Minestra, Apfelkuchen e Mandioca: 
kizomba na formação do brasileiro em Legbas, Exus e Jararacumbah Blues

Pedro Henrique Souza da Silva*

 

Pois bem, em busca de uma definição do que de fato seria o “povo brasileiro”, procura-se uma origem – em certa medida mítica – para a nação. Os índios, habitantes nativos da terra, foram eleitos os primeiros brasileiros. E logo que os portugueses aqui se instalaram, chegaram os africanos trazidos à força de seus locais de origem, no outro lado do oceano. Esse tripé étnico serviu de base para um ideal de cruzamentos inter-raciais com vistas à construção da “raça brasileira” por parte da ciência e literatura do século XIX e princípios do século XX. Ao romantismo se deve a construção de um pacífico imaginário sobre a fundação do Brasil. Ao positivismo, que, apesar de seus descalabros não foi totalmente extirpado do imaginário brasileiro, caberia legitimar esse ideário, repleto de preconceitos e equívocos científicos, proveniente de uma elite que enxergava no mulato a “verdadeira cara” do povo.

Trocando em miúdos, lançando mão de uma metáfora popular, o brasileiro seria originário de uma mistura homogênea e pacífica do “café” (o negro) com o “leite” (o branco), que juntos se transformaram num terceiro elemento. Este “café- com-leite” na concepção do “mulatismo”, aponta, de forma silenciosa e perversa, para o apagamento de uma determinada raiz do Brasil no processo de miscigenação, inclusive como política pública, para o branqueamento da nação. A este pensamento se juntaram autores como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, entre outros.

É nesse lugar de tensão, a kizomba demonstrada pelas relações interétnicas, que se encontra a obra do escritor José Endoença Martins.1 Na contramão da cordialidade e da democracia racial, o romance Legbas, Exus e Jararacumbah Blues (2012) trata o fenômeno como problema e destaca as tensões sempre presentes

nas relações entre os grupos étnicos, bem como os processos de apagamento aos quais a cultura afro-brasileira ainda está sujeita. A obra destaca Exu como possível mediador deste choque entre culturas. Desta mediação – que é um dos poderes e atributos deste orixá –, depende o respeito à cultura negra, bem como uma nova alternativa para a sociedade multiétnica em que vivemos.

A narrativa retoma os primeiros anos de Blumenau, ou melhor, Jararacumbah. Logo nas primeiras páginas do livro, somos instigados a buscar esses começos, quando Benedita – figuração da tradição oral africana e bisavó centenária de Bertília, personagem arquetípica presente em outras obras de Endoença – chama a menina de apenas dez anos em seu quarto para dizer:

– Ouve bem, minha filha. Presta atenção, minha bisneta, muita atenção! [...]

– Esta é uma história para se passar adiante – minha bisa continuou, solene, com serenidade. – Uma história de dor, bastante dor. (MARTINS, 2012, p. 14).

 

Com a evolução da narrativa, o leitor é apresentado a Enia-edá (ser humano), o primeiro africano a chegar na terra da Oktoberfest. Com isso, é possível delinear qual era a história a que se referia Benedita. Nesse espaço ficcional, o drama de Enia-edá se mistura aos da alemã Eileen e de Iyawó-aya – índia da tribo xokleng, grupo indígena que habitava as terras onde hoje é o estado de Santa Catarina. Ao fugir da fazenda do seu senhor, o africano se perde na mata de Jararacumbah gravemente ferido. Sem esperanças, ele pede a Exu que o salve, sendo então encontrado por um índio e levado até aldeia dos xokleng, onde ficou sob os cuidados de Iyawó-aya. Enia-edá apaixona-se pela índia e desse relacionamento surge Benedita. No entanto, num ataque dos homens da fazenda, Iyawó-aya é morta. O africano passa a dividir seu tempo entre a educação da filha, lhe ensinado os segredos do culto a Exu, seu orixá de devoção, e as rondas de vigilância às terras do “Fundador” (como era conhecido o senhor de escravos da região). Numa dessas rondas, ele conhece Eilleen, alemã culta que passava os tempos se dedicando à leitura e ao piano. Por sua vez, desse outro relacionamento nasce Farrique, mais tarde o poeta louco que contará à pequena Bertília o segredo sobre suas origens.

O livro de José Endoença Martins encena a trajetória de um escravo em busca da liberdade, e este relato adquire um sentido metonímico ao se expandir rumo à da história do negro no Brasil. Retomando o mito fundacional das três etnias consideradas os pilares para a formação de nossa sociedade, o romance questiona se tal mistura tenha ocorrido de forma pacífica, sem dor. Ao mulato “café-com-leite”, contrapõe um outro ser, fruto da mescla de “macarrão com feijão”:

O corpo dele é feijão que exige macarrão para uma fome da mulher que se doa. Francesca se prepara para esta gula que avança sobre ela com ansiedade e solavancos, que ela se esforça para amaciar e suavizar, aprendendo os movimentos do corpo negro que cobre o seu. Como na minestra, ela não permite que o macarrão se desvaneça na presença do feijão na panela e no prato. (MARTINS, 2012, p. 57).

O texto retoma a representação da miscigenação, contudo vê-se que o autor enxerga o fenômeno numa perspectiva heterogênea que não apaga a diversidade. Assim como na minestra, sopa ítalo-brasileira comum na região sul do país, há, no Brasil, a presença de negros e brancos, porém a convivência entre eles não se dá de forma branda e amigável como faz crer o mito da democracia racial. Entre esses encontros e desencontros étnicos e raciais está a figura de Exu, ditando o andar dos acontecimentos na narrativa, como afirma a crítica Ines Senna Shaw:

Me deparo com o entrelaçar de estórias das vidas de personagens-pessoas ligadas umas às outras pela herança do culto de Exu, relacionamentos, memórias e experiências individuais, coletivas, culturais e espirituais, tanto presentes como passadas. Ao mesmo tempo, as primeiras frases deste romance pressagiam um gênero duplo que pode se definir como uma fusão de sociolinguística e história ficcionalizada, ou uma ficção histórica sociolinguística, dependendo da perspectiva de análise e interpretação. (Martins, 2012, p. 190).

 

Assim Exu, como mediador, é o único tradutor possível para a kizomba que mistura – de maneira tensa – minestra, apfelkuchen2 e mandioca na possibilidade de constituição de uma outra nação.

 

Referência

MARTINS, José Endoença. Legbas, Exus e Jararacumbah Blues. Blumenau: Nova Letra, 2012.

1 Autor de várias publicações entre ficção, poesia, teatro e ensaio. Doutor em Literatura Americana, com a tese A Politics of Conversion: from Nihilism to Love in Toni Morrison's Fiction. Leciona Literatura Anglo-americana na Universidade Regional de Blumenau (FURB), É editor da Revista de Divulgação Cultural, desta universidade.

 

2 Apfelkuchen. Palavra alemã que designa torta de maçã.

** Pedro Henrique Souza da Silva é graduando da Faculdade de Letras da UFMG.

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