Na manhã de um 8 de dezembro, feriado na cidade em que se lembra uma das padroeiras da cidade, tudo iria se evaporar. Com uma turma de mais quatro, Aline e Ivonildo se dirigiram logo depois do almoço à festa do largo da Conceição da Praia. Suas mães advertiram: tinham de retornar antes das 4 da tarde. Isso porque a coisa tava pegando. As gangues rivais que disputavam o comércio de drogas no Iraque impuseram toque de recolher a partir das 7 da noite. Obedientes, Ivonildo e Aline regressaram à comunidade meia hora depois das 4. Ele se despediu dela na porta de seu casebre e seguiu para casa.

Vestida com uma blusa vermelha de algodão e um short branco colado nas magricelas, mas torneadas, pernas, assim que chegou em casa Aline foi mandada pela mãe à padaria do bairro comprar pão para ela e os irmãos. Estava na fila do caixa para retirar a ficha de pagamento, quando o drama teve início. Ouviram-se vozes gritadas e confusas, saídas da gutural de cinco jovens que adentravam o estabelecimento:

– Assalto, assalto, vambora, vambora!

– Todos no chão, todos no chão, filhos da puta!

Seguiu-se um disparo de bala, que atingiu o teto da casa. Detritos sobre os compradores espicaçaram da laje.

O grupo de cinco adolescentes tentava disfarçar a identidade com camisetas e sacos plásticos pretos de lixo escondendo o rosto. Meninos da comunidade rival vizinha, por muitos conhecidos. A rivalidade ficava por conta das disputas entre as gangues. Transtornados pelo crack? Chegaram empurrando e chutando as pessoas, apontando armas leves e pesadas. Dois deles pularam sobre o caixa e um correu para os fundos da padaria com um fuzil em cada braço. Dois ficaram na entrada. Pegaram todo o dinheiro disponível no caixa e exigiram mais dos clientes deitados no chão. Foi então que um deles notou Aline. Impulsivamente a agarrou, levantando-a por um dos braços. Testemunhas depois disseram que ele gritou repetidamente: “Essa vai comigo!”. Em seguida deu um soco no rosto da garota, deixando-a tonta.

Saíram em disparada pela favela, levando a menina à força. Dois deles a carregavam pelas pernas e torço, parece que desfalecida. Assim desapareceram por uma das inúmeras vielas em direção ninguém sabe qual, porque havia vários desvios, desvãos, becos e reentrâncias na bagunça em que as vielas e os casebres foram construídos. Caía a tarde, nessa hora chuvosa. Ao saber do ocorrido, a mãe de Aline se desesperou aos berros pela favela.

– Levaram Aline – informou uma das irmãs dela a Ivonildo. Ele então saiu de casa em disparada e procurou se informar de toda a situação.

Logo meia dúzia de pessoas se mobilizou. Na associação de moradores, disseram que o correto era avisar a polícia. O problema é que, se uma das gangues descobrisse quem chamou a polícia, o terror no bairro poderia ser pior. lvonildo, dessa forma, era um alvo em potencial, o alertaram. Um líder comunitário recomendou “paciência e oração”. Ivonildo decidiu procurar, contrariando a opinião de sua mãe, o integrante de uma das gangues, um ex-colega de escola primária apelidado de Muquirana.

– Tô sabendo de nada disso não, mermão – garantiu Muquirana. E, antes de dar o papo por encerrado, advertiu: – É bom você não se meter com o que não interessa a você, tá ligado?

Nilo recolheu-se por volta das 10 da noite, ouviu-se uma algazarra na rua. Vários adolescentes, meninos e meninas, alguns dos quais com armas na cintura, gritavam e corriam numa direção. Ivonildo foi chamado por uma das irmãs de Aline e, juntamente com dois irmãos, se juntou ao grupo que seguia para uma parte cavernosa da favela. Tinham encontrado Aline. A mãe da garota seguia à frente, em passos muito rápidos, com alguns dos filhos ao lado e o bebê de colo nos braços. Ao chegar no exato local, mil vezes não tivesse visto o que viu. A cena era inacreditável, posto que horrorosa.

Um corpo totalmente transfigurado, com o pescoço cortado, tinha sido colocado dentro de uma valeta por onde passava água fétida de esgoto a céu aberto. Alguém iluminou com uma lanterna a pilha. Era o corpo de Aline, embora fosse difícil identificá-la: o rosto estava inchado, com roxos hematomas. Não sangrava de todo, mas havia marcas de instrumento pontiagudo pelos braços e pernas. Na altura da genitália, um rasgo profundo era coberto por sangue preto que não escorria, pois já se coalhara ali. Ela estava completamente nua, de olhos fechados, os lábios desfigurados por ferimentos que pareciam mordidas.

Mesmo diante do fato estarrecedor, que o fazia chorar, Ivonildo ainda assim percebera a contradição. Excetuando a mãe da menina morta, o restante das pessoas não parecia de forma alguma horrorizado. Enquanto a mãe berrava, de certa forma ridícula, invocando Deus por justiça, alguns adolescentes diziam coisas sem sentido, mas não de desaprovação ou torpor. Tudo parecia não passar de mais um entretenimento corriqueiro, até que uma boa alma conseguiu um lençol velho encardido nas vizinhanças. Cobriram o corpo da garota e trouxeram velas acesas. Ali a defunta Aline, a outrora sonhadora Aline, jazeria na vala até depois do dia clarear. Era mais de 9 da manhã quando as autoridades policiais enfim chegaram, em um rabecão e uma viatura. Acompanhando-as veio um circo de jornalistas com seus blocos de notas, câmeras e aparatos televisivos. O pai de Aline os recepcionou. Fizeram o levantamento cadavérico e as inquirições de praxe, sem demonstrar nenhum interesse especial. À mãe da menina, um policial perguntou:

– Ela tinha envolvimento com o tráfico?

A pergunta de uma repórter de TV pareceu a lvonildo ainda mais fora de propósito:

– Como a senhora se sente vendo a sua filha morta desse jeito?

O tempo passou. Nenhuma investigação foi feita. Outras mortes parecidas se sucederam, impondo medo e silêncio. As reportagens sobre o Iraque tinham a mesma superficialidade e o mesmo viés sensacionalista. Chegaram ao ponto mesmo de sugerir que Aline há tempos se prostituía nas imediações do Porto da Barra para com o dinheiro arrecadado ajudar nas despesas de casa. Exploradores sexuais é que não faltavam na Bahia. Alguns pouquíssimos se, por azar, flagrados, mereciam atenuantes se fossem brancos, ou universitários. Podia-se alegar algum distúrbio psíquico, como forma de amenizar a execração pública de seus atos, num ambiente social hipocritamente moralista. A naturalização desse estado de coisas, pensava Ivonildo desde aquela época, era o que certa tradição intelectual definia como ideologia. A lei tinha lado.

 

(Diasporá, p. 37-39)