A voz dos autores: entrevista com João Paulo Borges Coelho[1]

Vanessa Riambau Pinheiro[i]

                             Quem manda nas literaturas em língua portuguesa, na minha maneira de ver, é Portugal e Brasil. E hoje, Portugal e Brasil, por exemplo, não leem inglês. E não lendo inglês, não fazem uma coisa [...] que é ler todos os escritores que estão aqui à volta. Nem eles nos leem, nem nós os lemos.
(João Paulo Borges Coelho)

A entrevista que segue foi concedida pelo escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, em 13 de março de 2017, nas dependências da padaria Taverna Doce, em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto, que foi mantido. 

BORGES COELHO: Sua pesquisa é sobre o cânone moçambicano? Não tenho nenhum cânone a defender.

VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Nem a acusar, imagino. Gostaria inicialmente de perguntar-lhe se você acredita que o escritor tenha um papel social.

BC: Olha, em primeiro lugar, a minha primeira observação é que eu não sou um especialista em literatura, sou um prático. E à medida em que eu reflito sobre essas coisas é à medida em que há uma perspectiva epistemológica do que fazemos. E, portanto, eu reflito sobre o que eu faço enquanto autor e o significado da literatura em geral. Mas, dito isto, devo dizer que esta é uma reflexão peculiar e muito contraditória internamente e penso que deve ser assim. Isto é um preâmbulo que já me fez esquecer o sentido da sua pergunta. Reforce e controle, por favor.

VRP: Os escritores possuem papel social?

BC: Eu já recebi, mais de uma vez, a afirmação do Chinua Achebe, com a qual eu não concordo, que o escritor é um professor. Não acho que seja isso. Acho que existe uma relação com os leitores, mas primeiro de tudo a literatura é um negócio privado. Há a questão da recepção, dos teóricos, Bakhtin, mas eu acho que é um negócio privado. E essa questão impõe até com mais acuidade em África e talvez na América Latina, embora a América Latina em certos aspectos esteja mais perto da Europa do que da África. Neste sentido, tem uma literatura mais madura. A literatura em África é uma coisa muito recente e é algo ainda muito frágil. Tendo em conta os problemas de alfabetização, a realidade do livro, os traumas recentes, tudo isso, essa questão do professor ou do papel social na literatura parece importante, mas isso envolve muitos perigos, porque parte de um conceito da literatura que é moral e autoritário; portanto, ela teria poder para condicionar o comportamento e as perspectivas da sociedade. Eu pessoalmente não acho que a literatura tenha este papel. Acho que há outras estruturas e outros campos vocacionados a este papel social. Agora, é claro que a literatura molda, indiretamente, quem lê. Ou seja, há duas maneiras de se olhar para isso: se nós olharmos de fora, a literatura na sociedade tem, obviamente, um papel social. Mas não é um papel que deva ser atribuído a ela diretamente. Eu acho que a literatura faz bem em não assumir esta responsabilidade.

VRP: Eu gostaria de saber sua opinião sobre a função da FRELIMO nessa definição do papel do escritor na época da independência.

BC: Penso que, historicamente, há vários aspectos a considerar. Obviamente, a maneira mais segura de saber é perguntando à própria FRELIMO. Eu, como observador de fora, posso dizer que há duas fases, grosso modo; uma, em que como um movimento de libertação, em que tudo estava submetido, no sentido amplo e, portanto, havia uma perspectiva maximalista que incluía todas as forças e todas as atividades, tudo era motivo de disputar. E, neste sentido, o próprio movimento nacionalista contou com o apoio da literatura enquanto questionamento social do tempo colonial. Toda gente vai falar do Craveirinha, da Noémia, até do Albasini, mais atrás. Mas, no período colonial, na década de 60, a minha opinião é que existe uma desconfiança em relação às cidades, em relação ao espaço colonial. E tinha uma perspectiva dividida em relação a estes próprios intelectuais do interior, então eu penso que uma perspectiva até um bocado ingênua tentou a proteção da sua própria literatura como alternativa à literatura do espaço colonial e, obviamente, não podia dar grande resultado: obras de poesia que são limitadas na minha perspectiva. Eu aqui estou a englobar a literatura de uma forma geral, por poesia e tudo. Isso é um pouco rigoroso, mas facilita esse raciocínio, e, digamos, esta perspectiva era limitada sobretudo porque submetia a literatura ao campo da política no sentido direto. E a literatura só pode crescer se ela for soberana, esta é a minha perspectiva. Portanto, essa fase foi assim. E é uma fase [de] que se falou depois da Independência, no sentido que o partido de Estado controla a literatura. Até porque não havia espaço de publicação, as primeiras edições são do organismo estatal, controlado ideologicamente, ou através de um projeto de publicação no exterior, mas controlada à mesma internamente. Esta é uma fase. Digamos que, depois de 92, há um processo de abertura, há a [revista] Charrua, há até uma mudança de temas que não são mais aqueles temas épicos, aparece uma maior perspectiva na escolha dos temas, no tratamento dos temas, sobretudo, na poesia e depois na ficção. E a literatura passa a ser menos controlada, mas continua a ser vista, em perspectiva, como um instrumento. E isso, quer da parte do próprio Estado, que busca tirar proveito, ver uma certa perspectiva utilitária, quer da parte dos próprios autores, que em certa medida não se libertam da perspectiva da épica mental da literatura. A literatura é uma invenção ocidental! Pode parecer chocante para algumas pessoas, mas eu penso assim.  E é diferente, as pessoas falam na tradição oral, etc. Mas neste sentido estrito, de escrita, publicação, edição, é um conceito ocidental. E o que se passa é a apropriação deste conceito, o que não significa que os conceitos não sejam próprios. O problema é que estamos nessa fase difícil de olhar para a literatura não nesta perspectiva épica, ética e limitadora social, mas temos que olhar para a literatura de uma maneira nova, pós-nacionalista. E neste sentido [a discussão] está ainda muito indefinida. Por isso eu lhe diria, uma vez que o cânone é o tema, que não há cânone, somos demasiado frágeis sequer. Digamos, muito da literatura mais sólida e qualitativamente vem de trás. Tem um lastro até colonial. Alguma maneira Ungulani [Ba Ka Khosa], até a própria Paulina [Chiziane], eu, claramente.  Paulina, Mia e eu temos os mesmos anos de vida, portanto, viemos de outro contexto, e há que se olhar para este contexto de uma maneira específica, até com relação à língua. Portanto, são transições ainda um pouco desgovernadas. Mas isso tinha outros aspectos também: esta própria constituição da literatura atual, um dos problemas é a perspectiva social, a literatura como um estatuto social. É uma visão pequeno-burguesa da literatura, que é irritante, não é? E isto percebe-se nas sociedades, em que há uma acumulação – marxistas diriam - primitiva de capital. É uma luta muito acesa, é brutal até. Os valores de triunfar, de ser rico, são muito fortes. E, neste sentido, a literatura é sugada para dentro disso; é sugada em vez de ter um papel mais crítico, porque eu acho que a literatura - não sei se me desminto daquilo que disse há pouco – mas a literatura tem uma ética. No limite, é clássico dizer que a literatura maldita continua a ser literatura, mas acho que aqui a literatura tem uma ética que é estar ao lado dos fracos. Este é o meu posicionamento pessoal, claro. Este é o único compromisso que a literatura tem: ela não tem compromisso político, já passaram 40 anos, ela não deve nada ao nacionalismo. O nacionalismo também não lhe deve nada, mas ela não deve nada ao nacionalismo. Portanto, ela tem que ser autônoma e, muitas vezes, presa a esta crítica de superfície, ela se deixa embalar por esta dinâmica e não é crítica de verdade, é só crítica no panfleto. Ela tem que se afirmar mais, mas esta é uma questão que leva muito tempo e muita leitura.

VRP: Em Moçambique, em especial, a literatura carece dessa maior afirmação – pergunto – por dois motivos; primeiro, se a compararmos com a angolana, e depois houve todo um movimento nacionalista após a independência, afirmando que havia uma certa alienação cultural que precisaria ser revertida através da promoção da cultural autóctone. Isso se refletiu na literatura e como hoje reverbera?

BC: Eu não limito este conceito de alienação cultural, porque a obediência a ditames novos é alienação cultural também. E essa literatura que vem do tempo colonial é preciso dizer que é muito frágil. São meia dúzia de pessoas a escrever. Aliás, eu tenho dificuldade até com os conceitos de literatura moçambicana e literatura angolana, no sentido em que as definições que nos fornecem acabam por ser sempre políticas, exteriores à própria literatura. São formais, não são substância. Mas, de qualquer maneira, eu diria que a dificuldade da literatura no pós-independência vem, sobretudo, dessa fraqueza estrutural, dessa indisciplina, mas não tanto da alienação cultural, porque ela se desfez. Quem fazia já se foi embora, ou se não foi já o fazia como uma pessoa crítica em relação à época colonial. Houve é controle ideológico. E, além do mais, eu não vejo, longe disso, uma fronteira nítida entre uma tentativa de literatura moçambicana e uma literatura colonial. São campos que se interpenetram profundamente, tal como não há uma identidade moçambicana nessa altura e continua a não haver hoje, é um processo de construção. Portanto, o que isso poderia significar é que a literatura, para se desalienar, era uma literatura que se submetia a um movimento nacionalista, e realienava-se de outra maneira. Eu acho que muitos dos escritores, neste sentido, são mais alienados do que Rui Knopfli, por exemplo. E, portanto, eu tenho dificuldade de operar com essa questão da alienação.

VRP: Você mencionou o poeta Rui Knopfli. Ele teria sofrido por não estar inserido no conceito esperado de moçambicanidade, até por ter optado por viver em Portugal. Hoje já há um consenso em relação ao texto literário deste autor ou questões ideológicas ainda influenciam?

BC: Há menos resistência na superfície, mas acho que ainda há resistência. E o problema é, se nós olhamos para o Rui Knopfli e fazemos a obra dele depender de questões identitárias ou mesmo enquanto as opções políticas e mesmo estratégicas dele, ou se olhamos a obra dele segundo outros critérios. O problema é este: olhar a literatura como um adereço para uma interpretação política. E, depois, a questão da identidade, da literatura, da arte em geral, tudo é transformado em instrumento para alimentar a questão política. Então não estamos a falar de literatura, estamos a falar de outra coisa. Dessa visão utilitária da literatura, eu estou distante. E, neste sentido, acho Rui Knopfli interessantíssimo como produtor literário. Eu, no fundo, assumo uma identidade que é, de certa forma, híbrida; a minha língua é uma língua colonial, e é esta a minha língua, não quero outra; a língua não é um casaco que se veste, a língua é substância. E, neste sentido, grande parte da minha cultura é portuguesa, e não estou disposto a abdicar dela. Agora, as minhas preocupações – até literárias – estão aqui, portanto eu sou imune a essas questões da identidade (é um escritor moçambicano, português, estrangeiro?). Acho totalmente inércia essa discussão, totalmente acessória, não tenho o menor interesse em sair por uma porta ou por outra, não me diz respeito.

VRP: Você acredita que à medida em que estes fatores - como a necessidade de se definir uma literatura moçambicana como tal - forem perdendo o interesse, a literatura vai se consolidando?

BC: Sim, eu acho que nós vamos ainda durante um certo tempo assistir a esta necessidade de definir a literatura politicamente a partir do exterior, mas depois isso vai passar e, quando normalizar, vai dar lugar ao que a literatura é. Tem um compromisso, mas ao mesmo tempo é descomprometida. E, para a literatura emergir aqui, ela vai emergir como um depósito de questões individuais. O problema é o escritor  definir sua própria escrita individualmente, e não olhar para si como um inserido. Fala-se muito em movimentos e esquece-se um pouco das experiências. Felizmente começa-se a escrever mais sobre as experiências de vida, ou as experiências individuais. E procura-se sempre retratar de formas mais amplas, épicas de conjunto, isso é uma prova da insegurança da própria literatura, ela está à procura ainda de uma utilidade alternativa. E ela vai descobrir, mais cedo ou mais tarde, que ela não serve para nada. É como dizia Steiner, se não existisse a Monalisa, o mundo estaria igualzinho. Claro, isso se não considerarmos o valor de mercado dela. Mas se não existisse a penicilina, por exemplo, o mundo estaria de outra maneira. Portanto, a literatura, tal como a arte, não serve para nada. É isso que lhe dá essa liberdade. Acho que a liberdade da nossa literatura só vai surgir quando ela concluir isso: não servindo para nada, ela não está comprometida com nada, está comprometida com a experiência das pessoas. E o cânone vai surgir a posteriori, quando houver uma literatura que permita configurar o cânone. Porque, sendo um sucesso individual, ela acaba por contactar entre si. É neste sentido que eu vejo uma literatura maior: não só por critérios políticos. Romântica, neorrealista, de língua inglesa, moçambicana, que têm critérios diferentes dos livros individuais. E quando houver suficiente substância é possível, através do vosso trabalho, o qual eu prezo muito, construir interpretações como, por exemplo, a questão do cânone. Portanto, é um processo que, para mim, ainda vai levar o seu tempo. Pretender descrever a literatura moçambicana com algumas características ou a literatura angolana com algumas características é defini-la politicamente, é defini-la normalmente através dos temas, “literatura nacionalista”, etc. Mas na definição da literatura entram muito mais critérios, na minha perspectiva. Um deles que não é muito tratado, porque coloca muitos pontos de identificação e de embaraço, é a questão da língua. A questão da língua é fundamental. E há várias razões, desde razões socioeconômicas. Quem manda nas literaturas em língua portuguesa, na minha maneira de ver, é Portugal e Brasil. E hoje, Portugal e Brasil, por exemplo, não leem inglês. E não lendo inglês, não fazem uma coisa que minha ex-colega Fátima Mendonça fazia que é ler todos os escritores que estão aqui à volta. Nem eles nos leem, nem nós os lemos. E é uma pena, porque há pontos de contato muito importantes que vêm diretamente da realidade, nós não conhecemos os autores sul-africanos e vice-versa. Eu propus à minha editora traduzir uma antologia de jovens escritores da África Austral, todos abaixo dos 30 anos, com contos, uma seleção feita na África do Sul. A ideia de uma literatura africana são esta meia dúzia de autores que editam em Portugal, quase todos na Caminho. Querer construir um edifício a partir de dois ou três tijolos é muito complexo. Mas voltando à questão da língua, ela em consequência sofre este imbróglio, eu acho que quem trabalha nessas áreas sente que é um terreno perigoso e não entra muito nele. Nós temos aqui muitos jovens potenciais escritores, mas leram pouco e têm problema de atitude em relação à língua. Por exemplo, é clássico aquele zimbabwano que escrevia num inglês “deficiente”, e atirava-nos com ele na cara “este é o meu inglês”. Aqui nós temos o fenômeno que ainda é de alguma maneira parecido com o português do século XVIII. Na mesma altura, escrevia-se de maneiras diferentes. Havia muita variabilidade. E peço desculpas, mas no Brasil faz--me muita impressão na mesma frase tratarem o interlocutor por tu e por você. Eu aceito que haja uma forma qualquer, secreta, que me escapa ao entendimento. Mas a mim faz-me muita confusão. Infelizmente, nos tempos atuais, há muitos que dizem que é muito mais simples o inglês, que não há essas distinções e que isso é um sinal antigo, enfim, aquelas visões políticas, básicas ou ingênuas, que isso é uma herança da estratificação das classes. Seja o que for, a minha posição é que é preciso o escritor, quer através da leitura, quer através de opções conscientes, tenha o trabalho estético  e técnico da língua, qualquer que seja.  Eu não estou a qualificar, mas é preciso um domínio do instrumento. E aqui não existe. É preciso ler, é preciso haver gritos, antes das coisas poderem explodir e crescer. Se isso não acontece, as tentativas de fazer crescer a literatura a partir de fora, por exemplo, de editores que tratam critérios como raça para publicar, acho tudo isso um conjunto de lamentáveis equívocos que não dão em nada.

VRP: Você referiu que o mercado editorial e os estudos literários em Portugal e no Brasil de certa forma definem a literatura em Moçambique. Quais seriam, segundo sua opinião, outros fatores que influenciariam na leitura de determinados autores fora de Moçambique?

BC: Tal como é incipiente a literatura, o mercado editorial também é muito incipiente. Portanto, não temos bases. Há duas ou três livrarias em Maputo. E um único livro pode custar o que um moçambicano ganha numa semana ou num mês, portanto, ninguém compra livros assim.  O livro aqui é visto como uma mercadoria de luxo. Se for ver, na maioria das livrarias que existem, os autores vendidos são os de best-sellers. Portanto, é uma literatura superficial, autoajuda, que responde a quem tem relativo poder de compra que é a população expatriada, os estrangeiros de língua portuguesa, sobretudo. É pra essa gente. Eu nem posso julgar os livreiros, eles fazem o negócio deles, que não é nada fácil nessa situação de crise atual, sobreviver. Eles vão atrás daquilo que se pode vender. Portanto, tem que haver uma maneira do livro chegar mais facilmente. Além disso, as editoras de língua portuguesa não são “pessoas de bem”. As pessoas de bem estariam a fazer livros de bolso baratos. Eu, quando fiz 12 ou 13 anos, meu pai levou-me numa livraria, fez-me assinar e disse “sempre que precisares, pode vir buscar livros.” Mas não era um privilégio assim tão grande, era um privilégio, sem dúvida, mas o livro não era tão caro. E depois, o livro de bolso era exatamente para massificar. Hoje, o que é importante massificar é tratarmos o livro como produto de luxo. E nós, aqui em Moçambique, não temos política cultural. Pode-se falar que a minha atitude é crítica e drástica, mas não existe política cultural. E não existe política do livro. Porque não há controle do próprio Ministério para conceber uma política do livro. E nós vivemos nessa tal dinâmica brutal, colossal, que o triunfo não serve pra nada. E essa situação é revoltante, não sei até quando vai durar. Mas equivale ao próprio desprezo pelo ensino.  Não há política de ensino também. Há umas flores, umas tentativas de dar um discurso a uma coisa que é totalmente vazia. Então neste sentido, a literatura vai se ressentir sempre. Por exemplo, sempre que há uma iniciativa relacionada à poesia, permanece entre os estudantes do ensino superior e do secundário. Os estudantes é que têm de criar pequenas tertúlias ou grupos de leitura, mas são movimentos marginais, que os jovens mantêm por entusiasmo. E é revoltante ver essa situação porque o tempo está maduro para semear, mas quem manda não faz a menor ideia. Isso é revoltante, é repugnante. 

VRP: Queria que você falasse um pouco sobre sua experiência como escritor. Quais foram as suas influências?

BC: Olha, isso é muito difícil de dizer, a forma que eu encontrei que não é, imagino,  original, mas é que a prática da escrita tem que conciliar aquilo que configura um paradoxo, porque, ao mesmo tempo, ela tem que procurar uma frescura da inocência infantil, porque é a única forma, é o tal estranhamento, um olhar para as coisas. É uma prática culta ao mesmo tempo, ou seja, só uma grande quantidade de leituras permite-nos descobrir a nossa própria voz, porque no fundo o segredo está aí: descobrirmos a voz com que falamos. E nesse sentido, o ato da escrita é desligado, embora conhecendo a existência na maneira como se olha para as coisas, é desligado das influências. Seria muito frustrante escrever com a consciência de uma influência, isso significaria estar ali um fantasma ao lado. Eu acredito na independência e na soberania do ato da escrita. Então, as influências eu não saberia dizer, o que posso dizer são os autores que me entusiasmam, e são vários, e depende muito das fases em que se está. E porque também eu não leio com um plano ou com um projeto de leitura, e disso não abdico, eu leio como um leitor passivo, eu leio o que me acontece de ler, e portanto estou aberto a toda leitura. Agora estou pela primeira vez a reler um autor sistematicamente, mas por uma determinada finalidade que não tem a ver com a escrita, mas com o momento. Normalmente, nós como nunca temos livros aqui [em Moçambique], eu quando saio venho com malas cheias de livros, e é o que calha, nem sequer atuo com listas. Eu vou a determinadas livrarias, por exemplo em Lisboa, e vou vendo, vou procurando e depois entro sempre na fase final, naquela coisa do peso a mais ou do dinheiro a menos, e é assim que eu leio. Mas são fases diferentes, eu lembro por exemplo menos até dos livros, lembro muitas vezes daquilo que os livros me deram, lembro, por exemplo, [que] As Aventuras do Sr. Pickwick, do Charles Dickens, me ensinou a ironia e cumplicidade. Lembro, por exemplo, de como me ensinou a ironia do Jonatan Swift com o seu Preceitos para uso pessoal doméstico, nos meus quatorze anos, e são livros que vim ter um bocado por acaso. Lembro-me do deslumbramento com que descobri também a ironia do Eça de Queiroz, o domínio da língua, quer dizer, o contar uma coisa engraçada sem se prender na descrição, mas largando frases totalmente dominadas nas crônicas, nas cartas da Inglaterra ou vice-versa, nesses dois volumes até mais do que nos romances. Lembro-me, por exemplo, de O Processo e d'O Castelo do Kafka, com quatorze ou quinze anos, e, portanto, as influências são uns brilhos que estão no meio do escuro. Eu não consigo ser muito coerente a produzir um discurso acerca das influências.

VRP: De alguma forma você considera que conseguiu conciliar a sua profissão de historiador com a de escritor na sua narrativa?

BC: Não sei, eu sou um historiador frustrado, porque eu trabalho em história contemporânea e os arquivos estão todos fechados, apesar da lei que os manda abrir. É muito difícil trabalhar em história sem ter os documentos, e há um processo de fichamento atual, que funciona a partir de 2005, em outubro, e que não nos dá acesso, nós não temos acesso à documentação escrita por exemplo sobre a luta nacionalista. Eu trabalhei sobretudo na história dos conflitos. Então, sou um historiador frustrado nesse aspecto, em muita coisa que é fechada estar aberta em Lisboa, e aqui não se percebeu que a documentação em parte é a mesma; a documentação da FRELIMO está toda fechada, e só gente autorizada tem acesso a algumas coisas. Portanto, há ainda esta ideia antiga de produzir uma história nacionalista, uma versão única e nacionalista do passado, controlada. Mas mesmo aí não há critério, e a prova disto é que nunca se fez uma história de Moçambique em 40 anos; eu acho o sinal mais evidente que há um grande problema com a própria imagem, com o próprio corpo, como diriam os psicanalistas. Então isso vai resolver-se, entretanto não destruírem os arquivos, porque há uma elite formada que não quer deixar traços de muitas coisas. É um campo de atividade que me deu muito prazer, muito entusiasmo, mas que agora passa por outras formas de luta que já não são minhas, que é a de obrigar essa gente a abrir os arquivos, essa elite a abrir os arquivos. Para se poder trabalhar em história, porque de fato a imagem do passado ela não é metida numa jaula, ela reinventa-se e é feita de várias maneiras, a história no sentido acadêmico é só uma das maneiras de dar essa imagem e ela vai sempre surgindo. E por outro lado, em termos de identidade, o que faz o passado nacionalista intervir com relevância na questão da identidade é a sua discussão, não é a tentativa de congelar, e só o faz tornar desnecessário e inútil, portanto, há aqui um erro de visão que eu não sei se vai se resolver ou não, ou como se resolve, porque não acho muito produtivo dar murro em ponta de faca. E entretanto, eu não equaciono a história e a literatura como duas coisas complementares, porque não há uma verdade a dizer sobre o que é que seja; são duas práticas distintas. Eu não tenho nada a dizer, não tenho uma mensagem a repassar, longe disso. Eu tento viver o melhor possível com os meus dias, e esta é uma forma diferente de expressão e que me é necessária, nesse sentido não tenho uma educação a dar, nada disso.

VRP: Ontem Nataniel Ngomane disse que considera você o maior romancista da atualidade. Como você se vê nesse sistema literário moçambicano atualmente?

BC: Como eu disse, para ser coerente, eu não vejo um sistema literário, e também não vejo a literatura como um concurso. A maneira de medir é quando os critérios são claros e objetivos, por exemplo: nos cem metros planos sabemos que o Usain Bolt [ex-velocista jamaicano] é o melhor porque é o que corre mais rápido. Eu aqui não saberia dizer quais são os critérios; são critérios de venda? Não sou, porque as minhas vendas são modestas, relativamente a outros, imagino, não tenho ideia nem isso me interessa muito. Então, como eu digo, não saberia responder a isso porque a literatura não é uma competição, e se não é nas zonas onde ela precisa de mais atenção, veja no Nobel a confusão que dá quem leva o Nobel todos os anos.

VRP: Mas por que não se vê inserido no sistema literário?

BC: Porque não acho que exista um sistema literário.

VRP: Em Moçambique ou de forma geral?

BC: Em Moçambique não há, em Moçambique, decididamente. De forma geral, há sistemas, mas eu não sei como é que eles são definidos. Quer dizer, é possível dizer que há uma literatura norte-americana, ou uma literatura austríaca, é possível, mas é o tempo que permite construir um conjunto de critérios, porque dizer literatura norte-americana é uma definição enganadora. Não é uma definição política ou de fronteiras, há uma série de tradições, de influências mútuas, de escolas, de correntes, que dão substância a essa designação, não é o fato de terem o passaporte norte-americano que define essa literatura. A literatura austríaca é definida pelo fim do império Áustro-Húngaro, pela angústia do exílio, quer dizer, há uma série de critérios que permitem construir, e não é um passaporte. Nesse sentido, nós não temos tempo ainda, estamos a correr a frente do tempo, e se invertermos as coisas, estamos a uma definição meramente política. Se disser “eu considero literatura moçambicana aquela cujos autores são detentores do passaporte moçambicano”, pronto, pelo menos está definida à partida que o critério é aquele. Agora, que haja proximidade, não sei, pode dizer a temática moçambicana, mas isso também envolve outros, envolve, por exemplo, o Ascêncio de Freitas, que está em Portugal há muito tempo. Um certo realismo fantástico de importação da literatura, todos nós, se calhar, temos um bocado, uns mais outros não. Tratar das questões sociais e históricas dentro de Moçambique pode ser outro critério, mas sem discutirmos o critério tenho dificuldade. E depois, são poucos os exemplos que eu saberia definir as bases onde me inserir. Eu não sou membro da Associação dos Escritores Moçambicanos, não sou membro da Associação dos Historiadores Moçambicanos, mas considero-me um historiador. Eu não sou membro porque no dia em que a Associação dos Historiadores Moçambicanos definir como primeira prioridade pressionar o poder a abrir os arquivos, eu me inscrevo na Associação. Assim como na literatura: eu não percebo qual é a diferença entre estar dentro ou fora, eu tenho muita dificuldade em inscrever-me em movimentos, o ID da identidade tenho porque é uma obrigação legal. Porque essa coisa de se inscrever em jaulas ou em campos faz com que aconteça muita confusão. Também não é uma posição de recusa, estou aberto a discutirmos o que é que significam as coisas, mas não vejo qual é o objetivo em levantar bandeiras que não tem significado.

VRP: Moçambique não é uma bandeira que você levante, mas aparece com muita força na sua literatura.

BC: Sim, sem dúvida, é a minha terra. São as coisas que me cercam, eu não vou escrever uma literatura impactada sobre um drama amoroso passado em Lisboa.

VRP: Shakespeare escreveu suas histórias sobre a Itália.

BC: Exatamente. Olha, agora estou no Japão até por acaso, e tenho é claro o direito de ir onde eu quiser, mas o fato é que nesse aspecto, também não escolho os temas nesse sentido, eles escolhem-se entre si e vão se construindo, e são relacionados com essa terra nesse sentido, e eu não nego que para mim é muito importante acima de tudo ser lido aqui. Porque eu acho que esta situação atual, aquilo que a literatura pode dar, e voltamos já ao papel social, eu acho que é muito importante que dê aquilo, eu não saberia trabalhar com esse objetivo. Mas acho que é muito importante haver aqui coisas para ler, nesta terra, sobre esta terra e com essas pessoas que somos nós todos; nesse sentido há um sentimento que aparece, de proximidade, pertença com base na proximidade, não com base em contexto que pra mim são tidos como patriotismo. A mim, o patriotismo é a humanidade inteira, é sermos decentes uns com os outros, e temos que ser particularmente solidários com os fracos e com os pobres. Essa é uma definição que eu acho que é muito difícil trazermos para além disto no momento fragmentário em que vivemos. Nós temos um termo especial, uma preocupação especial em Lisboa, em tentarmos ser decentes, e ser decentes é termos a preocupação de estar do lado dos mais fracos, e ter uma justa distância, um justo desprezo por aqueles que são mais fortes e que usam meios inaceitáveis para se tornarem cada vez mais fortes. E isso existe aqui, como existe em outros lugares, ou seja, eu não estou ao lado de um poderoso moçambicano contra o fraco sul-africano, estou do lado do fraco sul-africano. O conceito de pátria é o último argumento dos patifes, quando não tem mais argumentos falam em pátria. Eu tenho grandes desconfianças, e acho que no momento atual, com esta crise muito severa, é fácil surgir o discurso da pátria, do nacionalismo, eu acho que precisamos é de mais cosmopolitismo, para termos critérios e sermos rigorosos a avaliar quem manda em nós. Agora, é claro que existe essa pertença, existe até porque nunca houve tantos pobres como existem agora entre nós, vem este discurso aqui por cima, mas as pessoas cada vez sofrem mais, e a literatura tem esse dever ético, se quiser, que não se traduz nenhuma obrigação quer quanto aos temas, quer quanto tudo, mas tem esse dever ético, talvez nem a literatura, talvez mais quem escreve que tem esse dever ético, acho eu.

NOTA

1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.


[i] Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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