Agonia

Meu pai, de um dia para outro, tornou-se a figura mais antipática do meu mundo, porque o via sem ânimo, sem um gesto de protesto diante de uma injustiça que sofrera. E D. Júlia, estranhando tanto quanto eu a sua atitude, fazia-lhe perguntas e mais perguntas, alarmada naturalmente com a situação a que nos vimos jogados. Ele, aniquilado, não parecia ter nenhuma iniciativa – ou não queria ter. Suas palavras eram mais as de um resignado. Reconheci nisso, como reconheceria minha mãe e todos os nossos possíveis parentes, um sinal de fraqueza.

- E afinal, qual foi a causa de tudo isso? – perguntara um daqueles nossos parentes.

Meu pai teria lhe gritado um palavrão, tenho certeza, se naquele momento não estivéssemos presentes eu e minha mãe.

(...)

Parecem vir de longe, os passos miúdos que ressoam do outro lado, no corredor em silêncio. Fico a esperar, escutando. Sem fazer ruído, as duas figuras irrompem no quarto e é Teresa quem fala:

- Lá está o nosso doente, doutor.

Se esse homem viesse em minha terra já teria sido surrado e de certo que posto fora de circulação. Sujeito ruim, em que não se deve ter confiança, e que não tem peias para abusar da boa fé de minha mulher. Com suas invencionices conseguiu prostar-me neste quarto sufocante sem direito a sair e nem de olhar o céu e a paisagem. Esse seu sorriso me deixa tão irritado, que não tenho outra alternativa senão voltar-lhe o rosto. Ele se aproxima, seus dedos nojentos tocam em mim, tateiam o meu pulso. Pousam em minhas fontes. Murmura para Teresa:

- Está febril, Teresinha.

Como me dói vê-lo pronunciar o nome de minha mulher com essa familiaridade. Teresinha. Amigos da infância, que estudaram juntos e hoje...hoje... Oh, não devo pensar semelhante coisa de minha mulher. E por que não? Branca. De certo que não se sente satisfeita e, ter casado com um pelado como eu, ainda mais de cor. Mulato, irremediavelmente mulato. Coisa ignominiosa essa de mim para com Teresa.

(...)

Meu pai queria deixar encoberto, num esforço, o motivo de sua demissão. Fora demitido por ser mulato e pelo fato do novo chefe não admitir que um homem de cor seja alguém em algum lugar. Foi esse o maior golpe sofrido por meu pai. Mas dele nunca se ouviu uma só reclamação e fugia até de falar do emprego perdido. D Júlia, não se conformando com aquilo, queria por força uma explicação. E ele, quando viu que não podia mesmo continuar guardando aquilo diante de D. Júlia, disse-lhe num tom amargo:

- Aconteceu uma coisa muito triste, minha velha. Não para mim, pois já esperava tudo neste mundo, mas para o Luiz.

Ouvia tudo aquilo do quarto contíguo. Aquelas palavras soaram-me estranhas e não havia, aparentemente, nenhuma significação e muito menos relação com a injustiça sofrida por ele. Hoje elas parecem soar, no mesmo tom amargo, mas com outro significado. Quando me recordo de meu pai este cena me vem logo à memória. Ele foi um homem de caráter e irrepreensível nos seus julgamentos para com o próximo. O único homem que me impressionou vivamente, mas depois de trinta anos. Somente agora é que avalio todo o seu valor e compreendo todos os seus atos. A figura, antes antipática e seca, repete-se como a mais humana.

 

Trechos retirados da obra: Agonia. Curitiba: Editora Guairá, 1945.p. 10,11,12,16,17.