Canto das três raças

 

Ninguém ouviu

um soluçar de dor

 

No canto do Brasil

um lamento triste sempre ecoou desde que o índio guerreiro

foi pro cativeiro

e de lá cantou

 

Negro entoou

um canto de revolta pelos ares

do Quilombo dos Palmares

onde se refugiou

 

Fora a luta dos Inconfidentes

pela quebra das correntes

nada adiantou

 

E de guerra em paz, de paz em guerra

todo povo desta terra

quando pode cantar,

canta de dor- ô ô ô ô ô...

 

E ecoa noite e dia

é ensurdecedor

Ai, mas que agonia

o canto do trabalhador

 

Esse canto que devia

ser um canto de alegria

soa apenas como um soluçar

de dor

 

 

(Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro)

 

 

 

” É, mas a vida é um troço muito gozado. Pensa bem, eu tinha vergonha do pai, vê se pode. Ele sempre foi muito envolvido com música, com pagode, e minha mãe, às vezes, achava até bom que me levasse com ele – dava folga no serviço de casa -, e onde quer que fosse, eu tava junto, me deixava num canto e começava a beber com os amigos, a tocar, e eu, no começo, até que gostava, mas depois aquilo ali ia me enchendo o saco, vinha um guaraná, eu bebia até deixar pelo meio, e aqueles tira-gostos de boteco.. você vê, uma criança, virando dia e noite ...

E não tocava nada, tinha uns meninos que até tiravam alguma coisa no violão, eu nada. De vez em quando me empolgava, pegava um pandeiro que tivesse sobrando ou um surdo. Mas o normal não era fazer isso não, era ficar por lá, invocado. E se pressentia alguém me olhando bater, balançando a cabeça - positivo -, aí mesmo é que eu parava de vez... "

 

".. na volta é que era o problema. A turma voltava bêbada – bêbada mesmo não, meio alegre, com os instrumentos no ombro, cantarolando alguma composição que tinham feito no pagode, ou alguma outra conhecida ... menos eu, que chegava até a atravessar para a outra calçada, fingindo que não estava com eles. E se alguém perguntava, curioso - de noite, um menino andando sozinho de mão no bolso -, eu dizia que não, não sabia quem eram.

 

Agora vê, como é que pode ... "

 

“.... o pessoal diz que sou revoltado. É, quando eu saio do serviço no horário de expediente e venho tomar minhas cervejinhas, de vez em quando, bater um lero com a rapaziada do boteco. Fico danado. Lá no Processamento do BNH sou o cara que mais quebra galhos, é, se tem um programa novo para desenvolver, eles vêm é me procurar. Aí o cara fala comigo no telefone, quando chega e vê um crioulo com os outros brancos vai logo no branco, ele é que é o analista. Pois é, o analista só pode ser branco. Isso já me invoca. Ai, trabalho em cima, faço o troço - porque sou bom nestas coisas, de descobrir, sempre fui -, depois deixo de lado. Vem um cara, desenvolve – porque nesse negócio de computação o difícil é começar - e em pouco tempo já é chefe de Divisão, de Departamento ... Por isso que eu falo com a Lilian, ela diz que não, que sou paranóico ... Paranóico nada ... É, paranóicos são eles...”

 

”... lembro na minha época de guri, estudava naquela escola pública ali no Largo do Machado. Naquele tempo, depois da terceira série eles dividiam os meninos, tinha os adiantados, em que o ensino era melhor, depois podia até fazer prova pros colégios do Estado, que eram bons, eram bons, e a turma dos atrasados. Pois quando fizeram a lista, eu fiquei de fora. Aí um garoto - branco ele – branco, agora vê, pois é – também, quase não tinha garoto preto nesta turma dos adiantados -, que tinha sido meu coleguinha do ano anterior, me encontrava sempre na saída –, perguntou porque eu tinha ficado nos atrasados. Não vira meu nome na lista, eu que sempre tivera notas melhores que ele. Falei que não sabia. Aí, logo nos primeiros meses de aula, ele veio de novo - olha só o que é uma criança, hein! -, 'porra, Mauro, você que tem um garoto na minha turma que nunca aparece?, e o nome dele é o mesmo seu - Mauro Duarte Filho'. Aí eu fui falar com minha professora e ela disse que ia ver. Mas não viu nada. Um dia contei o caso em casa. Minha mãe foi lá e meu nome estava mesmo na caderneta de presença. Passei pra turma dos adiantados já quase no meio do ano. Pois é, mas não é porque eu era preto? Esse garoto até hoje é meu amigo, ele mora ali na Jorge Rudge, essa rua aqui atrás -, e a gente se encontra muito. Agora é médico, mas peça 'muito fina."

 

“. . . estou treinando cavaquinho. Violão eu sempre toquei, teve um tempo que deixei de lado, mas volto sempre. Aliás, conheci a Lilian num samba, ela gosta muito, mas com este negócio de criança recém-nascida, atrapalha, sabe? Tenho ido sozinho. Qualquer dia boto ele no pagode também. Mas esse negócio de cavaquinho, descobri que é mais fácil de tocar até do que violão, é afinado em mi, e pra solar fica mais fácil, tem o braço menor. Mas eu não queria não, é que nestas rodas de samba todo mundo toca a violão mas cavaquinho, banjo, sempre só tem um. Aí, vem um cara, começa a tocar, e quando o negócio tá ficando bom, ele vai embora. Ficam dois que tocam violão e ninguém pro cavaquinho. Foi por isso que resolvi aprender. É fácil, é, é fácil. Estou até desenvolvendo um método, baseado, em cifras, você vai ver, o cara não precisa saber música nem nada. É só saber tocar violão que passa pro cavaquinho rapidinho, rapidinho ... "

 

“... meu pai sempre quis que eu aprendesse música. Mas não forçava: eu falava pra ele, como é que vou aprender música, o senhor não quer que eu estude na escola? Estou estudando. Pra tirar notas boas não posso ficar na rua até tarde da noite, indo lá pra Deus me livre todo sábado. Olha, outra coisa, tô cansado de ficar bebendo guaraná - faz mal pros dentes – e cigarro me incomoda. Todos os seus amigos fumam pra cacete! ... "

 

“... aí ele desistiu. Viu que eu não era mesmo do ramo.” Agora vê, né? Tô pagando a língua."

 

Esse negócio de ser casado com mulher branca é a maior complicação que pode ter. A Lilian diz que é impressão minha, mas não é. Sou muito observador. O branco, quando vê a gente junto, já olha com raiva. E o preto também não olha muito satisfeito. E se for um preto destes linha dura, de Movimento, já quer logo uma explicação, saber se você é rico e ela tesa ... é foda!”

 

“... dizem que o problema é social. Mas não é, pega dois mendigos, um preto e um branco. Bota nos dois uma roupa boa, barbeia, e leva eles para ser garçom na Zona Sul. Se nenhum dos dois souber fazer nada e só tiver uma vaga. Advinha quem entra. O preto vai ser mendigo de novo. Devia de ter uma lei que...”

 

"Não, índio é outra história: Índio é inteligente, ele saca logo que este negócio de civilização é besteira. Então prefere morrer logo. Eu entendo assim, cara, índio já viu que isto aqui não dá. Que se não pode viver como sempre viveu - sei, telefone, rádio, televisão, geladeira, é muito bom, mas nem todo mundo curte isso. Gosta de ver futebol? Gosta? mas o que você quer mesmo é jogar, não é não? Ver na televisão só em último caso. Então, o índio prefere é estar dentro do campo ... "

 

"Sabe que aprendi a tocar contrabaixo?... é porque falta sempre um contrabaixo...? Não, he, he, é porque acho que o contrabaixo dá uma marcação forte, é assim como o coração da música...

 

 

Por isso que já notei, em toda orquestra africana o contrabaixo vem na frente. Ele substitui o surdo. Quando a gente escuta dá pra ver logo. E, música africana tem muito disto . . .

 

Outro dia eu estava ouvindo um samba, que por sinal é do meu pai, veja a coincidência... é, eu sou filho do Mauro Duarte, todo mundo sabe - todo mundo do samba -, quando passo na rua um amigo dele antigo lembra de mim e quer logo que a gente tome uma cerveja ... mas aí, eu tava notando a cadência: tum, tum, tum, porque é um samba mais cadenciado, mais triste ... você sabe que o samba pode ter mais de mil batidas diferentes?, é, não é brincadeira não, e meu pai sabia todas. Mas nesse dia eu tava com meu filho no braço, apertado no peito, e o coraçãozinho dele batia daquele jeito, na mesma cadência do contrabaixo. . . tum, tum, tum ... Parece até que tá no sangue...

 

Eu vou esperar mais um pouco, quando ele estiver mais grandinho já começo a levar pro pagode. Sei que ele vai se amarrar... "

 

 

(Flor de sangue, 1990.)