Bons Dias!

 Machado de Assis

Gazeta de Notícias
19/05/1888

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês.1 Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira2, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coupe do milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio3; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio6, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

– Oh! meu senhô! Fico.

– ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

– Artura não qué dizê nada, não, senhô...

– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

– Eu vaio um galo, sim senhô.

– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.4

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

BOAS NOITES.
(In: DUARTE, E. A. Machado de Assis afrodescendente, 3. ed., p. 56-8)

Notas

1. Nesta crônica, publicada 6 dias após a Abolição, vale-se o autor dos recursos da ficção ao criar personagens que remetem a fatos noticiados na imprensa da época. Na história aqui contada em primeira pessoa, temos um narrador-senhor de escravos cínico, oportunista e sedento de notoriedade, à semelhança de Brás Cubas. Esses traços estão marcados por um exagero caricatural, como forma de desmascarar a falsa benemerência do “profeta post factum”. A encenação da filantropia de conveniência tem um de seus pontos altos no conto “Teoria do medalhão”, publicado em Papéis avulsos, de 1882, e será retomada mais tarde em Memorial de Aires.

2. Como o 13 de maio caiu num domingo, aqui o personagem refere-se ao dia 7 de maio de 1888.

3. O nome do escravo remete ao adolescente Pancrácio, um dos mártires e primeiros santos do catolicismo, torturado e decapitado no dia 12 de maio (!) do ano 304, por ordem do imperador Diocleciano. Na Espanha, São Pancrácio é considerado o padroeiro dos trabalhadores. O campo semântico do nome está ainda vinculado ao substantivo grego pankrátion, que designava justamente uma espécie de luta livre, considerada a modalidade mais violenta do atletismo grego, em que se permitia o uso de mãos e pés a fim de vencer o adversário. Escusado dizer que, em sua conformação fonética no português, o nome está em consonância com “pancada”... Sua escolha, portanto, nada tem de casual ou inocente.

4. Aqui a sátira machadiana aborda a difícil transição do escravismo para o trabalho assalariado. O valor proposto pelo “benfeitor” de Pancrácio é ínfimo. John Gledson (1990: 63, nota 4) afirma que, à época, uma camisa comum “custava 3 mil-réis” e o “aluguel de uma casa de duas salas, dois quartos, cozinha e quintal, por mês, 35 mil-réis”. Dessa forma, o autor, ainda no alvorecer da abolição, já anunciava os percalços por que passariam os ex-escravos e seus descendentes em sua penosa integração à sociedade de classes.