A mãe-irmã

(História Contemporânea)

ALZIRA TINHA DEZESSEIS ANOS; não era uma dessas fisionomias que tanta bulha fazem nos  romances  que nos vêm da velha Europa;  era cá da América,   e era  bela quanto podia ser; não tinha essa cor de leite, que tanta gente faz entusiasmar, mas tinha um moreno agradável, próprio dos  trópicos;  suas faces  não eram de  carmim, de um pálido tocante, que convidava todas as afeições; seus olhos não eram azuis como o céu do meio-dia, mas eram negros como o azeviche;  não tinham a viveza dos olhos espanhóis, mas tinham uma languidez encantadora,  que  parecia   anunciar  continuado  sofrimento  e implorar proteção a quantos os olhavam;   e a proteção não podia  ser negada;  seus  cabelos  não   eram da cor do ouro, não lhe caíam em anéis sobre ombros jaspeados, mas eram finos, mui lisos, em muita quantidade, e mais pretos e luzidos que o preto do ébano; sua estatura era antes baixa que alta; sua cintura podia ser apertada as duas mãos; seus dentes eram dois fios das mais iguais e claras   pérolas  do  Oriente;   sua  perna  parecia feita a torno; seu pé era o mais delicado.   Alzira era o que com  tanta   propriedade  chamamos  uma  feiticeira, porque com efeito ela e outras como ela enfeitiçam todos aqueles que têm a desgraça... não : a ventura de as ver.

Alzira era filha única de um militar, que comandava um dos regimentos desta corte, abastado em cabedais, homem de bem a toda a prova, e que se ufanava de, em toda a sua vida, não ter que se repreender de uma só fraqueza; filho e neto de militares, ao mesmo tempo que generoso, franco e virtuoso, dotado de toda a dureza própria da sua profissão; lamentando a todas as horas não ter um filho que pudesse instruir na vida militar, e deixar em seu lugar, como já ele ficara no de seu pai, e este, no de seu avô; mas, querendo remediar esta falta, casando sua filha com um militar.

A mãe de Alzira era ao contrário a própria bondade; apenas com o dobro da idade de sua filha, e dois terços da de seu marido, tratava aquela como a sua mais íntima amiga, sem que um só segredo tivesse para ela; sua filha era o objeto exclusivo de suas afeições. Mas, tanto como a sua filha amava a seu marido, porque o coração de uma mulher é incompreensível em suas afeições; pai, mãe, marido, filhos; ama a cada um mais que a todos, e a todos mais que a cada um; a cada um dá o seu amor, e o seu amor é dado a todos: mistério que ninguém pode definir, e que só a natureza com toda a sua sabedoria podia criar. A mãe de Alzira amava a seu marido tanto como a sua filha, mas o seu amor era um amor respeitoso, o que provinha tanto do caráter particular dele, como da diferença da idade.

Tinha a mãe de Alzira um irmão, dos primeiros negociantes da corte, igualmente casado, cuja mulher vivia em uma chácara, onde as duas iam passar muitos dias no ano, e sobretudo jantar todos os domingos.   Entre outros caixeiros, tinha êste negociante um guarda-livros, de idade de vinte e cinco anos, que às perfeições físicas juntava todas as morais; moço verdadeiramente perigoso, se sua educação e princípios o não tornassem refletido sobre seu viver.    Entretanto, tinha um defeito; defeito, é verdade, em que nem ele nem ninguém tinha culpa, mas que nem por isso deixava de ser defeito; era pobre, vivendo apenas de seus ordenados. Êste defeito era para todos; quem o negará? para o pai de Alzira ainda tinha outro e era não ser militar.

Narciso era este o nome do guarda-livros, apesar; de todos os seus princípios e de toda a sua reserva, não pôde deixar de ficar cativo de Alzira.   Está isso nas mãos de alguém? quem é esse que governa o seu coração ? a razão pode muito, mas o coração pode mais que a razão; amor não é crime; mas, não se atribuam a amor es em que ele não tem a menor parte; paixões vis são amor.

Alzira viu Narciso a princípio com bastante indiferença; mas o amor dele não lhe foi por muito tempo oculto; conhecia o seu valor, e em breve pagou amor com amor. Êste negócio seguiu o caminho de todos os de idêntica natureza; atenções, olhares, pequeninos serviços prestados entre a mais numerosa companhia, que para os mais são indiferentes, mas que tanto valor têm ara os amantes; duas palavrinhas ditas em segrêdo e respondidas com um sorriso. Tempo ditoso é esse! em que um dedo de uma luva tocado produz um choque elétrico em todo o corpo, faz voar o entendimento aos espaços imaginários, e ali construir castelos, cujo único defeito é não terem realidade l Vós, que vos achais hoje presos nas cadeias de himeneu, dizei quanto dareis por fazer reviver um só momento desses. E vós, que ainda hoje espiais os passos de alguma bela, dizei se podeis conceber maior ventura do que estardes ao lado de vossas amadas, sem lhes dizerdes uma só palavra, e sem que elas na só palavra vos digam.

Alzira e Narciso conheciam as dificuldades que havia para sua união; conheciam os projetos do velho militar, e que era êle inflexível; e, apesar disso, tinham esperança, porque a esperança é a companheira inseparável do amor.

Por mais cuidado que tivessem ambos, seus sentimentos foram descobertos por aqueles mesmos que eles tinham mais interesse em que os ignorassem. O resultado desta descoberta foi que, depois de longa conferência entre os dois cunhados, foi chamado Narciso à presença de seu amo, o qual lhe comunicou que, necessitando seu extenso comércio na Ásia de um agente zeloso que ali o dirigisse, fora feita escolha dele para esse fim, pelo que propunha um interesse na sua casa, se quisesse partir na primeira embarcação.

— Dou-vos oito dias, continuou, para me dardes a rosta; mas, tomai bem sentido nos motivos que vos vão dirigir; vossa sorte depende do passo que ides dar. E para melhor poderdes resolver, lembrai-vos de que o Rio do Janeiro ainda tem uma policia ativa e vigilante, que não consente que viva em continuados sustos uma família aliás respeitável.

Estas palavras fizeram conhecer a Narciso a necessidade de sua posição; oito dias se desolou, escreveu cartas as mais apaixonadas, recebeu respostas as mais ternas; mas o oitavo dia chegou; uma resposta era necessária, e não era possível que fôsse negativa; era melhor ir por vontade e com vantagens, do que à força e desgraçado.

Enquanto se faziam os preparativos da viagem, julgou-se prudente que fôsse Alzira para a chácara de seu tio. Mas, como partiria Narciso sem se despedir dela? sem lhe dizer talvez o último adeus? sem lhe jurar fé e constância eterna? sem ouvir de sua boca a sorte que o esperava? Uma entrevista foi ajustada, que devia ter lugar de noite no jardim. Muitas vezes as maiores cautelas produzem o mesmo eleito que os maiores descuidos.

A entrevista teve lugar; suspiros, soluços, lágrimas, protestos, juramentos, e depois um beijo, e após êste segundo, e após este o crime se consumou...    O crime! E quem pode dizer que foi crime? Ao menos eles não foram criminosos. Embriaguez terrível apoderara-se deles: o silêncio da noite, a solidão... a mocidade... sim, a mocidade,   tão cheia de vida, tão cheia de calor, tão precipitada.   Não foi amor; oh! não lhe imputemos culpas que ele não   teve;   a união dos dois sexos é um instinto, a que as leis sociais  têm querido dar normas, e sujeitar a regras,   das quais porém a natureza muitas vezes não faz caso. É criminoso para a sociedade aquele que viola essas normas; mas a natureza absolve muitas vezes o que a sociedade condena.

E que remorsos não tiveram eles quando lhes passou a ilusão! Quanto dera Narciso por nunca ter pedido semelhante entrevista! Quanto dera Alzira por a não ter concedido!    Quando ali se reuniram, pensavam que só teriam de chorar a separação a que eram obrigados; porém, não lhes aconteceu assim; Alzira teve que chorar sua inocência perdida, e Narciso não podia de modo algum perdoar-se a fraqueza a que tinha sido arrastado. Foi necessário separar-se, e separaram-se; Narciso partiu no dia seguinte, e foi inconsolável; Alzira o não ficou menos, e a sua tristeza não era fingida, porque que deplorar duas perdas.

Mas seus tormentos ainda cresceram, e chegaram ao último auge, quando no fim de um mês conheceu que estava pejada. É esta uma daquelas posições que facilmente se não concebe, e que por isso nunca pode ser descrita, nem fazer-se sentir ao leitor.   Figure-se uma menina, cuja coragem ainda uma só vez não foi experimentada, cuja família tem toda por timbre a honra, cujo pai nem conhece o nome do que seja fraqueza, o pai de cujo filho navega a centenas de léguas de distância, e por isso lhe não pode vir prestar apoio; figure-se uma menina nestas circunstâncias, e com uma falta de semelhante natureza, que não pode ser ocultada... os tormentos de uma semelhante posição não podem bem avaliados.    Mas era necessário tomar uma medida.

Alzira confiou tudo a sua mãe.

Não gastou esta o tempo em repreensões ou reflexões agora de todo inúteis; fêz melhor; procurou meios de salvar a honra de sua filha, a sua e a de seu marido; para o que, de concerto com aquela, se fingiu pejada. A princípio tomou seu marido esta notícia por simples gracejo; mas, tão seriamente lhe falou ela, que a acreditou, e sentiu verdadeiros transportes de alegria. E conquanto não dessem notoriedade ao fato, todavia, contando-o em segrêdo a um e a outro, em breve se fez público.

Ainda não bastava, era necessário mais alguma coisa; que ela se fingiu gravemente incomodada e carecida dos ares do campo; o que, junto à necessidade de distrair sua filha, cuja constante melancolia era atribuída à ausência, foi motivo  bastante de se retirarem as duas para uma fazenda a trinta léguas da corte, a qual também careciam de ver, por o não terem feito havia muito tempo. O serviço embaraçou o militar de as acompanhar.

Ora, enquanto elas  fazem a sua jornada, façamos nós algumas reflexões.

Os meus leitores talvez criminem esta boa mulher, porque assim enganou seu marido; mas, não têm razão. Para os fazermos calar, bastaria lembrar-lhes que nem sempre as mulheres que enganam os maridos são criminosas; Rebeca enganou Isaac, fazendo que desse a Jacó a bênção que êle destinava a Esaú; e nem moralista cristão, nem padre da igreja que saibamos, tem até hoje repreendido esta ação. Como, porém, talvez se não ache exatidão na paridade, expliquemos o nosso enigma, deixando aos mais o cuidado de explicar os que arranjarem.

E se o padre mestre do Despertador disser que isto é irreligioso?   Mas, que nos importa a nós com o Despertador?   faz ele muito bem; ele bem sabe que a constituição permite a livre expressão do pensamento, em cuja faculdade encaixa êle também a de exprimir o que não pensa; ora, certo nesse direito, êle vai dizendo o que quer, e quem não quiser que o não leia.  Diga, pois, o que bem lhe parecer, que nós iremos continuando com a nossa história.

Alzira era filha única, e portanto, todos os bens de seus pais deviam passar a ela; a ela, portanto, vinha somente a prejudicar a suposição de sua mãe; e ela não comprava muito cara a sua reputação por metade da sua fortuna, e quando esta em tudo ia recair em seu filho que era seu herdeiro universal. E se viesse a casar e ter filhos legítimos, devendo aquele ser ainda seu herdeiro, como filho meramente natural, ficava-lhe segura sua legítima, ficando a outra parte para os outros. E, não casando Alzira, seria sempre seu filho o seu herdeiro, á título de irmão. Quanto ao pai de Alzira, também o engano era tolerável, pois quase indiferente lhe devia ser abraçar e beijar o menino como seu filho, ou como seu neto. Se estas razões não desculparem a boa mulher, não temos outras melhores para dar.

Alzira, em tempo próprio, deu à luz a um menino, a que foi posto o nome de Guilherme; seu pai foi avisado de que tinha um filho varão, o que o encheu de alegria. Via já um militar futuro, que devia continuar a geração dos militares; já os maiores postos do exército eram confiados seus; a glória da família e a da pátria iam receber um lustre incomparável.

Guilherme pôde, portanto, ser criado junto de sua mãe, que, com aparências de amor fraternal, escondia amor materno,   que,  aliás, se lhe não podia ocultar, causando mesmo admiração ver como podia ela assim afagar um irmão que lhe vinha arrancar metade de sua fortuna, quando menos o podia recear. E ainda mais admiração causou quando, oferecendo-se-lhe vários partido, aliás  mui  vantajosos,  respondia que  não podia aceitar, para não diminuir a fortuna de seu pequeno irmão que, tendo de seguir a carreira militar, necessitava de ter com que o fizesse com brilhantismo.

Guilherme foi, com efeito, destinado à profissão das armas, logo que chegou a idade suficiente: seu avô o tratou sempre como seu filho, tido já quando menos o esperava, fruto da sua velhice; isto é, seu avô não usou com ele daquela energia de que tanto se ufanava, o que tão necessária é para uma boa educação; o que fez que ficasse ele sujeito a alguns defeitos, como orgulho e irascibilidade pronta. Seu avô morreu, deixando-o dezoito anos, e sem que tivesse conhecimento do segredo fatal; sua avó morreu pouco depois, e assim ficou Guilherme governando a casa e sua própria mãe, que supunha ser sua irmã, e que debalde lhe dava alguns conselhos, os quais êle de cada vez ouvia menos.

E entretanto o que tinha feito Narciso? tinha sido fiel sempre à sua amada?  Sim, tinha sido fiel.   Ignorava, é verdade, tudo quanto se tinha passado; ignorava mesmo que era pai; mas, apesar disso, foi firme em seus juramentos. Por algum tempo continuou a sociedade com seu antigo  amo;  porém,  achando-se  com  fundos suficientes, principiou a girar sôbre si, e adquiriu em breve boa fortuna.  Alzira, logo que seu pai morreu, buscou notícias dele; e, sabendo que ainda se conservava solteiro, o fez participante de quanto era passado; pelo que, realizando seus cabedais, êle se apresentou nesta corte, quando já seu filho contava vinte e dois' anos.    

Buscou logo  Alzira, e, entregando-lhe esta os documentos justificavam a filiação, trataram  imediatamente o casa-j mento.

Viu Guilherme as visitas que fazia Narciso àquela que êle supunha sua irmã; viu que estas visitas amiudavam, e viu que entre eles reinava a maior familiaridade, e desconfiou que algum louco amor tinha entrado na cabeça de Alzira, que, pelo menos, iria dar em algum casamento. Mas, casar-se ela? Privá-lo assim de metade da fortuna com que contava? Julgou, portanto, ou de seu dever ou de seu interesse, necessário fazer algumas reflexões a Alzira; mas esta zombou dele, e continuou a receber o seu antigo amante. A aversão de Guilherme para este homem cresceu mais por este fato.

Supondo que ela, com efeito, tivesse em vistas casar-se com ele, como consentir em bom projeto que, além de privar da  fortuna  que já  dissemos,  tinha o defeito de não  partir dele, o que não  é pouco para um espírito pequeno e orgulhoso? E como suportar que julgasse o público que semelhante casamento era efeito de seu mau viver, pois, de outra sorte se não podia conceber que casasse na idade de trinta e nove anos, quatro depois da morte de seu pai, aquela que sempre recusara fazê-lo, para  não diminuir a fortuna de seu irmão ? e quando rumores se espalhavam já de que, com efeito, Alzira não tinha que se louvar dele? Um  partido era necessário tomar que, por uma vez, cortasse semelhantes relações; ordens foram dadas para que a sua porta se não abrisse a Narciso.

Êste, ignorando tudo, apresentou-se a querer falar com Alzira; a entrada lhe foi negada. Admirado por extremo, quis saber por ordem de quem; a verdade lhe foi dita.

— Por ordem de Guilherme?

— Sim, senhor.

— E teve êle a ousadia de me fazer fechar a sua porta?

— Êle o  mandou, senhor.

— Estouvado mancebo! É necessário que eu entre; devo falar com a senhora.

— É  impossível  consenti-lo.

— Está ele em casa?

— Sim, senhor.

— Ide chamá-lo.

Guilherme apareceu.

— É certo que me fizestes fechar a vossa porta?

— É certo; e devo anunciar-vos que nunca mais vos será franqueada.

— Estimo a vossa franqueza; é de militar. E poderei saber as razões?

— Na minha casa faço o que me parece, e não dou satisfações a alguém.

— Assim deve ser; mas,  nesta casa mora também Alzira; ela não vos está sujeita; é a ela, e não a vós, que procuro, e creio que ela me não proibiu a entrada.

Guilherme se tornou pálido de cólera.

— É exatamente porque procurais minha irmã e não mim, que vos tenho feito proibir a entrada. Vossas relações com ela me desagradam, e julgo dever fazê-las cessar.

— E vosso procedimento para com ela é o de um bárbaro, também julgo que o devo fazer cessar. Ela deve ser minha esposa.

— Quaisquer que sejam os vossos projetos, quem vos deu o direito de repreender-me?

— Quem? as vossas ações. Se tivésseis tratado de fira sorte uma mulher que se tem sujeitado a viver solteira, só para assegurar-vos a fortuna que de seus pais pertenceu, talvez ela me não fizesse queixas, talvez êste casamento não tivesse lugar; mas, o vosso viver repreensível é, talvez, a causa principal do passo que vamos dar.

— A minha paciência vai se esgotando. Ainda até hoje de ninguém ouvi palavras semelhantes! Retirai-vos, senhor.

— Eu não  me retiro; quero falar a Alzira; quero entrar.

— Senhor, vós me quereis fazer chegar aos últimos extremos! Quereis que use de violência?

 — De violência! vós para comigo ! Oh, meu Deus perdoai-lhe; êle não sabe o que diz. Franqueai-me esta porta.

— E por que não usarei de violência para convosco? Não necessitarei de implorar auxílio; meu braço será bastante forte.

— Imprudente! calai-vos. Franqueai-me esta porta; quero falar à minha esposa.

— Já vo-lo disse; esta porta vos não será franqueada; minha irmã ainda não é vossa esposa; quando o for, tratareis com ela, não aqui, mas no lugar para onde a levardes.

— Bem, eu  não venho preparado; esperai-me aqui mesmo; dentro de meia hora serei convosco.

Narciso retirou-se; Guilherme pôs-se a rir.

— Que quererá dizer? Pretenderá bater-se comigo! Mas, aqui mesmo em casa não parece crível. O velho perdeu o juízo... ou antes quis ver se me aterrava... Não, ele não vem mais, posso estar seguro. Demoremo-nos porém a meia hora, e vejamos em que isto dá.

Narciso voltou ainda antes de passada a meia hora,e fêz-se anunciar a Guilherme, que não pouco se admirou de tão pronta volta, e o fez introduzir. Narciso sentou-se sem cerimônia, e fez sentar a Guilherme, como se estivesse em sua casa.

— Então,  tendes pensado?

— Pensado em quê?

— Já estais resolvido a deixar-me casar com Alzira?

— Eu não embaraço o vosso casamento; não quero que continueis a entrar nesta casa.

— Mancebo, vêde o que fazeis; com uma só palavra posso fazer-vos mudar de resolução.

— Nem com palavras, nem com ações.

— Imprudente! olhai que é um segredo de que depende vosso estado e fortuna.    

— Não posso deixar de rir-me dos mêdos que quereis meter-me. Pensei que vínheis para ações, e não para palavras.

— Para ações, venho. Mas de que ações falais?

— Pensei que íamos decidir nossa contenda com as armas;  vosso ar,  quando saístes, pressagiava  grandes coisas; mas vejo que pensastes melhor, e que quereis concluir tudo em palavreado.

— Um desafio! As leis o proíbem.

— É a desculpa dos cobardes, das almas vis.

— Guilherme! não me insultes.

— Não vos insulto, digo-vos as verdades.

— Ë bem certo que a natureza nem sempre fala! Guilherme, olha para mim; não te diz nada o teu coração?

— O meu coração diz-me que falo com um aventureiro, que veio do fundo da Ásia para iludir minha irmã, e que agora  busca cobrir sua infâmia com um milhar de rodeios.

— E quanto me custa desenganá-lo! quanto me custa descobrir êste segrêdo fatal! tornar talvez menos puro a seus olhos aquele anjo de candura!... Ainda uma vez; tua fortuna, teu estado depende de uma só palavra minha; não me obrigues a pronunciá-la.

— Ainda uma vez, não a receio; já vo-lo disse; peço-vos que a pronuncieis; quero ouvir essa palavra mágica que, igual aos sons do corno de Oberon, me deve connfundir.

— Guilherme!... Guilherme!... és   meu   filho.

— Eu, vosso filho!... vosso filho!... eu!... não pode ser; não. Foi minha mãe muito virtuosa, e meu pai mui delicado em pontos de honra, para que ela fôsse capaz de uma fraqueza. Vosso filho!... não pode ser... Vosso casamento com minha irmã seria um incesto. Vosso filho!... e pensáveis que assim acreditria semelhante embuste? Dar-me-eis satisfação pela desonra que assim quereis fazer pesar em uma família inteira.

— Guilherme! não me obrigues a pronunciar o isto; não me obrigues a mostrar-te provas, que eu queria que fôssem por ti sempre ignoradas.

— Provas! ah!  sim, eu as quero;  eu quero provas. Um labéu foi por vós lançado sôbre a melhor das mães, sôbre a mais virtuosa das mulheres. Oh! eu  quero provas, eu as exijo.

— Guilherme, ainda to repito, desiste dos teus intentos.

— Não, não posso; minha mãe acha-se infamada: obrigar-vos-ei  a justificá-la.

— Tua mãe! e sabes quem é tua mãe ?

— Quem é minha mãe?... Pois também pode haver dúvidas a êsse respeito?

— Sabes que Alzira é tua mãe?

— Alzira!... Alzira !... não pode ser.

— Examina estes papéis; vê estas declarações em forma por tua avó, pelo vigário e pelos professores, que assistiram ao parto de Alzira. Alzira é tua mãe, e eu sou teu pai. Toda a tua fortuna é de Alzira. Tu nem nome tens ainda, e de minha vontade depende dar-to.

— Alzira, minha mãe!... ele, meu pai!...

— Quis ocultar-te tudo, para que ignorasses o meu crime: obrigaste-me a revelar tudo. Agora te sujeitarás às conseqüências da tua imprudência.

De mim dependia agora fazer acabar tudo isto tràgimente: bastava mover o orgulho e irascibilidade do rapaz, e fazê-lo suicidai-se. Poderia descrever o suicídio á minha vontade, e mostrar depois o corpo do infeliz feito em pedaços, nadando em seu próprio sangue, e as lágrimas e desesperação da mãe e do pai. Mas, para que se tudo isto não foi assim? Verdade primeiro que tudo.

Guilherme recebeu a notícia com a maior tristeza, mas em poucos dias acostumou-se a sua nova sorte. Alzira e Narciso casaram-se e legitimaram-no nesse ato; e acabou-se a história.

(Panorama do conto Brasileiro)