África difícil

 

Poderia apontar a minha experiência africana mais como uma aventura pessoal, o que ela realmente é, levando-se em conta a dimensão de alguns de seus aspectos. Na tentativa de estabelecer intimidade maior, na minha convivência de dois anos com o ganense, não precisei fazer-me negro entre negros, conforme pretendia alguém, para melhor compreender a alma do africano. Por motivos óbvios, não me seria difícil passar por um nativo, mas havia outros, sem qualquer relação com a cor e sim com o meu modo de ser e de ver as coisas, sendo como sou homem de outro mundo, que obstacularam-me a intimidade na medida do desejado.

Mas convivi realmente com o ganense, sentindo os seus problemas, que até certo ponto são problemas de outros africanos e também nossos, conhecendo as suas aspirações e angústias, participando do seu dia a dia, testemunhando os seus hábitos e costumes. Tudo isso, no entanto, como criatura de outro mundo, embora esse outro mundo se diga civilizado também pelo africano. Não estava, por isso mesmo, em ambiente totalmente estranho, nem poderia ser inteiramente impermeável às suas tradições e modos de vida.

Já se afirmou, com acerto, termos mais condutos com o mundo africano do que com qualquer um outro, apontando-se sobrevivências, familiaridades, problemas e reivindicações comuns. Foi, valendo-me desses fatos, que busquei intimidade maior, alcançando apenas comunicabilidade em que prevaleceu, como elemento aproximativo, não a minha cor nem a minha procedência, repito, mas o meu empenho em melhor compreender e julgar os fenômenos da nova África, em cujo panorama Gana desponta como o de mais amplas perspectivas desenvolvimentistas.

(África difícil, p. 14)

* * *

Domingo - A Universidade de Gana, vista assim à noite, parece suntuosa cidade abandonada, com alguns de seus edifícios fantasmagoricamente iluminados. Estive num deles esta noite, de onde acabo de voltar e onde jantei, na qualidade de convidado especial do professor O. A. Esta foi a segunda vez que ali compareci nessa qualidade, a primeira há mais ou menos um ano, também por gentileza sua para com o Embaixador do Brasil, a ele apresentado pelo leitor brasileiro Vivaldo Costa Lima. Naquela oportunidade, como nesta de agora, o ilustre professor ganense, reafirmando destemida oposição ao regime de Osagyefo, como é chamado Nkrumah, exclamou patético depois de ousadas e candentes críticas:

– Pobre destino o de Gana.

A impressão que me ficou, ao ouvir novamente as suas críticas e ao reexaminar a sua atitude, foi de que, faça o que fizer Nkrumah, a opinião de homens como o professor será sempre a mesma, jamais se modificará. Parece haver certo ressentimento, da parte da elite intelectual, para com Osagyefo, talvez por ele os ter ignorado, ou por considerá-las incapazes da colaboração de que necessitava, ao lançar as bases de seu regime, e necessita agora para a sua grande obra administrativa e política. Pensando melhor, embora seja o professor representante típico dessa elite, de formação europeia e alimentada por princípios e escrúpulos que não podem ser levados em conta por um dirigente africano, diferencia-se um pouco dos demais, pois alguns dos motivos que o levam a esta oposição sem tréguas, melhor examinados, parecem procedentes. Contudo, muito do que o leva a lamentar Gana, não deveria ser objeto de críticas num país africano, pois tudo aqui é diferente, muito diferente – e tem que ser mais ainda diferente. Pareço ouvir, no silêncio e solidão de Tesano, a réplica do denodado professor:

– Tudo está muito bem, mas depende da direção que seja tomada.

* * *

Quando demos entrada no refeitório do "Akuafo-Hall", os estudantes que o superlotavam ergueram-se a um só tempo. Houve um murmúrio geral, voltando todos um olhar curioso para o Embaixador negro do país branco. O cortejo dos professores, do qual eu fazia parte como convidado especial, dirigiu-se lentamente para a high-table, enquanto eu relembrava pergunta que me fora feita há pouco mais de ano, quando ali estivera pela primeira vez. Após o jantar e depois da palestra no "Salão dos Mestres", fui levado ao pátio, sendo apresentado a alguns estudantes. Um deles, Kwesi Enu Ansah, que veio a ser meu professor de inglês e terminou como meu melhor informante sobre a vida e as coisas africanas, formulou·me pergunta que Vivaldo Costa Lima, servindo de intérprete, vacilou em traduzir:

– Não há discriminação racial no Brasil?

A presença do Embaixador negro não lhe parecera talvez prova da inexistência da discriminação racial e se assim pensou tinha razão. Nem a presença do Embaixador negro nem a mistura de brancos e pretos, na guarnição do "Custódio de Melo", que dissera ele haver visitado, quando da passagem do navio brasileiro pelo porto de Tema. Esperou minha resposta como se a sorte de alguma coisa que lhe fosse muito cara dependesse do que lhe dissesse eu. Em condições diferentes, sem a responsabilidade de que estava e continuo investido, seria fácil dar uma resposta. Dissesse o que dissesse, na qualidade de simples cidadão, representaria a opinião de um homem comum, entre setenta e sete milhões de brasileiros.

– Não precisa responder – fizera, diante do meu franzir de sobrolho.

E não voltou mais ao assunto. Eu, porém, quisera lhe pintar o quadro exato, sem tirar nem acrescentar, revelando-lhe a verdadeira fisionomia de meu país, nesse particular. Não seria dizendo que no Brasil todos têm a sua oportunidade que eu lhe provaria qualquer coisa. O meu intuito, também, não seria provar coisa alguma, mas apenas usar de sinceridade, fugindo de exibir-me como exemplo. Pois foi a sua pergunta que, enquanto nos dirigíamos para a high-table, veio-me à memória. A pergunta de um ausente. Encontra-se Ansah em Paris, fazendo jus a uma bolsa de estudos concedida pela UNESCO. Deverá regressar à Gana dentro de dois anos. Será, sem dúvida, um dos futuros dirigentes de seu país, pelo preparo a que se submete, pelo fervor com que discute os problemas e as necessidades africanas, pela paixão com que encara o futuro dos povos negros.

19, fevereiro - Continuam as decepções. Mais um que me falha, precisamente aquele em quem eu mais confiava. Não desejo, porém, ocupar-me aqui do assunto. O meu propósito é apenas registrar que não passa de drama o que todos consideram conquista: ser Embaixador. Da mesma forma que afastei de cogitação, nestas notas, quaisquer dos problemas da Embaixada, repito não desejar ocupar-me das decepções que tenho sofrido, de parte daqueles que, talvez por ser eu o Embaixador, procuram criar toda espécie de obstáculos em meu caminho, dificultando ainda mais o desempenho de funções que já são difíceis por natureza. O período, porém, que prometi a mim mesmo permanecer no posto eu o cumprirei – haja o que houver. Sei que não conto com quem quer que seja, no Brasil, que no Itamarati não tenho cobertura, que o Presidente da República nem se lembra de suas Missões em África, que ninguém nos atribui importância. Diante desse lamentável panorama, por que teimar em permanecer?

* * *

Felizmente, nem tudo é motivo de amargura. Recebo carta do Brasil, dando notícia dos estudos de meu filho Roberto. Foi um conforto, nesta manhã depressiva. Que Deus o ajude, e, por outro lado, que lhe tire da cabeça a ideia de ingressar na carreira diplomática. Sei o que sofrerá, por ser negro...

(África difícil, p. 36-40)

* * *

Considero o informe do Reverendo G. K. Nelson, sobre a comunidade brasileira de Acra, documento de maior importância, o primeiro produzido por um africano sobre uma comunidade fundada por escravos repatriados do Brasil. Ei-lo, em tradução de Gasparino Damata, que durante ano e meio funcionou como adido de Imprensa da. Embaixada do Brasil em Gana, prestando relevantes serviços:

"Em Acra, capital de Gana, existe uma comunidade bastante respeitável, formada por diversas famílias originárias do Brasil. Segundo os historiadores, essa primeira leva de emigrantes brasileiros chegou aqui por volta de 1836, mas primeiro essa gente estabeleceu-se na Nigéria. Lá muitos se casaram com nigerianos, razão por que na Nigéria ainda hoje há famílias com nomes bem brasileiros. Por exemplo, os De Souza, os Peregrinos, os Da Costa. O chefe desta comunidade atendia pelo nome Mahama Sokoto, nome nigeriano, ou possivelmente nome brasileiro pronunciado e escrito à maneira da terra.”

“Esses brasileiros falavam o português, mas entendiam e falavam o iorubá e o haussa, idiomas da Nigéria, e em Acra ficaram conhecidos por "Tá-bom", expressão que usavam amiudadamente. E por "Tá-bom", corruptela de "Está bom", são conhecidos até hoje.”

“Segundo contam os mais velhos, os brasileiros ficaram de tal maneira encantados com a acolhida que tiveram em Acra, pela hospitalidade a eles dispensada pelos ganenses, que decidiram não mais voltar à Nigéria, Por sua vez, o povo de Acra achou que os ”Tá-bom" eram progressistas, de boa índole, trabalhadores e donos, até certo ponto, de cultura própria, e tudo fizeram para retê-los na capital. Por exemplo, algumas casas que os brasileiros construíram em Acra ainda se acham de pé, perfeitas ou em ótimo estado de conservação, sendo que algumas delas, até recentemente, serviam de residências (palácios) de alguns chefes tribais de Acra. Eles foram, na verdade, os nossos primeiros grandes arquitetos do passado, e foram também excelentes alfaiates. Até hoje, em Acra, são tradicionalmente respeitados como oficiais de corte e suas mulheres como excelentes costureiras.”

“Os brasileiros eram pessoas de inteira confiança e por essa razão os filhos da terra lhes confiaram grandes pedaços de terreno cultiváveis. Neles fizeram hortas e plantaram manga, côco-da-Bahia, grande variedade de feijão e mandioca, que aqui passou a chamar-se cassava. E mais tarde, em sinal de reconhecimento por sua lealdade e dedicação, os grandes chefes tribais de Acra resolveram elevar um deles ao posto de Akuashong Tse, capitão encarregado de sete companhias no território Ga. Naquela ocasião, tanto o título como o posto só eram dados a pessoas que o mereciam por que eram importantes.”

(África difícil, p. 45-46)

* * *

A Missão Especial seguiu viagem a 29 de abril de 1961, permanecendo em África até 29 de maio do mesmo ano, visitando Serra Leoa, Gana, Toga, Daomé, Nigéria, Camerun, Costa do Marfim, Guiné e Senegal. Nesse ínterim, fez o Presidente Jânio Quadros a indicação de meu nome para primeiro Embaixador brasileiro em Gana, indicação que foi objeto do maior sensacionalismo. Deu-se na manhã em que o Chefe do Governo concedia a sua primeira entrevista coletiva no Palácio' do Planalto, dirigindo-se ele a mim, ao fim das declarações, sorrindo com manifesta satisfação:

– Então, senhor Embaixador? Quero ação agressiva em seu posto.

Começou, então, o meu suplício, ou melhor dizendo, o meu drama. Tenho, ainda agora, presente ao espírito, as críticas e os reparos feitos à indicação do meu nome. Algumas delas amarguraram-me, porque inspiradas em preconceito racial. Recordo, como, na solidão de um apartamento em Brasília, procurei preparar-me o melhor possível. Trabalhei sem esmorecimento, fazendo uso de vasta bibliografia. Tive à minha disposição documentos e relatórios das mais variadas origens.

(África difícil, p. 51)

* * *

Sem data - Poucas noites livres, com o sem número de jantares diplomáticos. Assim mesmo aproveitei-as para algumas leituras, estando entre estas lendas tradicionais do oeste africano. Todas elas recolhidas de velhos narradores, veículo vivo das tradições e da história africana propriamente dita. Infelizmente, muito resta ainda a recolher, estando em sua maioria condenadas ao desaparecimento total, com a morte dos griots.

(África difícil, p. 79)

* * *

13, maio - Os últimos conflitos raciais ocorridos nos Estados Unidos estão comprometendo todo o trabalho realizado pelos diplomatas norte-americanos em África. As ocorrências registradas em Alabama vêm provocando incontido sentimento de revolta entre os africanos. Os governos africanos, como não podia deixar de ser, acompanham com vivo interesse o desenvolvimento das ocorrências nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que permitem pronunciamentos os mais hostis àquele país e aos seus diplomatas.

(África difícil, p.92)

 

Trechos retirados de África difícil: missão condenada (diário). Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1965.