Estela sem Deus

(excertos)

Jeferson Tenório

 

Este livro é uma obsessão. Uma profecia inventada. Uma espécie de vida imaginada a se cumprir. Aos dois anos de idade minha mãe me deu um livro chamado “decifrando o futuro”. Talvez ela não soubesse, mas ali, ela haveria de ordenar meu destino, me condenando aos livros e à tarefa de ficcionalizar a vida. Maldição intelectual.

Estela está neste livro porque precisava existir. Na verdade, Estela sempre existiu. Antes mesmo de ter escrito o meu primeiro romance O Beijo na Parede, ela estava lá. Eu apenas apurei os ouvidos e descobri sua voz.

(Estela sem Deus, Nota do autor, p. 9)

 

 I. A proteção do abandono

1.

Até os meus 13 anos, eu só tinha ido ao cemitério uma vez, e foi na ocasião em que a vó Delfina parou de respirar enquanto estava sentada na frente de casa, olhando o movimento da rua. Lembro que, naquele dia, eu conheci meus outros parentes mais afastados e todos estavam muito tristes. Mas, pouco antes de morrer a vó Delfina me ensinou algo importante sobre a perda. E isso ocorreu certa vez, quando eu e o Augusto brincávamos no pátio e vimos um filhote de passarinho cair do ninho e se espatifar na nossa frente. Dois pingos de sangue coloriram a terra. O ovo havia se partido ao meio e dentro dele estava um filhotinho frágil e trêmulo agonizava.

Ficamos olhando sem saber o que fazer. Então, o Augusto pegou um graveto, mexeu na casca do ovo e eu disse: não faz isso, Augusto. Mas meu irmão não me ouviu e continuou mexendo no passarinho como se a vida fosse um brinquedo. Então eu entrei em casa chamando a nossa avó. E hoje penso que a vó Delfina era mesmo uma pessoa muito delicada, porque os lugares em que ela estava sempre me apaziguavam, mesmo se um dia estivéssemos no meio de uma tempestade com trovões medonhos e estrondosos, ou numa guerra com bombas e feridos, seria sempre a vó Delfina a emprestar sua paz para as coisas.

Eu disse: vó, tem um passarinho morrendo lá no pátio e o Augusto está mexendo nele com um graveto, acho que ele está matando o bichinho. A vó Delfina levantou com certa dificuldade pedindo para que segurasse seu braço, fomos até o pátio. Quando chegamos, o Augusto estava apenas olhando o ovo partido. Disse que não tinha feito nada.

Ficamos nos três olhando aquele pequeno desaparecimento. Então perguntei: vó o que acontece durante a morte.

Minha vó era muito pensativa, e devo dizer que foi nesse dia que eu achei que ela fosse filósofa:

Não há “durante” quando se morre, Estela. Há somente um estar ou não estar mais na vida.

A vó Delfina disse aquilo com tanta serenidade que chegou a me doer. Tive vontade de chorar porque a simplicidade da morte me assustava e, talvez, percebendo minha tristeza, ela decidiu: vamos enterrá-lo. Eu concordei. Mas meu irmão achou uma grande bobagem e disse que preferia a tristeza dele com outras coisas.

A vó Delfina não deu importância para ele. Eu também não.

Estela, vá enterrá-lo, ela repetiu.

Mas eu, sozinha indaguei.

Sim, é assim que se lida com a morte, ela disse.

Olhei para a vó Delfina com certo receio, mas, mesmo assim, lhe obedeci. Peguei uma pazinha de plástico, dessas com que a gente costuma brincar na praia, e comecei a cavar. Depois peguei o filhotinho morto com todo cuidado e o coloquei no buraco. Cobri-o com terra.

Agora vamos rezar, falou a vó Delfina. Vamos rezar e pedir para que esse passarinho vire um santo.

Por que virar um santo, perguntei.

Porque os santos são seres que já se conheceram a morte, mas que gostaram tanto na vida que ainda permanecem entre nós.

Achei estranho, mas concordei. As filósofas são assim: dizem palavras que vão fazer sentido depois de terem feito certas voltas dentro da gente. A vó Delfina teve tanto cuidado com aquele funeral que depois até cheguei a pensar que a morte fosse uma espécie de ternura. À noite, não dormi muito bem porque fiquei me lembrando do passarinho embaixo da terra, sendo devorado por formigas e vermes. Pensar na morte me aprofundava, mas o medo me trazia de volta à superfície. E nessas horas eu achava que a natureza era violenta e injusta. Mas a vó Delfina dizia justamente o contrário, que era preciso pedir perdão à natureza, mesmo se não fôssemos culpadas; tínhamos sempre de pedir perdão aos bichos porque nós comemos, perdão ás árvores por derrubá-las, perdão ao mar por entrarmos nele.
                                                                                                                                                                                   

(Estela sem Deus, 2018, p. 15-17)

   *** 

2.

Certa vez, cheguei a pensar que meu irmão também fosse filósofo. Nesse dia, o pai dele havia morrido. Minha mãe recebeu uma ligação, depois sentou na sala em silêncio e o Augusto perguntou, o que foi mãe. E sem responder de imediato, ela começou a chorar devagar, como se estivesse economizando a tristeza. Foi então que percebemos que algo importante e grave estava por vir.

Em determinado momento, minha mãe virou-se para o Augusto e disse, sem muitos rodeios, que o pai dele tinha morrido. Meu irmão não disse nada. Nenhum de nós disse nada. E também não fazíamos muita ideia do que vinha pela frente. Logo a seguir, meu irmão se levantou, foi até a janela e ficou olhando para fora. Por algum motivo, achei que os filósofos agiam assim quando eram informados sobre a morte de alguém. Augusto não chorou naquele dia.

Quando meu pai desapareceu, eu também não chorei.

Minha mãe dizia que ele não merecia um pingo das minhas lágrimas porque um dia eu iria crescer e ser alguém, e que jamais precisaríamos dele ou coisa alguma na vida.

Mas hoje tenho consciência de que minha mãe só disse aquilo porque na época não fazia a mínima ideia do que nos esperava. Nós nunca sabíamos o que nos esperava. A gente teve de se acostumar com a vida vindo assim, a galope.

Minha mãe era empregada doméstica, mas tinha parado de trabalhar há algumas semanas pois contraiu uma doença nas mãos. Um dia, o médico olhou para as mãos dela e ficou preocupado. Falou que aquilo era causado pelos produtos que ela usava para limpar as casas. Alertou que dali em diante ela deveria usar luvas, mas minha mãe não contou nada disso aos patrões, pois ela tinha certeza de que achariam que toda aquela história era um tipo de capricho e não gastariam dinheiro com isso. As mãos de minha mãe eram negras, mas estavam cobertas com uma crosta de pele morta que a deixavam esbranquiçadas.

A gente estudava pela manhã, e à tarde ela nos levava para as casas que quase sempre ficavam na zona sul da cidade. Íamos porque ela dizia que tinha medo que o Augusto virasse aviãozinho do tráfico, e eu, uma prostituta, mas a gente sabia que na verdade ela nos levava mesmo para ajudá-la na limpeza. Não sei dizer se ela nos levava também para nos ensinar algo sobre a vida; só sei que no início, eu confesso, achava uma grande chatice. No fim das contas, percebi que eu estava errada em pensar daquela forma. No fundo, eu até gostava porque me habituava àqueles espaços, me imaginava morando naqueles apartamentos enormes, dormindo naqueles quartos grandes. Em algumas dessas casas havia piscina e tudo. Mas, antes de entrarmos, nossa mãe nos advertia: vocês não mexam em nada que não é de vocês porque, se fizerem isso, eu boto os dois na Febem. E nós não mexíamos em nada porque morríamos de medo de irmos para a Febem. Nossa mãe tinha um grande poder de convencimento sobre nós, principalmente quando o argumento era a vara de marmelo, a cinta, ou nesses casos, a Febem.

Admito que eu estava impressionada com o meu irmão, que ainda não tinha chorado a morte do pai, ao contrário da nossa mãe, que estava com lágrimas nos olhos. Porém, ela também não deixava de me impressionar porque a tristeza não a impedia de fazer as coisas: ela limpava a casa, fazia a comida, dava comida ao nosso cão. Desconfiei de que aquilo que minha mãe fazia, nunca parar a vida por causa do pranto, era uma espécie de milagre. Nesse dia, descobri também que o pai do meu irmão tinha outra família. Foi quando comecei a tomar a consciência das coisas, porque eu estava me tornando uma adolescente e já me preocupava com a vida. Eu estava me tornando uma moça, como dizia minha tia Odete, e então passei a entender certas coisas. Entendi por que o Fernando permanecia apenas um ou dois por semana em casa. Minha mãe dizia que ele viajava muito e que era uma pessoa ocupada. E nós acreditávamos em tudo, pois ela tinha consciência de que as crianças são fáceis de enrolar.

No cemitério, foi bom eu e o Augusto irmos juntos, porque um encorajava o outro quando tínhamos medo dos mortos. Nós olhávamos todas aquelas lápides e achávamos algumas esquisitas e engraçadas. Como aquelas estátuas mutiladas, ou as com nariz quebrado. Por vezes, esquecíamos por que estávamos ali. No entanto, esquecer a morte pode ser algo grave, porque o cemitério também existe para nos lembrar de que um dia nós estaremos ali embaixo da terra, junto com as minhocas, as raízes e os vermes. E às vezes ainda pensava naquele filhote de passarinho sendo devorado por outros bichos. Então, quando lembrava essas coisas, tirava qualquer possibilidade de sorrir. Além disso, eu não queria que a alegria estragasse o enterro do Fernando, pois meu irmão precisava compreender como se deve proceder no enterro de um pai.

As pessoas iam chegando e se postavam ao redor do caixão. Outras ficavam apenas alguns minutos ali, como se estivessem conversando com o morto. Então, chegou a vez de o Augusto e eu nos aproximássemos do defunto. Vi minha mãe chorar mais um pouco, mas agora o pranto já era mais contido. E essa era outra faceta da minha mãe: administrar a tristeza. E talvez a felicidade fosse só isso: saber administrar a tristeza. Eu tentei chorar, me esforcei, mas não consegui. Se eu já tivesse conhecido a Melissa naquele tempo, ela teria me dito que chorar não faz bem para quem já se dói.

Vimos que a outra família do pai do meu irmão havia chegado. Senti que o clima poderia pesar. Entrou outra mulher que parecia mais velha que minha mãe. Tinha os olhos tristes e cansados, estava acompanhada de duas crianças e um adolescente magro, alto e feio. Não avançaram. Nossa mãe colocou o braço em volta da gente, fazendo uma espécie de proteção, e depois disse, meus filhos, despeçam-se do pai de vocês. Mas eu pensei: Fernando não é meu pai. Além de não faze a mínima questão de que ele fosse, nunca nos demos muito bem, mas não importava. Rancores não cabem num enterro. O Augusto não sabia como se fazia para despedir de um pai morto, nem eu, porque meu pai não havia morrido, apenas desapareceu - no fundo, era quase a mesma coisa. Acho que nem os filósofos sabem se despedir.

(Estela sem Deus, 2018, p. 19-22).

***

Melissa disse que eu tinha que tomar dois comprimidos de uma vez e outros dois eu tinha que colocar na minha vagina o mais fundo que eu pudesse. Eu falei que nunca tinha visto alguém tomar comprimido pela vagina. Ela me olhou e disse que eu podia confiar nela. Que já tinha experiência nisso. Depois, me explicou que eu poderia sangrar e sentir cólica, mas que eu não me assustasse, que era assim mesmo. Eu não queria que fosse assim.

Melissa, você acha que meu filho é um poema que não deu certo, perguntei.

Esqueça isso, Estela. Deus não nos escreveu. Não somos literatura.

                                                                               (Estela sem Deus, 2018, p. 195).

 

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