Por um feminismo Afro-latino-americano

Lélia Gonzalez

 

Neste ano de 1988, Brasil, o país com a maior população negra das Américas, comemora o centenário da lei que estabeleceu o fim da escravização neste país. As celebrações se estendem por todo território nacional, promovidas por inúmeras instituições de caráter público e privado, que festejam os “cem anos da abolição”.

Porém, para o Movimento Negro, o momento é muito mais de reflexão do que de celebração. Reflexão porque o texto da lei de 13 de maio de 1888 (conhecida como Lei Áurea), simplesmente declarou como abolida a escravização, revogando todas as disposições contrarias e... nada mais. Para nós, mulheres negras e homens negros, nossa luta pela liberdade começou muito antes desse ato de formalidade jurídica e se estende até hoje.

Nosso empenho, portanto, se dá no sentido de que a sociedade brasileira ao refletir sobre a situação do seguimento negro que dela faz parte (daí a importância de ocupar todos os espaços possíveis para que isso suceda) possa voltar-se sobre si mesma e reconhecer nas suas contradições internas as profundas desigualdades raciais que a caracterizam. Neste sentido, as outras sociedades que também compõem essa região, neste continente chamado América Latina, quase não diferem da sociedade brasileira.

E este trabalho, como reflexão de uma das contradições internas do feminismo latino-americano, pretende ser, com suas evidentes limitações, uma modesta contribuição para o seu avanço (afinal, sou feminista). Ao evidenciar a ênfase direcionada à dimensão racial (quando se trata da percepção e do entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão. Por outro lado, baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A essa mulheres-exceção eu as chamo de irmãs.

Quando falo de experiência, quero dizer um processo de aprendizado difícil na busca de minha identidade como mulher negra dentro de uma sociedade que me oprime e me discrimina justamente por isso. Mas uma questão de ordem ético-política prevalece imediatamente. Não posso falar na primeira pessoa do singular de algo dolorosamente comum a milhões de mulheres que vivem na região; refiro-me às ameríndias e amefricanas1, subordinadas a uma latinidade que legitima sua inferioridade.

Feminismo e Racismo

É inegável que o feminismo como teoria e prática vem desempenhando um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao apresentar novas questões, não somente estimulou a formação de grupos e redes, também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o encaminhamento das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou todo um debate público em que surgiu a tematização de questões totalmente novas – sexualidade, violência, direitos reprodutivos, etc. – que se revelaram articulados às relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaços por parte de homossexuais de ambos os sexos, discriminados pela sua orientação sexual2. O extremismo estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o mundo não é mais o mesmo.

Mas, apesar das suas contribuições fundamentais para a discussão da discriminação pela orientação sexual, o mesmo não ocorreu diante de outro tipo de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial. Aqui, se nos reportarmos ao feminismo norte-americano, a relação foi inversa; ele foi consequência de importante contribuições do movimento negro: “A Luta dos anos 1960 [...] sem a Irmandade Negra, não haveria  irmandade das Mulheres (sisterhood); sem Black Power, não haveria existido poder gay e orgulho gay”.3. A feminista Leslie Cagan afirma: “O fato de que o movimento dos direitos civis tenha quebrado os propósitos sobre a liberdade e a igualdade na América, nos abriu espaço para questionar a realidade da nossa liberdade como mulheres”.

Mas o que geralmente encontramos ao ler os textos e a prática feminista, são referências formais que denotam uma espécie de esquecimento da questão racial. Vamos dar um exemplo de definição do feminismo: ela se baseia na “resistência das mulheres em aceitar papéis, situações sociais, econômicas, políticas, ideológicas e características psicológicas que tenham como fundamento a existência de uma hierarquia entre homens e mulheres, a partir da qual a mulher é discriminada”.4 Bastaria substituir os termos homens e mulheres por brancos e negros (ou índios), respectivamente, para ter uma excelente definição de racismo.

Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos, se encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista.

Vale a pena retomar aqui duas categorias do pensamento lacaniano que ajudam nossa reflexão. Intimamente articuladas, as categorias de infans e de sujeito suposto saber nos levam à questão da alienação. A primeira designa a aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, a medida em que é falado pelos outros. O conceito de infans é constituído a partir de uma análise da formação psíquica da criança que, quando falada por adultos na terceira pessoa, é, consequentemente, excluída, ignorada, ausente apesar da sua presença. Esse discurso é então reproduzido e ela fala de si mesma em terceira pessoa (até o momento em que aprende a trocar os pronomes pessoais). Do mesmo modo, nós mulheres e não-brancas, somos convocadas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor um lugar inferior dentro de sua hierarquia (sustentado por nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria história. É desnecessário dizer que, com todas essas características, estamos nos referindo ao sistema patriarcal-racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo mesmo não pode enfatizar a dimensão racial. Se assim fosse, seria contraditório aceitar e reproduzir a infantilização desse sistema; e isso é alienação.

A categoria de sujeito suposto saber se refere à identificações imaginárias com determinadas figuras, às quais é atribuído um conhecimento que elas não possuem (mãe, pai, psicanalista, professor, etc.). E aqui nos reportamos à análise de um Frantz Fanon e de um Alberto Memmi, que descrevem a psicologia do colonizado frente ao colonizador. Em nossa opinião, a categoria de sujeito suposto saber enriquece ainda mais a compreensão dos mecanismos psíquicos inconscientes que são explicados na superioridade que o colonizado atribui ao colonizador. Nesse sentido, o eurocentrismo e seu efeito neocolonialista  mencionados acima, também são formas alienadas de uma teoria e de uma prática que são percebidas como libertadoras.

Por tudo isso, o feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade da maior importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Lidar, por exemplo, com a divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a correspondente em nível racial, é cair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco. Falar de opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas. Concordamos plenamente com Jenny Bourne, quando afirma: “Eu vejo o antirracismo como algo que não está fora do Movimento de Mulheres senão como algo intrínseco aos melhores princípios feministas”.

Mas esse olhar que não vê a dimensão racial, essa análise e essa prática que a “esquecem”, não são características que se fazem evidentes apenas no feminismo latino-americano. Como veremos em seguida, a questão racial na região tem sido ocultada no interior das suas sociedades hierárquicas.

A questão racial na América Latina

Cabe aqui um mínimo de reflexão histórica para poder ter uma ideia deste processo na região. Principalmente nos países de colonização ibérica.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que a formação histórica de Espanha e Portugal se fez a partir da luta de muitos séculos contra os mouros, que invadiram a Península Ibérica no ano de 711. Além disso, a guerra entre mouros e cristãos (ainda lembrada em nossas festas populares) não teve na dimensão religiosa a sua única força propulsora. Constantemente silenciada, a dimensão racial desempenhou um importante papel ideológico nas lutas da Reconquista. De fato, os mouros invasores eram predominantemente negros. Além disso, as duas últimas dinastias do seu império – a dos almorávidas e a dos Almóadas – o provinham de África Ocidental.5 Com base no exposto, queremos dizer que os espanhóis e os portugueses adquiriram uma sólida experiência em relação à maneira de articular as relações raciais.

Em segundo lugar, as sociedades ibéricas foram estruturadas de maneira altamente hierárquica, com muitas camadas sociais diferentes e complementares. A força da hierarquia era tal que se explicitava até nas formas nominais de tratamento, transformadas em lei pelo rei de Portugal e de Espanha em 1597. Desnecessário dizer que, neste tipo de estrutura, onde tudo e todos têm um lugar determinado, não há espaço para a igualdade, principalmente para grupos étnicos como os mouros e os judeus, sujeitos a um violento controle social e político.6

Herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual), bem como das técnicas legais e administrativas das metrópoles ibéricas, as sociedades latino-americanas não podiam deixar de se caracterizarem como hierárquicas. Racialmente estratificadas, apresentam um tipo de contínuo de cor que se manifesta num verdadeiro arco-íris classificatório (no Brasil, por exemplo, existem mais de cem denominações para designar a cor das pessoas). Neste contexto, a segregação de mestiços, indígenas e negros se torna desnecessária, porque as hierarquias garantem a superioridade dos brancos como grupo dominante.

Desse modo, a afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos aparatos ideológicos tradicionais, reproduz e perpetua a crença de que as classificações e valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca prova a sua eficácia e os efeitos da violenta desintegração e fragmentação da identidade étnica produzida por ele; o desejo de se tornar branco (“limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a consequente negação da própria raça, da própria cultura.

Não são poucos os países latino-americanos que, desde a sua independência, aboliram o uso de indicadores raciais nos seus censos e em outros documentos. Alguns deles reabilitaram o indígena como símbolo místico da resistência contra a agressão colonial e neocolonial, apesar de, ao mesmo tempo, manterem a subordinação da população indígena. Em relação aos negros, são abundantes os estudos sobre a sua condição durante o regime escravista. Mas historiadores e sociólogos silenciam sua situação desde a abolição da escravização até o presente, estabelecendo uma prática que torna invisível este segmento social. O argumento utilizado por alguns cientistas sociais é que a ausência da variável racial nas suas análises se deve ao fato de que os negros foram absorvidos pela população em condições de relativa igualdade com outros grupos raciais.7

Essa postura tem muito mais a ver com estudos de língua espanhola, uma vez que o Brasil se coloca quase como exceção dentro desse quadro; sua literatura científica sobre o negro na sociedade atual é bastante significativa.

Pelo exposto, não é difícil concluir a existência de grandes obstáculos para o estudo e encaminhamento das relações raciais na América Latina, com base em suas configurações regionais e variações internas, em comparação com outras sociedades multirraciais, fora do continente. Na verdade, esse silêncio ruidoso sobre as contradições raciais se fundamenta, nos tempos modernos, num dos mitos mais eficazes de dominação ideológica: o da democracia racial.

Na sequência da suposta igualdade de todos perante a lei, ele afirma a existência de uma grande harmonia racial... desde que estejam sob o escudo do grupo branco dominante, o que revela sua articulação com a ideologia do branqueamento. Em nossa opinião, quem melhor sintetizou esse tipo de dominação racial foi um humorista brasileiro ao afirmar: “no Brasil não existe racismo porque o negro conhece o seu lugar”. (Millor Fernandes). Vale a pena notar que mesmo as esquerdas absorveram a tese da “democracia racial”, na medida em que suas análises sobre nossa realidade social nunca conseguiram vislumbrar qualquer coisa mais além das contradições de classe.

Metodologicamente mecanicistas (por eurocêntricas), elas acabaram se tornando cúmplices de uma dominação que pretendiam combater. No Brasil, este tipo de perspectiva começou a sofrer uma reformulação com o retorno dos exilados que haviam combatido a ditadura militar no início dos anos 1980. Isso porque muitos deles (considerados brancos no Brasil) foram objeto de discriminação racial no exterior.

Apesar disso, em um país do continente encontramos a grande e única exceção no que diz respeito a uma ação concreta no sentido de abolir as desigualdades raciais, étnicas e culturais. Trata-se de um país geograficamente pequeno, mas gigantesco na busca do encontro consigo mesmo: a Nicarágua. Em setembro de 1987, a Assembleia Nacional aprovou e promulgou o Estatuto de Autonomia das Regiões da Costa Atlântica da Nicarágua. Nelas há uma população de trezentos mil habitantes, divididos em seis grupos étnicos caracterizados por diferenças linguísticas: 182 mil mestiços, 75 mil misquitos, 26 mil creoles (negros), 9 mil sumus, 1750 garífunas (negros) e 850 ramas. Composto de seis títulos e cinco artigos, o Estatuto de Autonomia implica em um novo reordenamento político, econômico, social e cultural que responde às reivindicações de participação das comunidades costeiras. Além de garantir a eleição das autoridades locais e regionais, o Estatuto assegura a participação da comunidade na definição dos projetos que beneficiem a região e reconhece o direito de propriedade sobre as terras comuns. Por outro lado, não só garante a igualdade absoluta dos grupos étnicos mas também reconhece seus direitos religiosos e linguísticos, repudiando todos os tipos de discriminação. Um dos seus grandes efeitos foi o repatriamento de 19 mil indígenas que deixaram o país. Coroação de um longo processo em que se acumularam erros e acertos, o Estatuto de Autonomia é uma das grandes conquistas de um povo que luta “para construir uma nação multiétnica, pluricultural e multilíngue, baseada na democracia, no pluralismo, no anti-imperialismo e na eliminação da exploração social e opressão em todas as suas formas”.

É importante insistir que dentro da estrutura das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está inscrita e muito bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não-brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O caráter duplo da sua condição biológica – racial e/ou sexual – as torna as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque este sistema transforma diferenças em desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas são, na maioria, parte do proletariado afro-latino-americano.

Por um feminismo afro-latino-americano

É Virginia Vargas V. quem nos diz:

A presença das mulheres no cenário social tem sido um fato incontestável nos últimos anos, buscando novas soluções frente aos problemas  impostos por uma ordem social, política e econômica que historicamente as marginalizou. Nessa presença, a crise econômica, política, social e cultural [...] tem sido um elemento desencadeador que acelera processos que vinham se formando. De fato, se por um lado a crise acentuou a evidência do esgotamento de um modelo de desenvolvimento do capitalismo dependente, por outro expôs como seus efeitos são recebidos diferentemente em amplos setores sociais, de acordo com as contradições específicas nas quais se encontram imersos, incentivando assim o surgimento de novos campos de conflito e novos atores sociais. Assim, no terreno das relações sociais, o efeito da crise foi nos dar uma visão muito mais complexa e heterogênea da dinâmica social, econômica e política. É nessa complexidade que se localizam o surgimento e o reconhecimento de novos movimentos sociais entre eles o de mulheres, que avançaram desde as suas contradições específicas a um profundo questionamento da lógica estrutural da sociedade e potencialmente contêm uma visão alternativa da sociedade.8

Ao caracterizar distintas modalidades de participação, ela aponta para três aspectos dentro do movimento, diferenciados por uma expressão: popular, político-partidária e feminista. E é justamente na popular que vamos encontrar maior participação de mulheres afro-americanas e ameríndias que, preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, procuram se organizar coletivamente; por outro lado, sua presença sobretudo no mercado informal de trabalho as remete a novas demandas. Dada sua posição social, que se articula com a discriminação racial e sexual, são elas que sofrem mais brutalmente os efeitos da crise. Se se pensa no tipo de modelo econômico adotado e no tipo de modernização que dele decorre – conservador e excludente, devido aos seus efeitos de concentração de renda e de benefícios sociais –, não é difícil concluir a situação dessas mulheres, como no caso  brasileiro, em tempos de crise.9

Nessa perspectiva, não podemos ignorar o importante papel dos movimentos étnicos como movimentos sociais. Por um lado, o movimento indígena,  cada vez mais mais forte na América do Sul (Bolívia, Brasil, Peru, Colômbia, Equador) e Central (Guatemala, Panamá e Nicarágua, como já vimos), não apenas propõe novas discussões sobre as estruturas sociais tradicionais, mas busca a reconstrução da sua identidade ameríndia e o resgate da sua própria história. Por outro lado o movimento negro – e vamos falar do caso brasileiro esclarecendo a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder – desmascara as estruturas de dominação de uma sociedade e de um estado que consideram "natural" o fato de que quatro quintos da forca de trabalho negra sejam mantidos presos em uma espécie de cinturão socioeconômico que lhes “oferece e oportunidade” de trabalho manual e não qualificado.  Desnecessário dizer que, para o mesmo trabalho exercido por brancos, os rendimentos são sempre menores para trabalhadores negros de qualquer categoria profissional (especialmente aquelas que exigem qualificações mais altas). Enquanto isso, a apropriação lucrativa da produção cultural afro-brasileira (transfigurada em brasileira, nacional, etc.) também é vista como “natural”.

Cabe aqui um dado importante de nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias –, a conscientização da opressão ocorre, antes de tudo, por causa da raça. Exploração de classe e a discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a um grupo étnico subordinado. A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou idosos. E foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular pela libertação. A mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa presença nos movimentos étnicos é bastante visível; lá nós amefricanas e ameríndias temos participação ativa e em muitos casos somos protagonistas.

Mas é exatamente essa participação que nos leva à consciência da discriminação sexual. Nossos parceiros do movimento reproduzem as práticas sexistas do patriarcado dominante e tentam nos excluir da esfera de decisão do movimento. E é justamente por esse motivo que buscamos o movimento de mulheres, a teoria e a prática feministas, acreditando aí encontrar ali uma solidariedade tão cara à questão racial: a irmandade. Contudo, o que realmente encontramos são as práticas de exclusão e dominação racistas que tratamos na primeira sessão deste trabalho. Nos somos invisíveis nos três aspectos do movimento de mulheres; mesmo naquele em que a nossa presença é maior, somos descoloridas ou desracializadas e colocadas na categoria popular (os poucos textos que incluem a dimensão racial só confirmam a regra geral). Um exemplo ilustrativo: duas famílias pobres – uma negra e outra branca – cuja renda mensal é de 180 dólares (que corresponde a três salários mínimos atualmente no Brasil); a desigualdade se faz evidente pelo fato de que a taxa de atividade da família negra é maior que a da branca.10 Isso explica a nossa escassa presença nas outras dois aspectos.

Pelo exposto, não é difícil compreender que nossa alternativa, em termos de movimento de mulheres, foi nos organizarmos como grupos étnicos. E, na medida em que lutamos em duas frentes, estamos contribuindo para o avanço tanto dos movimentos étnicos e do movimento de mulheres (vice-versa, evidentemente). No Brasil, já em 1975, com a ocasião do encontro histórico das latinas que marcaria o início do movimento de mulheres no Rio de Janeiro, as mulheres amefricanas se fizeram presentes e distribuíram um manifesto que evidenciava a exploração econômico-racial sexual e o consequente tratamento “degradante, sujo e sem respeito” de que somos objeto. Semovimento negro desse país: Linha de Ação Feminina do Instituto de Investigações Afro-peruanas e Grupo de Mulheres do Movimento Negro Francisco Congo. Denunciando sua situação de discriminadas entre os discriminados, elas afirmam: “fomos moldadas como uma imagem perfeita em tudo o que se refere a atividades domésticas, artísticas e servis; fomos consideradas 'especialistas em sexo'. É dessa maneira que se foi alimentando o preconceito de que a mulher negra apenas atende a essas necessidades".  

Vale ressaltar que os doze anos de existência dos dois documentos nada significam frente a quase cinco séculos de exploração que ambos denunciam. Além disso, observa-se que a situação das amefricanas nos dois países é praticamente a mesma,sob todos os pontos de vista. Um ditado "popular" brasileiro sintetiza essa situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Atribuir às mulheres amefricanas (pardas e mulatas) tais papéis é abolir sua humanidade, e seus corpos são vistos como corpos animalizados: de certa forma, são os “burros de carga” do sexo (dos quais as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a superexploração socioeconômica se  alia à super exploração sexual das mulheres amefricanas.

Nos dois grupos de mulheres africanas do Peru se confirma uma prática que também é comum a nós: é a partir do movimento negro que nos organizamos, e não do movimento de mulheres. No caso da dissolução de qualquer grupo, a tendência é continuar a militância dentro do movimento negro, onde, apesar dos pesares, a nossa rebelião e espírito crítico ocorrem num clima de maior familiaridade histórica e cultural. Já no movimento de mulheres, essas nossas manifestações muitas vezes foram caracterizadas como antifeministas e até como “racistas às avessas” (o que pressupõe um “racismo às direitas”, ou seja, legítimo); daí nossos desencontros e ressentimentos. De qualquer forma, os grupos de mulheres amefricanas de mulheres se organizaram em todo o país, especialmente nos anos 1980. Também Realizamos nossas reuniões regionais, e neste ano teremos o Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras. Enquanto isso nossas irmãs ameríndias também estão organizadas na União das Nações Indígenas, a expressão máxima do movimento indígena no nosso país.

Neste processo, é importante ressaltar que as relações dentro do movimento de mulheres não são apenas compostas de discordâncias e ressentimentos com as latinas. Já nos anos 1970, algumas s se aproximaram de nós e nos ajudaram e aprenderam conosco em uma troca eficaz de experiências, consistente no seu igualitarismo. O entendimento e a solidariedade se ampliaram na década de 1980, graças às próprias modificações ideológicas e de conduta dentro do movimento de mulheres: um novo feminismo foi delineado nos nossos horizontes, aumentando nossas esperanças pela expansão de suas perspectivas. A criação de novas redes como o Taller de Mulheres das Américas (que prioriza a luta contra o racismo e o patriarcalismo numa perspectiva anti-imperialista) e a Dawn/Mudar, são exemplos de uma nova maneira de olhar feminista, brilhante e iluminada por ser inclusiva, por estar aberta à participação de mulheres étnica e culturalmente diferentes. E Nairóbi foi o marco desta mudança, deste aprofundamento, deste encontro do feminismo consigo mesmo.

Prova disso foram as experiências muito fortes que tivemos o privilégio de compartilhar. A primeira em novembro de 1987, no II Encontro del Taller de Mujeres de las Américas na cidade do Panamá, onde as análises e discussões acabaram por derrubar barreiras – no reconhecimento do racismo pelas feministas – e preconceitos antifeministas por parte das ameríndias e amefricanas dos setores populares. A segunda foi no mês seguinte, em La Paz, no Encuentro Regional de Dawn/Mudar, com participação das mulheres mais representativas do feminismo latino-americano, tanto por sua produção teórica como por sua prática efetiva. E uma só presença amefricana discutiu ao longo de todo o encontro sobre as contradições já apontadas neste trabalho. Foi realmente uma experiência extraordinária para mim, diante dos testemunhos francos e honestos por parte das latinas ali presentes, frente à questão racial. Saí de lá revigorada, confiante de que uma nova era estava se abrindo para todas nós, mulheres da região. Mais do que nunca, meu feminismo foi fortalecido. E o título deste trabalho foi inspirado nessa experiência. É por isso que eu o dedico a Neuma, Leo, Carmen, Virginia, Irma (teu cartão de natal me fez chorar), Tais, Margarita, Socorro, Magdalena, Stella, Rocío, Gloria e as ameríndias Lucila e Marta.

Muita sorte, mulheres!

(In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino, n. 1, 2011. Disponível em   https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf.          Acesso em 03/03/2021. Texto conferido e revisado de acordo com a versão impressa, 2020).

 Notas

1. Lélia Gonzalez, "Racismo e sexismo na cultura brasileira".
2. Virgínia Vargas, Feminismo e movimiento social de mujeres.
3. David Edgar, "Reagen's Bidden Agenda".
4. Judith Astelarra, El Femininsmo como perspectiva y como prática política.
5. Wayne B. Chandler, "The Moor: Light of Europe's Dark Age".
6. Roberto da Matta, Relativizando: uma introdução à antropologia.
7. George R. Andrews, The Afro-Argentines of Buenos Aires: 1800-1900.
8.  Virginia Vargas, op. cit.
9. Lucia E. Oliveira, Rosa M. Porcaro e Teresa C. N. Araújo, "Efeitos da crise no mercado de trabalho urbano e a reprodução das desigualdades raciais".
10. Ibid.