O papel de Rui Knopfli na Revista Caliban

e no sistema literário moçambicano

 

Ana Mafalda Leite¹

Vanessa Riambau Pinheiro²

Eu nunca reivindiquei a nacionalidade moçambicana, só reivindiquei um facto, que ainda hoje reivindico, de ser africano.

Rui Knopfli

 

Os objetivos deste trabalho visam numa primeira parte compreender a complexidade do poeta Rui Knopfli, enquanto um autor híbrido, cuja identidade é perpassada pela relação de pertença que ele estabelece com Moçambique, apesar de uma certa desvinculação ideológica e estética do sistema literário moçambicano. Num segundo momento o trabalho procura descrever a importância da revista literária Caliban, tendo em conta o papel fundamental do poeta moçambicano na sua organização, ao antecipar uma partilha plural de propostas estéticas para a literatura moçambicana, que vem a concretizar-se anos mais tarde no período pós-colonial.

  1. Rui Knopfli: nem Caliban nem Próspero

Segundo o estudioso ganês Anthony Appiah (1997), em seu conhecido livro A casa do meu pai, a literatura cumpre um papel fundamental no desenvolvimento da cultura nacional. No caso das literaturas africanas em língua portuguesa, esta assertiva tem ainda mais fundamento já que, ainda segundo o mesmo autor, diferentemente do projeto literário da Europa, que versa sobre a descoberta do eu, o projeto literário africano é coletivo e presta-se à funcionalidade específica de afirmação cultural. Para a realização deste projeto - de traços épicos e metafísicos - , foi preciso que os autores se engajassem nesta missão de narrar a nação (ANDERSON, 2008) para que ela pudesse, afinal, ser imaginada.

No quadro dos países africanos de língua portuguesa, a literatura tornou-se um veículo essencial para a legitimação cultural; destarte, também contribuiu para o fortalecimento dos valores ancestrais, bem como das tradições orais, ao reinventá-las e preservá-las para a posteridade através de relatos que as mencionem ou que imitem suas práticas; converteu-se também numa primeira fase num instrumento de resistência contra o colonizador, tendo sido, representando além de um ato cultural, um ato político.

Em Moçambique, a mobilização pela restauração da identidade e cultura nacional contou com a participação da Frelimo. Com um movimento de engajamento repressor, o partido criticou a tendência, na sociedade moçambicana pós-independência, a copiar o modelo cultural estrangeiro.

Mendonça (2011, p. 17) confirma esta hipótese, ao afirmar que o escritor só era legitimado pela práxis revolucionária. A fim de exemplificar, vale destacar os escritores-ícones ovacionados em Moçambique nos anos pré e pós-Independência, considerados representativos do cânone local: José Craveirinha e Luís Bernardo Hownana, respectivamente na poesia e na prosa. Especificamente, o livro de contos de Hownana, Nós matámos o cão tinhoso (1964), é considerado o marco fundacional da prosa moderna moçambicana. Obras anteriores, como a de João Dias (Godido e outros contos, de 1952), apesar de possuir conteúdo de teor social, foi posta em menor relevo face ao contexto político-ideológico da obra de Hownana. A publicação, realizada no ápice das mobilizações nacionalistas e ocorrida em plena guerra pela libertação, veio fortalecer o aparato imagético do nacionalismo, constituindo-se na obra-símbolo da nova literatura nacional.

À luz deste contexto, torna-se fácil compreender porque um escritor como Rui Knopfli, apesar de seu papel como poeta e como editor da revista Caliban entre os anos de 1971 e 1972, tenha sido ostracizado nos anos pós-Independência face à perspectiva ideológica da chamada literatura de combate. Além de ser “filho de Próspero” - já que era branco e descendente de portugueses -, desvinculava-se da estética literária da moçambicanidade, sublimando os conflitos político-ideológicos por meio de uma poesia mais universalista, intimista e libertária. Assim, atritou-se com a crítica e com o modelo sócio-literário do momento, uma vez ter que sua poesia não se inseria no espaço da "heroicidade e da conquista" (SAID, 2010, p.191).

Como é que eu posso fingir em verso o negro humilhado que não sou?” – assim questionou-se o poeta, em conferência proferida na Associação dos Escritores Moçambicanos, em 1989. Esta pergunta constitui a síntese de seu compromisso de autenticidade para consigo próprio e seus conterrâneos. O lugar de enunciação da lírica de Knopfli – consciente de sua condição privilegiada de branco e filho de colono – faz-nos perceber o hibridismo deste autor, cuja identidade é perpassada pela relação de pertença que ele estabelece com África e com Moçambique, apesar da desvinculação ideológica e estética ao sistema literário moçambicano. No famoso poema “Naturalidade”, o autor considera suas múltiplas ascendências. “Chamais-me europeu? Pronto, calo-me/ Mas dentro de mim há savanas de aridez...”

Muitos dos livros do poeta têm referenciais nos modelos clássicos ocidentais, como O corpo de Atena e O escriba acocorado. Outros, entretanto, têm em seu título alusões a África, como O monhé das cobras, que faz alusão ao provérbio africano “se encontrares em teu caminho uma cobra e um monhé – muçulmano mestiço -, mate primeiro o monhé” -, ou mesmo ao próprio hibridismo do autor, como Mangas verdes com sal, e A ilha de Próspero.

Entretanto, apesar da inegável influência ocidental, sua lírica transparece, tendencialmente, a preferência por África. Poemas como “Hidrografia” mostram-nos o que foi dito. Ao comparar os rios africanos aos europeus, classifica os últimos como “belos” e “históricos”, enquanto os primeiros, além de também possuírem atrativos visuais e também memória histórica (“lembranças de velhos coloniais/navios de roda revolvendo águas pardacentas/ rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura”) são dotados de “poesia”, “mistério” e “belezas ocultas”. Os adjetivos que qualificam os rios africanos são motivo de demérito aos outros, da “europa sem mistério” e suficientemente conhecida. “Os que, cansados, sabem todas/as histórias do Sena/
e do Guadalquivir, do Reno/ e do Volga ignoram a poesia corográfica/ dos rios da minha terra.”

Tal partilha de pertenças culturais também se pode notar no “O meu Paris é Joanesburgo”, poema no qual o eu-lírico considera a África do Sul seu modelo cultural, e não a França. A proximidade de Moçambique com o país de língua inglesa é, certamente, um dos fatores a serem considerados neste processo. O estudioso Patrick Chabal (1994:27) cita a influência sul-africana como um dos fatores de diferenciação em relação a outros países africanos de língua portuguesa, bem como a fraca integração colonial, dada a distância desta ex-colónia em relação a Portugal.

Ao anunciar-se híbrido – prenunciando uma identidade pós-moderna, no sentido que Hall (2003) considera, como “celebração móvel”, o poeta liberta-se para afirmar o seu lirismo intimista e até mesmo para cantar sua terra, como o faz na obra A ilha de Próspero, em que homenageia a Ilha de Moçambique. “Ilha, velha ilha, metal remanchado/ minha paixão adolescente.” (KNOPFLI, 2010, p. 127).

Entretanto, o poeta não se imiscuiu em tratar temas concernentes ao tempo colonial como o racismo e a pluralidade étnico-racial de Moçambique também é contemplada em sua poesia. Segundo Monteiro (2003, p. 22), Knopfli denuncia o fato de Ricardo Rangel e Noémia de Sousa terem sofrido agressões físicas por parte da Polícia Portuguesa e ele não, por ser branco.

De acordo com o estudioso moçambicano Aurélio Cuna (2017), questões ideológicas impediram que o autor fosse estudado como deveria ter sido. Cabe destacar, portanto, que a vinculação ideológica esteve na base da constituição identitária em Moçambique nos anos pré e pós-Independência. A dita “moçambicanidade”, como denominação identitária específica, deu-se enfaticamente a partir de valores intrínsecos. Chabal (1994, p. 49) endossa esta posição ao afirmar que este critério, de ordem política e ideológica, outrora tão vigentes em Moçambique, “é o pior possível para atestar qualidade literária.”

Dadas a estas questões externas ao valor estético do texto, Cuna (2017) comenta que, até agora, Rui Knopfli só foi lido com acuidade por Francisco Noa. E, mesmo assim, não bastou para afastar o véu que praticamente o isola dos demais poetas de sua geração. Noa (1997, p. 95), por sua vez, pontua que a importância do poeta não se restringe apenas a Moçambique, já que, em Portugal, ele teria “africanizado a modernidade [europeia], subvertendo-a, dilatando-a.” Gerações mais recentes de escritores, pós-Charrua, ou mesmo os poetas do movimento literário Kuphaluxa, que não passaram pelos conflitos entre valor estético e ideológico e/ou nacionalista, têm no poeta um referencial de grande inspiração. Percebe-se, destarte, o resgate gradual mas progressivo da reintegração literária de Rui Knopfli, condizente com os valores literários em voga atualmente. Ademais, mais do que sua nacionalidade, importa a função do escritor na constituição do sistema literário do seu local de enunciação. Esta, aliás, é uma premissa do teórico brasileiro Antonio Candido (1981), que acredita que a análise de um texto deve levar em conta o tripé obra, autor e contexto de recepção. Neste sentido, o papel de Rui Knopfli na literatura moçambicana sempre será inquestionável.

O papel de Rui Knopfli na edição da revista literária Caliban e no sistema literário moçambicano

Nelson Saúte, na apresentação da edição facsimilada de Caliban, re-editada vinte cinco anos depois (1996), usa como título para o seu texto “O irónico legado de Próspero”, situando a época colonial da publicação da revista, que teve lugar quatro anos antes da independência de Moçambique, uma vez que o primeiro número foi publicado em 1971 e o último, número duplo (3 e 4) em Junho de 1972. O adjectivo “irónico” de imediato classifica a ambiguidade do papel desta publicação, que apesar de ter lugar ainda em tempo de Próspero se quer como contribuição de Caliban, como seu título indica.

A revista Caliban faz referência à peça teatral de Shakespeare, A tempestade. Como se sabe, a dupla Próspero/Caliban encena a lógica da colonização, mas a herança da língua torna-se para Caliban a sua maior arma de resistência e de luta. Intencionalmente os diferentes números da publicação citam no exacto início da página de abertura fragmentos da peça, a fim de registar a posse cultural de Caliban eleia-se, a título de exemplo, no primeiro número:

Prospero-…..When didst not, savage,/ Know thine own meaning, but wouldst gabble like/ A thing most brutish, I endoved thy purposes/ with words that made them known….

Caliban - You thaught me language, and my profit on’t/ Is ,I know how to curse. The red plague rid you/ For learning me your language!....(1998, p. 17)

Esta referência virá a surgir de novo com o nome oposto, no título do livro de Rui Knopfli, A ilha de Próspero, em 1972, obra publicada no mesmo ano em que a revista termina. Não é por acaso que a proposta do livro vai assumir este nome e não o de Caliban. Trata-se agora de mostrar através de um roteiro de lugares histórico-culturais como o legado de Próspero, figura simbólica representante do colonizador, é subvertida poema a poema com a evocação das presenças culturais dos subalternos e ignorados pela história colonial, africanos, indianos, muçulmanos, hindus, que compõem o País dos Outros (publicado em 1959), um livro e um título também de Rui Knopfli.

Os quatro números da revista de poesia Caliban apresentam um design gráfico artesanal, a preto e branco, os textos em letra de máquina de escrever e com fotos de alguns dos autores; as duas primeiras ilustrações de capa são de máscaras moçambicanas, no primeiro número uma de Angoche e no segundo número é utilizada uma máscara de Mapico (uma dança ritual do norte de Moçambique), enquanto a terceira capa (números 3 e 4), designada Máscara “Land Rover” (foto da parte dianteira de um jeep com os dois faróis e um largo para-lamas) vai provocar um contraste com os dois números anteriores, imprimindo um intencional jogo paródico entre tradição e modernidade. Provocatoriamente esta dialéctica cultural, campo/cidade, dentro/fora, local/global, reflecte-se também na própria organização da revista com a inclusão de poemas de autores moçambicanos, a par da contribuição de autores portugueses e de poetas estrangeiros traduzidos. Os sentidos obtusos das máscaras, para além de teatrais e dramáticos, apelam o leitor para a interacção de diferentes culturas e legados na produção literária moçambicana.

Nos quatro números de Caliban são publicados poemas de autores moçambicanos como José Craveirinha, Jorge Viegas, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Rui Knopfli, Sebastião Alba, Orlando mendes, Grabato Dias, Frey Joannes Garabatus, a par de excelentes traduções da autoria de Rui Knopfli do autor americano naturalizado inglês T.S.Eliot, (prémio Nobel em 1948) da americana Marianne Moore e do polaco Zbigniew Herber. Entre os poetas portugueses destaque-se a inclusão de poemas de João Rui de Sousa, Herbert Hélder, Jorge de Sena, Fernando Assis Pacheco, Luís Amaro, António Ramos Rosa.

Como refere Eugénio Lisboa nesta edição facsimilada de Caliban o acto de tradução de Rui Knopfli dos poetas de excelência mencionados é uma forma exemplar de convívio, fora de quaiquer paróquias redutoras, “numa cultura da paz, qual a buscam os que sabem sonhá-la” (XV):

Mas a língua portuguesa sonhava-se, no projecto ambicioso (ainda quando artesanal) de Caliban, como receptáculo de meditações poéticas de outras culturas não visitadas pelo génio linguístico de Camões ou Pessoa (...) vertidos para português em acerada língua poética que lhes doava o poeta de Máquina de Areia, o universo da lusofonia, de milenária tradição universalista, recebia-os e absorvia-os, mais do que os divulgava.(1996, p. XV)

Lemos por outro lado na introdução de Saúte que a revista não estava vinculada à ideologia da época, nem compactuava com a obsessão pela moçambicanidade.

Estes cadernos Caliban representam, de forma bastante impressiva, caso único de uma publicação, no espaço geográfico e político em que se inseriam, uma abertura a diversas posturas de escritas, aglutinando vozes tão diferenciadas (...) não encontramos nesta publicação, entre 1971 e 1972, um projecto literário. Nem uma atitude formal homogénea. Não advém de um movimento literário. O programa destes cadernos, quer-me parecer, é praticar uma heterodoxia. Aparentemente, não há um traço de união. Encontramos muitas maneiras de dizer. Contra o sistema. Os textos, muitos deles, são de uma terrível denúncia da ordem então estabelecida. Se há um ideário claro de Caliban é esse. Uma mensagem com endereço disfarçado. (SAÚTE, 1996, p. X)

Embora concordemos apenas parcialmente com as asserções de Saúte, anuindo com o facto de Caliban não representar um movimento literário, no entanto parece-nos haver um ideário e uma proposta nesta publicação, que é exatamente a agregação das diferenças de dicção poética e a proposta de diálogo da heterogeneidade cultural. Ou seja, a colocação de uma moçambicanidade aberta ao mundo. Esta proposta só virá a ganhar concretização a partir da publicação pós-colonial da Revista Charrua em 1986 e ainda mais explicitamente a partir da publicação da Revista Literatas na presente década do século XXI.

Não é por acaso que, após o período da literatura da vitória, que tem lugar após a independência, em que a figura de Knopfli é praticamente abjurada, serão os autores mais jovens que irão resgatar a proposta poética de Rui Knopfli, nomeadamente através de dedicatórias, epígrafes, construção poética intertextualizada e outros procedimentos retorico-estilísticos que comprovam a contemporaneidade da poesia knopfliana. O próprio Nelson Saúte revela na sua escrita poética uma forte marca autorial daquele poeta e publicou uma Antologia de Poesia Moçambicana, a que atribuiu um verso de Knopfli como título: Nunca mais é Sábado (2003).

No texto da introdução a Caliban já referido atrás, Nelson Saúte acaba por reconhecer, ainda que de forma muito cautelosa, a original proposta dos editores de Caliban, que vai marcar a escrita literária moçambicana pós-colonial:

Ou engano meu- de que me quero penitenciar desde já- ou estes cadernos Caliban representam, de forma bastante impressiva, caso único de uma publicação, no espaço geográfico e político em que se inseriam, uma abertura a diversas posturas de escritas, aglutinando vozes tão diferenciadas. Indubitavelmente, um dos exemplos paradigmáticos dessa disponibilidade que os nossos escritores – nada de maniqueísmos- manifestam em relação a linguagens a praticar.(1996, p. X)

Esta reedição comemorativa da Revista Caliban é acompanhada de um importante texto do historiador António Sopa, que situa o ano de 1971 no quadro histórico da colonização portuguesa. Aí se analisa o contexto político, as atividades económicas e de desenvolvimento de Moçambique e da então cidade de Lourenço Marques, enumerando o autor as múltiplas atividades culturais que tiveram lugar nesse ano, na área da edição, teatro, conferências, exposições de artes plásticas (em que se contam inúmeros artistas como João Ayres, Maria Clara Guerra , Eugénio de Lemos, Samate Machava, António Bronze, Teresa Rosa de Oliveira, entre muitos outros). Tomamos consciência do fervilhar de uma atividade cultural e artística significativa, em que se enquadra a publicação da revista de poesia Caliban. Isto a quatro anos da independência de Moçambique. É neste sentido que se faz o depoimento de Eugénio Lisboa, que partilhou aquela época e a publicação do primeiro número de Caliban, com uma introdução à poesia de T.S.Eliot:

Em 1971, em Moçambique, ouviam-se já, de modo inequívoco, sons de presságio, que eram recebidos de modo desencontrado por um espectro variado de destinatários: uns com júbilo pela desejada transformação gigantesca que se avizinhava, para a vida política e social do território de Moçambique (...) Moçambique ia mudar, eis a única quase certeza que se podia deduzir do surdo rufar de tambores que uns preferiam não ouvir, que outros ouviam, não querendo acreditar, e outros, ainda escutavam com júbilo reprimido. (1996, p. XIII)

No quadro de uma censura aguerrida, de uma guerra colonial acesa, observamos que a abertura do número um de Caliban se faz com o longo poema “Quarta-Feira de Cinzas” de T.S.Eliot, poeta que marca uma viragem na escrita poética de língua inglesa com a publicação em 1922 da obra The Waste Land. Eliotvirá a marcar obsessivamente a obra poética de Rui Knofli, nomeadamente, e em especial O Escriba Acocorado (1978).Leia-se o início da tradução: “Porque eu não espero voltar de novo/ Porque eu não espero/ Porque eu não espero voltar/ Desejando os dotes deste homem e as capacidades daquele/ (Porque estenderia a velha águia as suas asas?) / Porque lamentaria eu/ o poder extinto do costumado reino?” (1996, p. 8). Este longo poema evoca vários temas, entre os quais o da emoção criadora e o da morte. É quase impossível não lembrar o texto de Eliot no poema Elegia Carnívora (1988), que anos mais tarde Luís Carlos Patraquim virá a escrever a propósito da morte de Samora Machel, o que nos remete para a importância antecipatória e projecção intertextual desta breve revista de poesia.

Morte e medo surgem como eixo comum a vários dos poemas que se publicam neste primeiro número, de José Craveirinha (Lustro à cidade), Jorge Viegas (Na boca da noite) e Rui Knopfli (Glosa de Shakespeare, Glosa de Camões, Glosa de Amphiteu).Em plena guerra pela libertação moçambicana, os poemas de Rui Knopfli falam sobre a passagem do tempo e inevitabilidade da morte. “Não chores por mim quando tiver morrido/ mais que o tempo do meu corpo baixar à terra./ E se ao leres depois meus versos te comover/a furtiva lembrança da mão que os compôs/reprime vivamente as lágrimas que aos olhos / te subirem.” (1996, p. 28). E o número primeiro termina, retomando a morte anunciada de um tempo a chegar, o do fim da era colonial, com três fragmentos premonitórios de O Morto, Ode Didáctica de João Pedro Grabato Dias, co-editor da revista Caliban.

Demos uma especial relevância à descrição deste primeiro número para salientar as intencionalidades estéticas, e obtusamente ideológicas, dos seus editores, pelos escolhas de tradução, de textos poéticos de várias origens, pela proposta de design e de apresentação da revista. O editorial habitualde abertura de publicação é aqui substituído pela citação do diálogo entre Próspero e Caliban e pela entrada imediata no poema de T.S. Eliot. A revista termina circularmente retomando o tema da morte com o poema de Grabato Dias referido.

Do segundo número destacamos em especial a tradução knopfliana de poemas de Zbigniew Herbert,a inclusão do texto de Herberto Helder, “Movimentação Errática”, em que as propostas discursivas oscilam entre a voz dramática e o registo crítico, com mistura vários tipos de dicção: “ Levar a linguagem à carnificina, liquidar-lhe as referências à realidade, acabar com ela – e repor o silêncio”(42). Refira-se também o texto de apresentação de Rui Knopfli sobre o poeta Fonseca Amaral, a quem chama de “mestre” (como Fernando Pessoa a Caeiro) de quem são antologiados doze poemas. Knopfli reivindica a importância da poesia deste autor no quadro da literatura moçambicana, numa geração do pós-guerra, em que se inclui Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Guerra, Rui Nogar, entre outros. Fonseca Amaral é descrito por Knopfli como “chefe de fila de um heterogéneo sector de jovens empenhados na escrita criativa”, dentre os quais também ele se inclui. Segundo Knopfli:

É por seu intermédio que se trava conhecimento com os movimentos de “Orpheu”, a “Presença”, o “novo cancioneiro” e a então recente poesia de Orlando Mendes, e é ainda sob impulso seu que aqui se estrutura uma poética que imprimiria à visão da vária problemática moçambicana uma feição de cariz vincadamente neo-realista. (1996, p. 46)

E o segundo número de Caliban termina com a inclusão de um fragmento de Frei Joannes Garabatus, outro heterónimo de António Quadros, que esboça aquilo que viria a ser o poema “As Quybíricas” (1972),em que se narra alegoricamente o desastre de Alcácer Quibir, e por leitura obtusa da figura anti-heróica de D.Sebastião, em suma uma alusão indirecta ao final do império português.

O último número de Caliban é duplo (3/4) e apresenta a tradução de poemas de Marianne Moore (doze poemas) que imprimem uma importante reflexão teórico-criativa sobre o fenómeno poético, tal como os poemas de João Rui de Sousa. São incluídos também poemas de Jorge de Sena, de Fausto Correia Leite, estabelecendo relações interacionadas com a pintura, uma evocação do poeta moçambicano Reinaldo Ferreira por Luís Amaro, poemas de Fernando Assis Pacheco. Da poesia moçambicana destaque para três poemas de Francisco de Sousa Neves sobre tradições orais moçambicanas, poemas de Orlando Mendes, Leite de Vasconcelos, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Glória de Sant’Anna. Por todos os poemas perpassa a dimensão de uma denúncia implícita do medo, do silêncio, da antecipação do fim. Leia-se um fragmento do poema Na dobra do vento que passa de Glória de Sant’Anna:

vigiam os olhos dos mortos/ o que nos falta de ausência/ o que nos sobra de sonho//na fímbria da noite estrelada/ escutam inquietos os vivos/ a sugestão de interferência/ ao mover de cada folha// vivos e mortos que somos/vivos-mortos morto-vivos/ a cada um sua sombra/ batendo no infinito (1996, p. 117).

A publicação deste último número duplo termina com um novo fragmento de Frey Joannes Garabatus, agora assumido como fazendo parte de As Qybiricas, ao qual se segue um último poema Rui Knopfli Normas para a regulamentação de um discurso próprio, que encerra a revista. Este último poema estabelece uma poética reflexiva e uma didática meditação sobre o ato criativo, propondo que “as palavras sejam, pois não uma exclusiva/volição de ser ou de significar”. Os objetivos críticos sobre a dimensão profana de um realismo ideológico são aqui repensados, querendo Rui Knopfli neste poema e em Caliban em geral salientar uma proposta de criação poética em que a qualidade, o rigor e a intertextualidade múltipla, se costurassem nas malhas da poesia moçambicana.

Não deixa de ser curioso, que após o final da publicação da revista Caliban, os dois editores e coordenadores da Revista, Rui Knopfli e Grabato Dias (outro heterónimo de António Quadros) venham a publicar alguns meses depois duas obras em que a dimensão anti-épica da presença portuguesa se faz notar, como A Ilha de Próspero e As Quybíricas, editadas no mesmo ano de 1972, antecipando o estertor do colonialismo português.

 

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¹Ana Mafalda Leite é Professora Associada com agregação da FLUL – Universidade de Lisboa, onde atua na graduação e pós-graduação. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina. Além de docente, ensaísta e pesquisadora, a autora é também poeta, tendo livros publicados em Moçambique, Brasil e em Portugal.

²Vanessa Riambau Pinheiro é Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

 

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