Bordejando a margem (escrita feminina, cânone africano e encenação de diferenças)[1]

Laura Cavalcante Padilha i

A palavra é um pacto com o tempo. Mesmo que seja um tempo  fissurado entre realidade e sonho, entre vivido e por viver, entre ruído e silêncio.
(Paula Tavares)

O bordejo pela margem: fundamentos

O termo bordejar faz parte do vocabulário náutico, estando, pois, diretamente vinculado ao mar e às embarcações. Como se sabe, bordeja-se quando se navega, costeando o litoral, ou sem rumo certo e segundo a direção dos ventos. Talvez tenha sido essa a sensação que, como pesquisadora das Literaturas Africanas, sempre experimentei, ao navegar por suas margens, que era o que se me oferecia, ao invés do caminhar seguro por um mar já conhecido e que as minhas próprias cartas náuticas desde muito tempo explicavam ou descreviam. Também o termo mais se sedimentou em meu imaginário leitor, quando o objeto de meu olhar passou a ser as produções poéticas femininas cujo lugar, no ocidente, sempre foi o da borda, da orla, da fímbria, da margem, enfim. E por muito tempo também.

Explicado o termo bordejar, começo pela lembrança desnecessária, mas que merece ser invocada, do sentido dicionarizado da palavra cânone, etimologicamente derivada do grego kanón, pelo latim canone. Lemos em Nascentes (1972) que o termo significa

Regra geral donde se deduzem outras particulares, catálogo dos livros sagrados, reconhecidos como de inspiração divina; catálogo dos santos reconhecidos pela igreja; fórmula de orações [...]; decisão de igreja [...]; modelo plástico. (p. 318a)

Vê-se, pela leitura das acepções, que a palavra está ligada ao campo semântico do sagrado e da fé. De Camões, dentre outros, obviamente, vem-nos a convicção de ser a fé, par do império, uma das principais estacas de sustentação do alicerce ético do edifício chamado ocidente. Ora, se o cânone faz parte desse grande edifício, ele se contamina do seu caráter coercitivo e opacizante. A sua base, alerta o verbete, é o reconhecimento dos valores, no caso estéticos, que o fundamentam e sacralizam.

Sendo as culturas africanas, por princípio e de princípio, excluídas, por sua diferença axial, de tal edifício, por não se sustentarem nem em uma base greco-latina nem na judaico-cristã, não há outra saída para suas manifestações, senão a imersão no vazio e no silêncio, muitas vezes transmudados em silenciamento.

É óbvio que, a partir de um determinado momento histórico, o catálogo, ou “o arquivo dos conhecimentos ocidentais”, no dizer de Aijaz Ahmad (2002, p. 16), passa a exercer seu fascínio sobre o imaginário dos excluídos desse grande sistema. Desse modo, vê-se que o desejo da letra e a “regra geral” da modelização canônica passam a fazer parte do arquivo dos conhecimentos africanos, quando os colonizados têm acesso aos bens simbólicos do que se pode considerar o vetor alto da cultura do ocidente. Em especial, interessa-me aqui pensar o modo como, nessas entradas e saídas, se dá a apropriação pela mulher daqueles bens. Interessa-me também rastrear o momento a partir do qual ela tem condições de participar do jogo inclusivo, pelo letramento, e como adquire domínio sobre o espaço simbólico do arquivo. Por fim, apetece-me entender de que modo a sua fala se estrutura em relação à dos actantes masculinos dessas culturas ditas periféricas, e como nessa fala se inscrevem, ou não, as suas marcas de classe e gênero – ainda Ahmad (p. 22).

A escrita literária feminina, vale lembrar, fosse africana ou não, historicamente imergiu em uma zona de profunda exclusão, habitando o sombreado das fímbrias. Como indica Lucia Guerra (1995), a mulher ocupou sempre uma posição subordinada, sendo privada, na organização patriarcal, “de sua própria História e das histórias que modelizam sua própria experiência” (p. 26-27; traduzi). Ora, esse lugar de subordinação nem sempre está de acordo com as formas de organização das sociedades africanas onde a mulher sempre exerceu um papel muito representativo, sobretudo no que se refere à etnia banto. Recorro a Raúl Altuna (1983) que, na análise feita desse papel, afirma que a mulher, por ter o dom da maternidade, se faz uma espécie de “laboratório sagrado”. Sua principal fórmula química é o sangue pelo qual “os antepassados prolongam-se e as linhagens vão rodando pelos séculos” (p. 256). Há, desse modo, um conflito de base entre as sociedades patriarcais do ocidente e as matrizes africanas de sacralização da mulher.

A colonização vai interferir, é óbvio, nesse quadro geral, no momento mesmo em que impõe seus inquestionáveis modelos e jogos de hegemonia e poder nas sociedades com as quais passa a interagir pela dominação, buscando civilizá-las, para arrancá-las do seu estado de barbárie, aqui tomando o sentido dicionarizado de civilização. Por isso mesmo, se se recorta o papel secular da mulher africana, não se pode deixar de pensar que a sua rasura, em tal plano simbólico, significa um duplo mergulho no silêncio. Assim, para dimensionar tal silêncio e os movimentos para superá-lo, dentro do recorte temporal proposto – dos fins dos anos de 1940 aos de 1970 –, elenquei uma série de instrumentos culturais, para neles buscar os textos poéticos femininos e outros de caráter geral que resgatassem seja o papel social da mulher, seja a sua performance intelectual stricto sensu. Com essa ampliação, visei também alargar o espectro da fala feminina fora do corpus estritamente poético, para melhor perceber e analisar não só sua produção literária propriamente dita, mas os traços da diferença dessa fala em relação ao discurso masculino hegemônico, tal como o ocidente o erigiu. Por fim, a meta última foi refletir sobre o processo de circulação da obra individual, isto é, dos livros dessas poetisas – e aqui prefiro esta nomeação à de poetas que é uma forma de reforçar a preponderância nominativa do masculino sobre o feminino –, considerando sua relação com o mercado editorial (títulos publicados, época da publicação, o financiamento das edições, divulgação etc.), via pela qual se pode mensurar a visibilidade dessas produções no tempo abrangido pela pesquisa. Daí, o incluir os anos imediatamente posteriores às independências. Quanto ao espaço, Angola e Moçambique foram o ponto de ancoragem do olhar crítico, embora com expansões para os outros países, sempre que a forte presença de alguma(s) mulher(es) a isso obrigava, como se dá, por exemplo, com Alda Espírito Santo.

Meu grande objetivo, ao fim e ao cabo, usando palavras de Kwame Anthony Appiah (1997), foi ir um pouco além, pois desejei estabelecer uma espécie de “sintonia com os modos pelos quais a ‘escavação’ convencional do cânone literário pode servir para consolidar uma determinada identidade cultural” (p. 93). Ao me valer das produções poéticas femininas, elegendo-as como a área privilegiada da “escavação”, pude perquirir como as identidades culturais se foram construindo/reconstruindo no processo de descolonização, principalmente no período das lutas de libertação nacional.

Começando pelas antologias

Como se sabe, antologizar significa trazer para o cânone, pois, por esse gesto, há um processo de reconhecimento no qual subjaz uma forma escamoteada de sacralização qualquer. Assim, para rastrear a fala poética feminina em expansão entre o fim dos anos de 1940 e os de 1970, comecei por um conjunto de antologias que já então se faziam canônicas, como  No reino de Caliban, organizada por Manuel Ferreira (3v., 1975, 1976 e 1988) e pela paradigmática Antologia temática de poesia africana, cujo organizador, Mário Pinto de Andrade, alia claramente o projeto estético ao ideológico que procura adensar (2v., 1975 e 1979). Ainda foram buscadas as coletâneas: Poesia negra de expressão portuguesa, assinada pelo mesmo Mário, em dupla com Francisco José Tenreiro (1953) e Antologias de poesia CEI – 1951/1963, em dois volumes, e editadas pela Associação Casa dos Estudantes do Império (ACEI), em 1994.

Pela importância do material aí contido e pelo fato de atenderem, de modo mais direto, à cronicidade da pesquisa, as Antologias constituíram-se, desde então, a minha principal fonte, juntamente com Poesia negra (1953), apesar da pouca extensão desta última, por assim dizer. Por fim, não há como deixar de considerar 50 poetas africanos, coletânea organizada também por Manuel Ferreira, dada a público em 1989 e que constitui claramente um gesto de sedimentação canônica, como adiante se verá.

No primeiro volume das Antologias, encontram-se duas coletâneas igualmente intituladas Poetas angolanos (1959 e 1962). A terceira cobre São Tomé e Príncipe (1963). As capas que abrem duas das coletâneas do volume mostram a força da mulher-mãe no imaginário banto, sempre um duplo da terra.

No segundo volume, encontra-se a “Separata da Mensagem dedicada à Poesia em Moçambique”, de 1951, e ainda as duas antologias então publicadas (1960 e 1962).

Ao todo, em tais antologias, aparecem: 31 poetas angolanos; seis santomenses e 57 moçambicanos nomeados, além de dois desconhecidos. No conjunto assim formado, 94 poetas, há 11 poetisas, isto porque Vera Micaia é pseudônimo de Noémia de Sousa. Portanto, em um universo de 94 poetas nomeados, apenas, e aproximadamente, 12% são mulheres.

Vale notar que essas antologias jogam o jogo de tentar driblar o outro, colonizador, mas deixa quase de fora a questão da fala duplamente colonizada da mulher africana do tempo. Nomeiam-se e dizem seus textos nas antologias da CEI: Angola: Lília da Fonseca; Alda Lara; Ermelinda Xavier; São Tomé e Príncipe: Maria Manuela Margarido e Alda Espírito Santo; Moçambique: Irene Gil; Noémia de Sousa/ Vera Micaia; Ana Pereira Nascimento; Anunciação Prudente; Glória de Sant’Ana e Marília Santos. Dessas, quantas sabemos quem são? Como viam o mundo? Como se viam? De onde falavam? Por que falavam? Que modelos poéticos estavam na antecena de seus versos? Como seus corpos culturais se encenavam? E os seus corpos físicos? A última parte deste texto tentará responder a algumas dessas questões.

Quanto aos 50 poetas africanos, vejo-a como uma antologia de extração canônica, a partir mesmo do que preceitua, no prefácio, o seu organizador, Manuel Ferreira, ao afirmar que nela “prescreve o critério de selectividade” e que o ponto de vista adotado é o “qualitativo” (1989, p. 7-8). Portanto: seleção + qualidade = sacralização, ou seja, consolidação de um cânone.

Nesse quadro geral, dos 50 poetas elencados, dentro do “critério de selectividade” e “do ponto de vista qualitativo”, só aparecem duas mulheres: Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, as mesmas selecionadas na antologia organizada por Mário e Tenreiro. Sedimenta-se o cânone africano, com a exclusão da maioria das produções de mulheres e os textos de 1953 e 1989 se tocam nos nomes de Alda e Noémia, embora tais textos se façam tão distintos em sua finalidade e processo de elaboração. Ao final, repito, veremos que tipo de encenação política os poemas dessas duas mulheres então canonizadas representam; a sobrevivência de seus textos até os nossos dias e a retomada, por ambas, da força sacralizante da mulher africana, laboratório sagrado onde se processa a permanência dos ancestrais.

Dois instrumentos culturais do tempo e sua importância

Para além das antologias, o presente trabalho se valeu do boletim Mensagem da CEI, editado, com interrupções embora, entre 1948 e 1961, em Lisboa, cidade sede da Casa. O papel do boletim, mesmo em sua simplicidade gráfica, é insofismável. Por ele, sedimentam-se as culturas africanas, ao ganharem visibilidade no coração do império. Recorro a Alfredo Margarido (1994) que, ao analisar o papel das antologias, análise aqui estendida ao boletim, assim se expressa:

O que estava em causa era, de maneira evidente, para cada grupo nacional, a necessidade de assegurar a automatização dos instrumentos culturais que, permitindo a afirmação da capacidade criadora, fornecesse ao mesmo tempo os alicerces a uma consciência nacional cada vez mais liberta dos obstáculos colonialistas (p. 15).

No boletim, essa necessidade se evidencia de modo contundente e, nesse quadro, a presença feminina é um dado que não se pode minimizar. No ensaio “Silêncios rompidos” (2003, p. 171-186) penso já ter dado conta do que se passa, quanto às vozes femininas, em Mensagem da CEI. Queria tão somente aqui retomar a questão de ser a recorrência às imagens ou ao papel da mulher um dos traços fortes do periódico. Ao analisar os números da publicação, percebe-se neles projetar-se, com clareza, a mobilização histórica das mulheres africanas do tempo. O primeiro número, por exemplo, se abre com a transcrição de uma palestra de Alda Lara – uma saudação aos estudantes recém-chegados – que, como analisei no ensaio, não se pode soltar das amarras coercitivas de um olhar machista e colonial. Onze anos depois será outra a postura de Maryse Taveira, ao conclamar “a juventude feminina” para que lutasse pelos seus direitos usurpados na sociedade machista (1959, n. 2, ano II, p. 11).

Antes de Maryse Taveira, Alda Espírito Santo, já alertara em “Luares de África”, com todo o seu pioneirismo, para a situação de privação da mulher negra africana, cuja voz, segundo ela,

Não se levanta. Morre na distância. Ela nem voz tem. É escrava. – É mulher negra [...]. É vítima de todos. [...]. A nossa raça não poderá erguer-se enquanto se não tentar dar à mulher – às últimas da sociedade – um campo aberto com o privilégio de se poderem considerar com direitos. (1949, n. 7, ano I, p. 13)

Mensagem vai, assim, tecendo aquela energia nacional de que fala Gramsci (1985) e que é, sobretudo, coletiva. O boletim deixa patente o papel significativo representado pelas mulheres no que tange ao processo de consolidação da face em diferença e, como consequência, do nacional.

Outro instrumento cultural de suma importância para as presentes reflexões foi Jornal de Angola, em um período de tempo que vai de 1954 a 1961. O ensaio “Corpo e terra: um entrecruzamento simbólico em falas poéticas de mulheres africanas” (2003, p. 219-228) sintetiza a leitura dos poemas que circularam no periódico, leitura que, em parte, se retomará no segmento final deste texto.

Desejo aqui tão somente apresentar algumas pistas de leitura do Jornal, órgão da Associação dos Naturais de Angola. Se pensamos ter tal Associação congregado os Novos Intelectuais e o seu grito subvertedor de “Vamos descobrir Angola!”, podemos dizer que o periódico fundado em 1954 representa, em alguns pontos, uma espécie de retrocesso político, pelo menos inicialmente. Alia-se à portuguesidade e se mostra como um órgão conservador. Certo que, posteriormente, há um salto, como já analisaram, dentre outros, Costa Andrade e João Melo, em várias oportunidades. No início do período abrangido pela pesquisa, vê-se, no entanto, que o jornal caminha na contracorrente da Mensagem, revista editada em Luanda por aqueles mesmos intelectuais e da qual saem apenas dois números.

Futuramente, as conclusões de uma pesquisa já realizada com Jornal de Angola serão publicadas, mas aqui me interessa apenas apontar o modo como o jornal vê a mulher angolana, nesse viés conservador. Este se pode avaliar por várias matérias, entrevistas e, sobretudo, pelas páginas e/ou suplementos a ela dedicados e onde quase sempre aparecem os poemas. Via de regra, tais páginas trazem imagens de mulheres brancas, receitas europeias e outras “dicas” para as donas de casa e para seu “sagrado” lar. Não há imagens de mulheres negras nem de seus corpos culturais.

Tanto Mensagem da CEI, quanto Jornal de Angola se tornam instrumentos, pois, da maior importância para que um novo modo de escrever a história se possa solidificar. Outros arquivos começam a fornecer outros dados para se formalizar a história dos sujeitos africanos que a então viviam, mesmo que fora de lugar e em seu exílio forçado em sua própria terra e/ou espacialidade simbólica.

Corpos poéticos femininos e a cadeia de sua encenação

O conjunto de textos trabalhados permitiu-me chegar a alguns recortes finais, já expostos nos ensaios referidos. Assim, de modo breve, retomo-os, indicando que as ocorrências apontadas não se apresentam em malhas diacrônicas, mas se sucedem em sincronias. Só a minha intenção didática justifica a cadeia expositiva.

O corpo poético que primeiro ganha densidade, no corpus literário desse modo formado, é o assimilado. Por ele, retorna o padrão da fala literária europeia, pelo qual a mulher se apresentava como um sujeito de dor e sofrimento. Maria Eugénia Lima:

Nasci mulher, nasci na dor
E para a dor nasci
Açoitaram meu corpo de inocente
E logo uma lágrima sentida
Deslizou, lentamente
Simbolizando a Vida!
(Jornal, n. 22, out./1955, p. 6)

Irene Gil:

No segredo das horas silenciosas
Ei-la que veio, a Doce irmã Alada!
Veio ainda uma vez coroar de rosas
Minha fronte cansada...

Coalhou lá fora o Silêncio... (Antologias, 1994, v. II, p. 110)

Percebe-se, soprada, a presença de Florbela Espanca, a “castelã da tristeza”. Os sonetos são uma recorrência modelar aos padrões ocidentais e a outra é sempre a negra, percebida a distância, em sua estereotipia, como nos tercetos do soneto “Negra bonita” de Maria Joana Couto:

Negra bonita, filha do desdém!
Vão-se queimando num ardor em fogo
Todos aqueles que te querem bem!

Ai linda negra, meu prazer em dor!
Tantos pecados no teu corpo em fogo!
Tantas virtudes, na tua alma em flor! (Jornal, 30/1/1954, p. 2)

Por falar em alma, há um longo poema de Marília Santos, dedicado “À minha irmã N. S.”, provavelmente Noémia de Sousa, e que aparece em Poetas em Moçambique. Nele, há uma tentativa solidária de cantar a outra, negra, cuja brancura da alma sobreleva. Precisa dizer mais? Negra, mas de alma branca:

Ó minha poética moçambicana
minha amiga de sangue negro
e alma branca.
Minha irmã!
(Antologias, 1994, v. II, p. 29)

Desse movimento de assimilação aos “formais e rendilhados cantos”, aqui repetindo Noémia, no poema não por acaso intitulado “Negra”, se passa para um processo de identificação com a terra, sendo o corpo feminino a sua metonímia. Alda Lara, no corpus, é o melhor exemplo do procedimento imagístico e seu poema “Presença” talvez a sua mais forte expressão:

E apesar de tudo
ainda sou a mesma!
[...]
– A dos coqueiros
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
(Antologias, 1994, v. I, p. 187-188)

Aqui, como já afirmei algumas vezes, emerge o corpo físico da terra, duplo daquele do sujeito lírico, que com ela se procura identificar. Surge, então, a terra romântica do cantador a que se refere Antonio Candido (1987, p. 140). Não se problematiza o local da cultura, o não-lugar histórico, mas a atitude é de ufanismo, ou segundo Candido ainda, de um “estado de euforia” pelo qual se camufla o exotismo, transformando-o em estado anímico (idem, p. 141).

De um modo ou de outro, a terra – que ainda não se pode confundir com o desejo da nação – pede passagem e finca pé no texto, em forma de palmeiras, acácias rubras, poentes cor de sangue, calemas, etc. O eu-lírico, em estado de exílio, anseia poder voltar e misturar seu corpo à natureza de sua terra:

Tenho sede...
sede dos crepúsculos africanos
todos os dias iguais,
e sempre belos
de tons quase irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras
das calemas traiçoeiras
das cheias alucinadas...
(Antologias, 1994, p. 186)

As reticências, a marcação dos versos, o tom apaixonado ainda nos fazem lembrar Florbela, mas o sujeito se sabe de um outro lugar e seu movimento não é apenas de imersão subjetiva, mas o de buscar, na natureza local, o elemento de consolidação de seu próprio eu. Nasce, daí, um movimento suplementar na direção do outro, o igual, e, em consequência, consolida-se a esperança e a certeza de um futuro pensado no coletivo ou no “sonho colectivo”, tal como analisado por Inocência Mata (2001, p. 110). Na mesma antologia aparece o poema “Rumo”:

É tempo, companheiro!
Caminhemos...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
Da Terra... (idem, p. 189)

É essa Terra, alegorizada pela maiúscula, que aparecerá martirizada, com o futuro barrado, quase diria, nos poemas de Alda Espírito Santo e nos de Noémia de Sousa. Ambas nela imergem de cabeça, buscando desesperadamente a nação por vir e soltando suas vozes em chama, a clamarem pela libertação. A “devastação” se apresenta em todo o seu dimensionamento trágico na fala poética de Alda e Noémia, em longos poemas de versos soltos que se desdobram, com frequência, em um ritmo frenético, conforme se dá em “Se me quiseres conhecer” de Noémia que aparece em Mensagem, ano XIV, n. 3, em agosto de 1962 e pelo qual o corpo-África devastado se projeta especularmente no eu-lírico feminino:

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir a vida
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura... (p. 47)

Esse poema de Noémia se faz uma espécie de ícone, sendo antologizado com frequência, até hoje. No caso do corpus, vê-se que reaparece em Poetas de Moçambique, 1962 (Antologias, 1994, v. II, p. 217). Manuel Ferreira não o seleciona. Um outro texto da poetisa que significa também um grito pela inclusão do homem negro e um gesto de denúncia do vazio histórico no qual ele está imerso é “Deixa passar o meu povo”. Ele aparece na antologia de Mário e Tenreiro, reaparece na da CEI de 62 e volta nos 50 poetas, assim criando uma cadeia repetitiva que atesta a sua importância no espaço da consolidação canônica. Ganha densidade, nos poemas de Noémia, um “novo processo de subjetividade” que ultrapassa o indivíduo, penetra no coletivo e, com isso, leva-nos a assistir a um “espetáculo da alteridade”, usando palavras de Homi Bhabha (1998, p. 180). Também gostaria de lembrar uma instigante análise de Isabel Allegro de Magalhães, que adverte: “perante a sociedade sem horizontes no retorno, o sujeito refugia-se na escrita, como horizonte de viagem por dentro de si, com a palavra como única possibilitação de acesso a um futuro” (2002, p. 317). Agora, sim, Noémia:

Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar
Minha mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do meu sangue e da mesma seiva amada de
                                                     [Moçambique
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças
[...]
Todos se vêm debruçar sobre meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio 
- “let my people go
oh let my people go!”(50 poetas, 1989, p. 356)

Essa “seiva amada” e o retrato do povo martirizado se deslocam, nos poemas de Alda Espírito Santo, de Moçambique para São Tomé. Também ela encena um desfile de seu povo, dando corpo, por sua vez, àquele novo processo de subjetividade, a que se refere Bhabha. Por isso, ela recria os seus “Angolares” também uma peça poética densamente antologizada. Na Mensagem, ano XV, n. 2, jun./1963, lá encontramos aquela

Canoa frágil, à beira da praia
[...]
canoa flutuante por sobre as procelas das águas
lá vai o barquinho da fome
Rostos duros de angolares
na luta com o gandú
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões (p. 19)

O mesmo texto retorna em Poetas de S. Tomé e Príncipe, também de 1963 (Antologias, 1994, v. I, p. 307-308) e em várias outras recolhas. O longo poema “Onde estão os homens caçados neste vento de loucura”, no qual ela reencena com raiva e dor o massacre de 1953, é igualmente uma peça de resistência e um libelo contra a devastação dos “barões assinalados” e a sua ação predatória nos lugares para onde o mar os levou:

Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário
as vidas queimadas,
erguem o coro insólito da justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus
— Que fizestes do meu povo?
— Que respondeis?
— Onde está o meu povo? (Antologias, 1994, v. I, p. 306)

Na seleção de Manuel Ferreira, o poema sofre cortes, o que é uma pena. De todo modo, Alda, em eco com Noémia, encena o povo, trazendo-o “em grande” para a cena poética, denunciando o massacre que existiu historicamente, mas fazendo dele metáfora e bandeira. Nesse momento, com as vozes em chama dessas duas mulheres, já não há hipótese de conformismo e, de certo modo, “sacralizam-se”, duplamente, voltando a ter o papel simbólico originário e passando a pertencer ao catálogo, ou seja, fazem-se vozes canônicas e rompem com a teia pela qual as mulheres se silenciavam. Tornam-se, parodiando Noémia, um “instrumento” do “sangue” de um povo “em turbilhão” que, assim convocado, não pode deixar de passar.

Arremates

E os livros dessas mulheres? De todas as mulheres africanas que concretizaram o sonho de editar suas obras, tatuando mais que a folha branca do papel disperso, como se deu com Lília da Fonseca, Ermelinda Xavier, Maria Manuela Margarido, Glória de Sant’Ana, etc.? Esse é um tema a demandar reflexões que vão além de um arremate conclusivo. Assim, fico só com as duas Aldas e com Noémia, pertenças, parece-me, já insofismáveis do cânone africano, embora Alda Lara, no processo, sofresse as exclusões já expostas.

Como se sabe, a angolana morre aos 32 anos. Suas obras editadas são, assim, póstumas. Já Alda Espírito Santo, em 1978, publica É nosso o solo sagrado da terra. Não há dados concretos, mas a leitura do plano pretextual parece indicar que a poetisa participou de forma direta da feitura de sua obra, embora eu não possa afirmar se houve, de sua parte, qualquer contribuição financeira. O livro cobre os anos anteriores à luta, o tempo da guerra e o da independência, sendo muito importante para que se compreenda o papel das mulheres, seja na luta, seja na reconstrução do país que ajudaram, pela palavra e muitas vezes pela ação, a libertar. O caso de Noémia é ainda mais sério. Sua obra Sangue negro foi escrita entre 1948 e 1951. Durante 50 anos, esta obra circulou em policópias que passavam de mão em mão, às vezes em reproduções muito precárias. Incrível é pensar que lemos Sangue negro por todo esse tempo, trabalhando-o em ensaios, livros, cursos etc., como se dá em “Silêncios rompidos”, por exemplo. Dissertações e teses foram escritas sobre uma obra não editada, o que me parece absolutamente surpreendente.

Finalmente, e para concluir: bordejar a margem da escrita feminina africana, no tempo em que a descolonização era um sonho sonhado e quando as guerras passaram a ser o caminho de sua realização, é buscar pactuar com vazios e silêncios. Rompê-los, com empenho e vontade, é fazer do silêncio uma forma de produção de sentidos (ORLANDI, 1997), pois qualquer fala ganha corpo a partir do silêncio. Este texto buscou redesenhar tal corpo “tatuado de feridas visíveis e invisíveis”, corpo que não se quis mais esconder, mas gritar a sua diferença e seu modo muito próprio de, encenando-se, enfrentar a política do silêncio, uma das marcas do catálogo sacralizante que se chama cânone e que, com garra e urgência, algumas vozes de mulher tentaram exitosamente rasurar.

NOTA

1 Originalmente publicado na Revista Scripta (Letras – PUC Minas),volume 08, p. 253-266.

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NASCENTES, Antenor. Dicionário ilustrado da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Bloch, 1972 (6 v.).
ORLANDI, Eni. Gestos de leitura: da História no discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002 (Memórias das Letras, 10) e Lis- boa: Imbondeiro, 2002.
SANTO, Alda Espírito. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978.
SOUSA, Noémia. Sangue negro. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, [2001].



i Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ) e Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, a docente graduou-se em Letras Neo-Latinas pela Universidade do Brasil (1959); concluiu o mestrado em Letras na Universidade Federal Fluminense (1978); o doutorado em Letras Vernáculas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988) e o pós-doutorado na Universidade de São Paulo (2006), igualmente na área de Letras e na subárea de Literaturas Africanas de Língua Oficial Portuguesa. É consultora ad-hoc de vários órgãos de fomento à pesquisa, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, bem como a CAPES e outros organismos. É pesquisadora 1A do CNPq. Embora aposentada, continua a atuar na Pós-Graduação em Letras da UFF. Foi-lhe outorgada, em 2011, a Cátedra Professor Carlos Lloyd Braga, na Universidade do Minho, em Braga. Pertence ao Conselho Editorial de várias revistas brasileiras e estrangeiras, como, por exemplo, a Revista Crítica de Ciências Sociais (Universidade de Coimbra); Veredas (Associação Internacional de Lusitanistas); Metamorfoses (UFRJ), etc, além de ser uma das editoras da revista Abril (UFF). É autora de alguns livros, como O espaço do desejo - Uma leitura de A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós" (EdUFF/EdUNB, 1989); Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX" (1995/2007); Novos pactos, outras ficções (2002), este também editado em Portugal pela Novo Imbondeiro no mesmo ano, além de ter organizado uma série de outros com pesquisadores da área, como A poesia e a vida (Lisboa, 2006) e A mulher em África (Lisboa, 2007), ambos com Inocência Mata; Bordejando a margem, com vários alunos de iniciação científica da UFF (Luanda, 2007); Lendo Angola, com Margarida Calafate Ribeiro (Porto, 2008); e De guerras e violências: palavra, corpo, imagem,  com Renata Flavia da Silva (EdUFF, 2011). A partir de Setembro de 2015 passou a fazer parte do Comissão Editorial da EdUFF ( Editora da Universidade Federal Fluminense).

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