonitas como se a beleza, vejam só, fosse coisa repulsiva. Troca as voltas ao mundo, este estranho dançarino. Tripudia sem propósito, rindo-se do povo, rindo-se da tradição. Rindo-se de si próprio. (COELHO, 2004, p. 144)

Tudo isto para que as crianças-rapazes saibam que viver é sempre fazer diferente, é respeitar a tradição e renegá-la.

Vicente recordará toda a vida esta passagem. Em particular, a magia criada pela força dos dois olhares do dançarino, um que está ausente quando o procuramos, outro que nos envolve sem que o saibamos. Guarda-a na lembrança desde esse dia em que deixou de ser criança e passou a ter desejos (COELHO, 2004, p. 144-145).

A dança da máscara mapico, rito de passagem dos meninos macondes, faz com que mortos, vivos, homens, mulheres, animais, brancos, negros, estejam presentes no corpo do dançarino. Suas voltas fazem com que os jovens compreendam a alteridade que existe em si. Em uma cultura que não compreende o corpo como fronteira onde se encerra o individual, mas como espaço que articula uma pluralidade de presenças, é possível que seja compreendido o passado histórico moçambicano como mais uma dessas presenças.

Para Bhabha (2013, p. 92),

cada vez que o encontro com a identidade ocorre no ponto em que algo extrapola o enquadramento da imagem, ele escapa à vista, esvazia o eu como lugar da identidade e da autonomia e – o que é mais importante, deixa um rastro resistente, uma mancha do sujeito, um signo de resistência.

Tanto Mueda quanto As visitas utilizam do corpo como reduto da resistência à imagem imposta pela narrativa colonial. Um corpo múltiplo, que não é individualizado de outros corpos, nem de outros tempos, é capaz de romper com a linearidade da narrativa historiográfica ocidental. Como consequência, o passado moçambicano não foi passado, mas está presente nos corpos da comunidade maconde e de Vicente, sendo sempre recontado pelo viés da narrativa. Afinal de contas, como reflete Xico Futa, o fio da vida não se encerra em um corpo individual. Cada cajueiro carrega em si a vida de outros cajueiros. Encenar a história pelo corpo, no sentido proposto pelos textos analisados, portanto, não significa ficcionalizá-la como mimese aristotélica, mas sim carregá-la consigo e revivê-la para jamais esquecer.

 

Nota

1 Originalmente publicado como capítulo no livro organizado por Carlos Henrique de Lucas Lima, intitulado A vida reimaginada: pensamento e transformação do presente (Salvador: Devires, 2019, v. 1, p. 30-43).

Referências

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CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de achamento do Brasil. In: CASTRO, Silvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 43-67.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

CHAKRABARTHY, Dipesh. A pós-colonialidade e o artefato da história: quem fala em nome dos passados indianos? Trad. Erahsto Felício, junho de 2009. Disponível em: http://principo.org/a-ps-colonialidade-e-o-artefato-da-histria-quem-fala-em-nome-d.html. Acesso em 27 de junho de 2019.

COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr. Valdez. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

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KI-ZERBO, Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

VIEIRA, Luandino. Luuanda. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.

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* Gustavo Henrique Rückert é Professor Adjunto de Literaturas em Língua Portuguesa na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde atua nos cursos de Graduação em Letras e Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas. É vice-presidente (2019-2022) da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos (AFROLIC). É vice-coordenador do Grupo de Estudos em Literatura, Arte e Cultura (UFVJM/CNPq).  Seu principal interesse de pesquisa envolve as relações entre literaturas contemporâneas de língua portuguesa e pós-colonialismo.

 

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