O romance angolano: marcos e marcas[1]
Maria Aparecida Santilli[i]
Tratar de romance demanda, de um modo ou de outro, passar pela pauta dos gêneros em literatura. Os gêneros consistiriam numa instituição que funciona como horizonte de espera para os leitores e como modelos de escrita para os autores. Se transgredir as normas do gênero, uma obra acaba, nesse caso, por ressaltá-las.
Embora relevante, enquanto vértice, ao mesmo tempo, da poética geral e da história literária dos eventos e, portanto, com lugar privilegiado nos estudos literários, na medida de suas relações com a sociedade onde aparecem, os gêneros têm também importância para a História e a Etnologia. Afinal, o sistema de gêneros de determinada sociedade permite distingui-la de outras, pelas suas características dominantes (BAKHTIN, 1998, p. 397).
Ao optar por tratar, aqui, do tema que se anunciou, faz-se oportuno retomar algumas questões, como essas que Mikhail Bakhtin levanta acerca do romance enquanto gênero. Uma delas diz respeito às dificuldades particulares que o estudo do romance apresenta. Bakhtin as condiciona à singularidade do próprio objeto. O romance, diz Bakhtin, "é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. As forças criadoras do gênero romanesco realizam-se sob a plena luz da História. A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas" (1998, p. 397).
Assim, o ensaísta pondera que – ao contrário do que ocorre com os outros gêneros já conhecidos por nós “em seu aspecto acabado”, “com ossatura dura e já calcificada”, com o seu “cânone próprio”, o romance é o único mais jovem do que a escritura e os livros. Acrescenta que, historicamente, são válidas apenas espécies isoladas de romance, mas não um cânone do romance como tal. O estudo dos outros gêneros, para ele, “é análogo ao estudo das línguas mortas, o do romance é o estudo das línguas vivas, principalmente aos jovens” (1998, p. 397).
Parece, pois, pertinente situar as reflexões a se fazerem aqui nesse quadro do romance enquanto gênero. Será pertinente, dado que se cuidará de alguns (poucos) romances que ilustraram esse traço das “espécies isoladas” de que fala Bakhtin, ou seja, de narrativas ficcionais cujas marcas distintivas ou diferenciais permitemagrupá-las em determinado conjunto de romances, dentre muitos outros que se podem encontrar, construídos e/ou descontruídos ao longo da vida do romance enquanto gênero.
Mas Bakhtin vai além, em sua investigação. Observa que, no percurso do romance enquanto gênero, processa-se uma “romancização dos outros gêneros”, ou seja, a transposição dos gêneros para uma nova área de estruturação das representações literárias que denomina a “área de contato com o presente inacabado”, “área pela primeira vez assimilada pelo romance”. Assim, para ele, o romance “tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era modernaprecisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo; ele é, por isso, o único gênero naquele mundo e em tudo semelhante a ele” (1998, p. 400).
Pensando como gênero in fieri, na perspectiva de Bakhtin o romance está, pois, ligado aos elementos do presente inacabado “que não o deixam enrijecer” (1998, p. 417).
Adverte, entretanto, o ensaísta, que a contemporaneidade, “como novo ponto de partida da orientação literária, não exclui absolutamente a representação do passado heroico, ainda por cima, sem qualquer travestização” (1998, p. 418). A representação do passado não demandaria, porém, “de forma alguma a modernização deste passado” (Bakhtin, 1998, p. 418). O romance é o gênero em que se viabiliza a representação autenticamente objetiva do passado. A “atualidade, com sua experiência nova”, persiste, no romance,
na sua forma de visão, na profundidade, na agudeza, na amplidão e na vivacidade dessa visão; mas ela não deve penetrar em absoluto no próprio conteúdo da representação como uma força que moderniza e que altera a singularidade do passado. Pois toda atualidade importante e séria tem necessidade de uma imagem estrangeira de um passado estrangeiro. (1998, p. 419).
Passar por essas colocações de Bakhtin abre um caminho em que melhor se ajustam as breves considerações que ora se pretende fazer no âmbito da prática do romance angolano – mais precisamente naquela de representação do passado -, na qual se poderia dizer que os pontos evidenciados por ele são, concomitantemente, indicativos de uma literatura nacional que, por si mesma, estará longe de uma “ossatura dura e já calcificada”, pelo contrário, é ilustrativa de várias das “possibilidades plásticas” que lhe são, em particular, potenciais.
A escolha ora feita é, pontualmente, a de observar, no processo de “romancização dos outros gêneros”, alguns exemplos em que a narrativa histórica é romancizada, no romance angolano contemporâneo.
Vale dizer que tal opção consiste na verificação empírica de – poucas – realidades discursivas com que se pode deparar no âmbito do romance angolano, que se contextualizam no plano da existência histórica do gênero.
Por isso, o viés pelo qual se vai operar é o das relações que se estabelecem entre história e ficção, a partir do lugar da diferença, o discurso narrativo, no qual as variantes de recuperar e mimetizar o real derivam de um desempenho ambíguo ou confuso de narradores, que incorporam a “performance” do historiador e do romancista.
Nessa mixagem rasura-se aquela concepção segundo a qual a diferença existente entre a história e a ficção é que o historiador deve encontrar, enquanto o ficcionista deve inventar as suas histórias.
A romancização de gêneros – no caso, a da narrativa histórica – implica uma convergência de objetivo no processo de significação de preencher o sentido da história, através de um denominador comum de procedimentos da história e da ficção, assim vistos por Linda Hutcheon:
Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos linguísticos, altamente, convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa. (1987, p. 141)
As categorias de verdade e falsidade, na romancização da historiografia, não são mais adequadas para se tratar da narrativa de ficção, dado o compartilhamento ou o uso comum de convenções, a inserção da subjetividade, a identidade de toda narrativa como textualidade. O que importa é distinguir suas estruturas. As formas narrativas se consideram, então, enquanto sistemas de significação em nossa cultura, e a distinção história/literatura deixa de ser problemática em si, porque, em qualquer caso, se está diante de uma forma essencial de compreensão humana, de imposição de sentido e de promoção de uma coerência formal ao caos dos acontecimentos.
Posto isso, cabe introduzir a questão de algumas variantes com que a romancização da narrativa histórica se manifesta na literatura angolana atual.
Vai-se evitar, então, retroceder às origens propriamente ditas da prosa de ficção em Angola, como seja para analisar, na medida própria de outras circunstâncias, o contingente de oratura que coletâneas organizadas a posteriori lograram resgatar e que alcançariam a conhecida projeção no horizonte de um futuro que o texto escrito faria fecundar.
Do mesmo modo, não comportará aqui visitar a pré-história da literatura de autoria angolana, em que se localizaria a noveleta de Alfredo Troni, Ngá Mutúri (1882).
Não obstante Mário Antônio tenha visto no escritor, nessa obra, um estranho examinando uma sociedade exótica, a caricatura oferecendo-lhe como instrumento de abordagem fácil, é importante registrar: o cômico dos gestos imitados e a desadaptação particular remanescente no comportamento da personagem, transplantada em sociedade estrangeira: o casamento de culturas que deixa espaços de desajuste e incompatibilidade. Alfredo Troni aí apresenta a vida da sociedade colonialista de Luanda, onde o sincretismo e o caráter artificioso das transfusões culturais se resgatam (1973, p. 20).
Quanto ao primeiro romance de autoria e marca especificamente angolanas, O segredo da morta, de Assis Júnior (1929), cabe fazer referência a certas qualidades matriciais que se evidenciarão nas obras tratadas aqui.
Esse romance de Assis Júnior sublinha dados que proviriam da história da vida privada angolana, na época em que se dão os acontecimentos por ele narrados, os últimos anos do século XIX. Segundo suas próprias palavras de “Advertência”, essa obra constituiria um “meio de divulgação do que o indígena tem de mais puro e são na sua vida”, através da revelação de um fato “verídico” que resultaria em “forte apoio para a formação da história das coisas, ainda mal conhecidas e das pessoas que, com poder e merecimento, nasceram, passaram e viveram” em sua terra (1979, p. 32).
O lastro documental do livro é reiterado pelo autor, ao oferecê-lo à leitura de todos aqueles "pretos e brancos que se interessam pelo conhecimento das coisas da terra; a vida angolana, que a civilização totalmente não obliterou - aquela civilização que se lhe impõe mais por sugestão e medo do que por persuasão e raciocínio, vivendo a seu modo e educando-se consoante os recursos ao seu alcance (...)" ( 1970, p. 32).
Os conhecedores do livro, ainda pouco discutido pelo quanto merecerá, declaram, unânimes, sua “forte angolanidade”, desde Henrique Guerra, apresentador da edição de 1979, com a qual o romance começa a circular mais amplamente.
Efetivamente, reserva-se uma surpresa especial àqueles que passaram, antes, ou independentemente da cronologia de publicação das obras, pela leitura de Misoso – literatura tradicional angolana, do angolano Oscar Ribas, ou pela de outra antologia de literatura oral, de compilação e edição mais remota, como os Contos populares de Angola, do suíço Héli Chatelain.
Se em O segredo da morta se procede a uma romancização da história privada angolana, a ênfase dos subsídios/índices de ordem histórica recai sobre a reminiscência do gosto e uso das adivinhas a que os conhecedores dos hábitos tradicionais angolanos se referem. Além de divertirem e assegurarem sua memória através dos contadores que as lançavam nas celebrações sociais, as adivinhas funcionavam como estimulantes do gênio e do raciocínio. Nesse romance, as reminiscências dessa velha prática oral podem indicar como o contador angolano encontrou uma forma de sua transposição para a literatura escrita. Na pródiga imaginação do contador, elas lhe permitem criar situações engenhosas, em que cada enigma funciona como uma espécie de adivinha para movimentar uma micro-história, no conjunto da macro-história.
O narrador de O segredo da morta define-se, assim, por situar-se na corrente de contadores orais que o teriam antecedido, com as respectivas intervenções para juntar o que lhe parecesse “irresistível”. E, nesse “juramento” de fidelidade ao verídico, que se multiplicará na futura forma de ficção angolana, tais intervenções vão revelando mais ângulos da realidade dos mortos que sobrevive na realidade dos vivos, como diferentes visões que se superpõem na memória de um grupo social.
A plurivocidade no romance de Assis Júnior institui-se por um contraponto de visões: a mítica e a histórica. Da primeira derivaria a própria atmosfera de mistérios e enigmas que solicitam a decifração; da segunda resultaria o aparato de crônica, como se mostra pelas referências às questões militares ou de luta dos soldados da rainha de Angola, bem como às guerras de Jabadá, na Guiné, do mesmo modo que pelos dados de ordem histórico-geográfica e econômica, ou com a interferência de um texto, O despotismo, de Francisco A. Pinto, quando a este é transferida a função de informar.
As alusões ora feitas à obra de Assis Júnior se devem à sua importância, quer pelos procedimentos significativos para a história geral do gênero (romance), quer, por outro lado, enquanto descrição e ordenação de fatos que, por responderem a certas tradições locais, indicam uma fase do gênero na literatura de Angola em que a memória social – cuja continuidade fora sobretudo oral – passa a textualizar-se como memória coletiva escrita, em que a história, compatibilizada com o mito, cresce na preservação do passado, aproveita ao presente e contribui na invenção de um futuro para as letras angolanas.
Desde a década de 60, prolifera o romance em que a memória, isto é, a conservação ou retenção dos acontecimentos passados, e a reminiscência – como ato de evocação ou a capacidade de tornar atual a matéria da memória aí contida – constituem operadores valiosos aos inventos, na prosa de ficção.
O caso de Castro Soromenho é o de um angolano naturalizado e de um romancista tradicional, posto que seus romances tematizados em Angola cumprem, de certa maneira, uma função análoga ao de Assis Júnior. Neles se inscrevem pólos de conflitos extremados, pelo choque eletrizante das etnias, pela contundência do debate entre povos forasteiros e autóctones, pelo atrito de estruturas sociais desirmanadas em que se formata o ciclo histórico do colonialismo. Em Terra morta (1949), exemplar nesse aspecto, a ficcionalização não abre brechas para o acesso desvelado de atores “reais”, em consonância com o que acontece com os componentes do discurso histórico. A História submerge na imagem que dela se inventa, ou seja, como se não fora História, embora o romance se indicie como obra de visível esforço mimético. Cria-se um universo cuja estrutura se reflete o período da vida do povo angolano regido pelo “indigenato”, um programa de gradativa aculturação (não de transculturação), prevendo a conversão do “indígena”, membro de uma sociedade entendida como “primitiva” que passa à condição de “assimilada” pela cultura do colonizador, imposta como “civilizada”.
Assiste-se, então, a um empenho para destribalizar, concretizado pela ação do grupo burocrático que administra a Circunscrição e mediante a colaboração de alguns dos próprios angolanos feitos já policiais, os cipaios e capitas. Parece, portanto, viável ao leitor somar a função de índices aos informantes da narrativa, segundo os quais uma população branca de dez funcionários, três cipaios na sede e mais um em cada posto, ou seja, 21 homens, aos quais se agrega meia dúzia de comerciantes portugueses, é responsável pela “disciplina” de 40.000 negros, pela conservação de 700 quilômetros de estradas numa área de 30.000 quilômetros quadrados, pela cobrança de mais de mil impostos, por mandar anualmente mais de mil negros às minas. Somente um sistema de domínio facilitado pela dissolução tribal e pelo crescente colaboracionismo do negro “convertido” seria exequível com o investimento desses parcos recursos.
Em Terra morta registra-se, pois, a luta isolada do negro pela terra, in extremis: os poucos fiéis a seu próprio chefe, Xá-Macuari, que restam do esforço agônico das tribos sob autêntica liderança dos antigos sobas, sepultam o último chefe com os cerimoniais de sua cultura, convertendo a cinzas as palhoças de sua aldeia, para passarem a vau o rio Luita e ganharem o destino de nômades.
Em todo esse esquema de conflito, a romancização de outro(s) gênero(s), o da narrativa histórica especificamente, não se processa com o concurso da natureza intertextual do passado. Por outras palavras, história e ficção não dialogam; tornam-se um compacto em que a interlocução dos gêneros deserta.
Daí poder-se entender Terra morta como romance tradicional, distante das propostas, quanto a isso subversivas, no romance da pós-modernidade.
Nesse sentido composicional, a obra de Castro Somenho não dá passo à frente no percurso de evolução do romance, embora consolide o traço de colagem à História, como um denominador comum na linha de romance que se está considerando.
Para assinalar passos adiante no percurso do romance angolano, saltando necessariamente etapas e obras de relevo em sua série, escolheram-se apenas dois romances com narrativa em primeira pessoa.
A sugestão de escolha veio de advertências dos linguistas sobre “a ordem natural” de importância entre as pessoas gramaticais (eu, tu, ele) ou sobre a hierarquia entre elas estabelecida. Os estudos linguísticos são ainda mais sugestivos para os estudos literários – e, portanto, determinantes para as opções deste trabalho – ao alertarem para que, no sistema da língua, a pessoa gramatical, quando comanda o verbo, marca nele a sua presença, assume a função de sujeito. Além disso, foram importantes para direcionar a escolha, dado que tratam da terceira pessoa como a única concebida enquanto (ausente ou) distanciada do diálogo, ao passo que as outras pessoas representam um encontro de presenças: “eu”, “tu”, “ele”.
Michel Butor assinala que, cada vez que há uma narrativa romanesca, as três pessoas do verbo estão obrigatoriamente em jogo: duas pessoas reais: o autor que conta a história e que corresponderia, na conversa corrente, ao “eu”; o leitor a quem a história é contada, o “tu”; uma pessoa fictícia, o “herói” de quem se conta a história, o “ele”. O autor, se utilizar a terceira pessoa, estará convidando, na verdade, a superpô-la à primeira pessoa, sempre subentendida; ou estará criando uma figura.
A escolha da narrativa em primeira pessoa, para este trabalho, resultou, finalmente, desta reflexão sobre a leitura de Butor: se o “eu” do narrador é a projeção do “eu” do autor no mundo fictício, seria oportuno, então, privilegiar aqui o narrador de primeira pessoa, pela relação de contiguidade entre esses “eus”, entre o “eu” do autor e o “eu” do narrador, como “ponto de tangência entre o mundo contado e aquele onde se conta este mundo, meio-termo entre o real e o imaginário”, segundo Butor (1974, p. 48).
A questão da romancização do discurso histórico poderia ser apreendida, assim, nesse ponto de tangência, isto é, no ponto nevrálgico do meio-termo entre a referência e a ficção. Vale dizer, no ponto de maior ambiguidade entre o fato – o verdadeiro – e o factício – o verossímil -, da invenção. Foi por esse caminho, portanto, que se chegou à decisão de procurar narrativas de primeira pessoa que acabaram por ser reduzidas a duas obras, das quais se trataria sumariamente, considerando os limites muito estreitos que circunscrevem esta apresentação. Constituiriam, entretanto, uma amostra de diferentes formatações em que a relação da literatura com a História se apresenta em literaturas de língua portuguesa.
A primeira dessas duas obras é Mayombe, romance angolano (escrito em 1971) com primeira publicação em 1980 (Lisboa/Luanda, Edições 70 – UEA). Estampa, na abertura, a dedicatória com que o autor acaba por identifica, também, sua obra: “Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano”.
Como se houvesse estabelecido, antes de qualquer outro, um compromisso determinado com tal endereço, o livro se encerra com a confirmação de fidelidade a esse pacto: “Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano”.
É perturbador, nesse romance de Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos), o encaixe sistemático de primeiras pessoas no corpo de uma narrativa da convenção de terceira pessoa. Provocam um efeito singular, o de heteronímia.
No primeiro capítulo, assim aparecem: “Eu, o Narrador, sou Teoria” (três vezes); “Eu, o Narrador, sou Milagre” (três vezes). No segundo capítulo, acrescentam-se os seguintes: “Eu, o Narrador, sou Mundo Novo” (duas vezes). “Eu, o Narrador, sou Muatiãnvua”.
No terceiro capítulo, surgem mais: “Eu, o Narrador, sou André”; “Eu, o Narrador, sou Chefe do Depósito”. No capítulo quatro, serão: “Eu, o Narrador, sou Chefe de Operações” (duas vezes). No quinto e último capítulo haverá: “Eu, o Narrador, sou Lutamos”.
O romance termina com o discurso breve assumido pelo último sujeito, que assim se identifica: “O Narrador sou Eu, o Comissário Político”, que é quem então incorpora todo o relato, inclusive o de versão em terceira pessoa.
Afinal, o assunto, nesse livro, é o quotidiano de guerrilha na floresta de Mayombe, na fase da luta armada pela libertação de Angola. Mas o desafio para o analista é a charada que lhe é posta a decifrar, na equação discursiva em que tal assunto se formalizou. A pergunta-chave está, como se pode presumir, na inquietante conversão de vozes operada ao longo do romance. Por que se inventariam co-narradores para se atravessarem nesse relato de uma luta coletiva, participantes da mesma causa, a da liberdade a que todos igualmente aspiram?
Tanto assim é que todos se identificam pelos seus “nomes de guerra”, os nomes que assumem na correlação interpares, estabelecida para a ação conjunta da libertação.
O que parece ocorrer, entretanto, é que a heteronímia torna possível pôr à mostra a forma pela qual cada um está para o outro e como todos estão para a libertação (que é o óbvio).
Em Mayombe, o desdobramento dramático que as mudanças de vozes indiciam permite representar a disputa de comando também no âmbito interno da guerrilha angolana, à medida que as vozes, como exercício de autonomia de seus respectivos sujeitos, deixam transparecer as ambições dos diferentes atores na demanda de disputar o espaço verticalizado das instâncias de decisão.
Por essa solução discursiva, evidencia-se, portanto, nas diferentes vozes, o jogo de disputa dos vários grupos étnicos, das diversas nações angolanas no interior dos próprios postos de guerrilha, onde, concomitantemente, os apelos de liberdade política são comuns.
Observe-se nestas falas:
Eu, o Narrador, sou Milagre.
O MPLA expulsa os melhores, só porque eles não se deixam dominar pelos kikongos que o invadiram. (1980, p. 56).
Eu sofri o colonialismo na carne (...). Como posso suportar ver pessoas que não sofreram agora mandarem em nós (...). (1980, p.56)
Ingratidão foi preso. “Quem decidiu? O Comandante (...). Um intelectual, que nada conhece da vida, que não sofreu, um homem desses é que pode condenar- nos?” (1980, p. 74).
Eu, o Narrador, sou Muatiãnvua.
Eu, Muatiãnvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos do Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem de tudo (mas não é a praia uma margem?), eu não preciso de me apoiar numa tribo para sentir a minha força. A minha força vem da terra... (1980, p. 140)
Eu, o Narrador, sou Mundo Novo.
Como poderemos fazer confiança num homem tão pouco objetivo? A Revolução é feita pelas massas populares, única identidade com capacidade para a dirigir, não por indivíduos como Sem Medo. O futuro ver-me-á, pois, apoiar os elementos proletários contra este intelectual que, à força de arriscar a vida por razões subjetivas, subiu a Comandante. A guerra está declarada (1980, p. 118).
Eu, o Narrador, sou Lutamos.
Terei de ser eu a impor-me, contra o tribalismo, quando Comandante for para Leste; que será feito do meu povo se o único cabinda se postar mal? (1980, p. 272).
Como se vê nessas amostras, as vozes interferentes contribuem para criar a tensão interna agudizada pelo debates que as diferentes opiniões instauram.
A propósito, precedendo a última e breve intervenção, no pós-combate que constitui a operação militar magna nesse romance, abre-se uma alternativa, na narração, para se incluírem os juízos avaliatórios, dos quais merece menção o do Chefe de Operações. Veja-se:
Lutamos, que era cabinda, morreu para salvar um kimbundo. Sem Medo, que era kikongo, morreu para salvar um kimbundo. É uma grande lição, camaradas. (1980, p. 281)
Como sabem os leitores de Mayombe, o Comandante Sem Medo, guerrilheiro de Henda, a princípio chamado de Esfinge, por ter resistido sozinho a um grupo inimigo, recebe a nova designação, que prevaleceu até sua morte. Como os companheiros de luta, tinha o segredo da razão pela qual entrara na guerrilha, sendo ele um estudante de Economia em 1964, ano em que ingressou no grupo, que é, afinal, o herói coletivo desse relato de Pepetela.
Sem Medo corporifica, no romance, o ideal libertário, daí condizer com a tese de desmistificar os nomes, acabar com os fetichismos dos rótulos que geraram as dissensões desta história. Entender-se como marxista não implicava, para ele, submeter-se a todas as coisas impostas em nome de uma ideologia e de um partido político.
Compatível com uma concepção dinâmica do corpo social, a mensagem (ou o sentido global - que se constrói na obra emana do princípio do “organismo vivo, que é capaz de se negar para renascer de forma diferente, ou melhor, para dar origem a outro” (1980, p. 129).
A cada momento – como ocorreu no combate mencionado – as ações redefinem os agentes dos quais, portanto, não se pode cobrar o aprisionamento em fórmulas fixas e imutáveis. É sob uma perspectiva dialética que a questão da liberdade se rediscute em Mayombe.
Conforme se viu, o discurso de projeção do “eu” – no caso de Pepetela multiplicado – foi pertinente para estabelecer o dialogismo pela convergência ou até pelo choque de posições político-ideológicas diversas, através das quais se delineou o ponto de vista mencionado nesse romance.
Mas é fascinante verificar, também, como a projeção do “eu” pode provocar um exercício de interatividade, explícita ou até programática, entre emissores e receptores, em outras modalidades de discurso literário.
Por isso pensou-se em trazer aqui mais um exemplo de como a questão colocada neste trabalho se mostra na epistolografia ou no memorialismo.
Como quer André Crabbé Rocha, a carta, enquanto meio de comunicação por escrito, não visa apenas a cumprir uma intenção noticiosa, porque communicare significa, ainda, “pôr em comum”, “comungar”.
Tal “comunicar” tem sido objeto de muita tinta. Questões de ordem teórica vêm-se acumulando: a da individualidade/identidade (do remetente e do destinatário) e a correlação dos sujeitos da intercomunicação: os graus de intimidade que a correspondência envolve; os limites da formatação; a variedade dos assuntos (no limite, até a carta de restaurante, a carta-patente, a carta de navegação, a carta mapa ou as cartas na mesa; fact e ficiton, nas cartas; espontaneidade versus cânon).
Também já muito se escreveu – conforme é sabido – sobre cartas famosas (desde antes de Cristo – as cartas de Cícero e a famosa Carta Consolatória a Terência: as cartas de Petrarca; mais tarde, as epístolas dos evangelistas).
Cabe mencionar as particularidades das cartas que mereceram de Rodrigues Lobo, em Corte na aldeia (1619), uma classificação por gêneros, bem como as de Cândido Lusitano em Secretário português compendiosamente instruído no modo de escrever (1745), retornando a distinção de Cícero e Quintiliano; pelo volume de produção, as 4.400 cartas de Tchekhov (1875-1904), para não citar, também, outras notáveis como a Carta de Pero Vaz de Caminha e as Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga.
Essa é, como se pode perceber, uma via de introdução ao segundo livro que aqui se pretende comentar: Nação crioula, de José Eduardo Agualusa.
O perfil, desenhado por Fradique, reelabora-se aqui mais radicalmente por Ana Olímpia, imaginada remetente da última carta.
Resumidamente, o perfil dos locutores, nesse livro, define-se ou redefine-se por uma relação que se processa no passado, presume a Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, através de um jogo de sugestões e substituições. Assim, essa relação constrói, efetivamente, um outro passado, hipotético, alternativo ao da proposta queirosiana, na linha de famosos romances a que a teoria e a crítica pós-moderna atribuíram a designação de meta-historiográficos e dos quais se pode procurar um exemplo mais próximo em José Saramago.
Na linha de uma edificação literária que se constrói sobre outra, com substituição ou reformulação. Nação crioula promove uma relação dialógica pela identificação e pela distância entre o texto-referência – a Correspondência de Fradique Mendes e o texto referente - Nação crioula.
No leito da paródia, questiona-se, assim, por um ato de criação estética, outro que o antecedeu. Tal problematização do passado literário desencadeia-se desde o título. Mais propriamente se instaura já com a conotação identitária, de “crioula”, que, de entrada, se aplica a “nação”, remetendo a um sentido que deriva do contato interétnico como processo em duas mãos e que se firma depois, pela inclusão da nova remetente-destinatária de Benguela, Ana Olímpia, com a presença surpreendente da qual se desconstrói o conjunto original de correspondentes de Fradique Mendes.
A inclusão do Brasil, juntamente com Angola, entre os lugares-sede da Correspondência, reforça, por coerência, a linha significante que atravessa Nação crioula, des-hierarquizando as partes do Império. Assim, também a novidade no nível dos remetentes-destinatários estabelece a horizontalização, no novo círculo de relações entre aqueles que representam ou vêm representar diferentes cidadanias no âmbito interno do Império Colonial Português.
Conforme dissera Bakhtin, a experiência nova, da atualidade, de Pepetela e Agualusa, através da representação do passado, fica evidente na forma de visão e na preservação de uma imagem autêntica, mas por uma linguagem que, em relação a esse passado, é “estrangeira”, trazendo à tona um tempo que, no contexto do presente, soa “estrangeiro”.
A distância temporal entre a narração e o narrado, consignada em Mayombe e em Nação crioula, é evidentemente diversa. Em Mayombe, o efeito de leitura é o de haver sucessivas etapas de um presente que se vai imediata e sucessivamente convertendo em passado, no passado todo da tensão interna, nas guerrilhas de libertação de Angola. Passa ao leitor a sensação de um registro ponto por ponto, como que a assegurar a memória de episódios acontecendo e prontamente cristalizando-se no continuum de uma documentação com partes imperdíveis.
Em Nação crioula, o grande espaço de tempos que medeia a narração e o narrado ajusta-se a um distanciamento do ponto de vista, contestatário da perspectiva queirosiana de nação portuguesa e de África – que, assim deduzida da Correspondência de Fradique Mendes, já nessa altura pareceria estreita.
De qualquer maneira, pode-se finalizar com as sugestões iniciais de Bakhtin: de que o romance é um lugar privilegiado nos estudos literários, dado que, no sistema de gêneros de determinada sociedade, permite distingui-la de outras – como ora foi o caso -, com interesse para áreas de fronteira, conforme se viu, para a História e a Etnologia, de que, enquanto gênero “inacabado”, nessa linha de romancização de gêneros, apresenta-se como uma das “espécies isoladas” de romance, entre outras, com as quais deduz-se que, no futuro do romance enquanto gênero, também se construa a presumível consolidação da narrativa de ficção angolana.
NOTAS
1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004 e publicada pela Editora da PUC Minas.
Referências
AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula. A correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 1998.
ASSIS JÚNIOR, Antônio. O segredo da morta (Romance de costumes angolenses). 2. Ed. Lisboa: União dos Escritores Angolanos: Edições 70, 1979.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 4.ed. São Paulo: Edunesp: Hucitee, 1998.
CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola. Trad. M. Garcia da Silva. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1964. Original Folk-tales of Angola.
PEPETELA (Artur Pestana). Mayombe. Lisboa: Artur Pestana (Pepetela): Edições 70, 1980.
RIBAS, Óscar. Misoso. Literatura tradicional angolana. Luanda: Tipografia Angolana, 1961.
SOROMENHO, Castro. Terra morta. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949.
TRONI, Alfredo. Nga Mutari: cenas de Luanda. (Prefácio de Mario Antônio). Luanda: Textos Breves de Edições 70, 1973.
[i] Professora Titular da Universidade de São Paulo, na área de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa.
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