BALADA EM OURO E AZUL

 

 

Morreu D'Angola. D'Angola morreu. Sol. Ao fundo, céu sem nuvens. Fiquei ali, perdido, sem acreditar que D'Angola morreu. D' Angola, o da faca na meia, os olhos rajados de sangue, a boca vermelha.

 

Nas manhãs de domingo voltando da missa deitávamos na pedra eu e Ana olhando a favela lá embaixo. Pensava gozado isso uma favela num buraco. Pobre e igreja vivem nas Alturas reflito o calor gostoso da pedra no peito. Gravuras infantis. Ana me mostra a casinha de D'Angola longe ao fundo do buracão. Não enxergo ela me engana. Daí pensar que todo mundo me engana até hoje. Em criança não sabia que era míope pensei vou ter que descer pra ver a casa do D'Angola Aquele que Jogava com a Faca na Meia. O que Bebia Cachaça Até cair. Mas não chamava D'Angola pra todo mundo pra mãe era César: Que nome gozado. César não me parecia César que pra mim todo César era branco. A mãe era magrinha magrinha assim tristinha não parecia mãe do D'Angola que pra ela não era D'Angola era o César. Ele não está aqui agora digo assustado que não vim para vê-lo que um ídolo não pode se mostrar aos mortais ainda mais que era César pra mim D'Angola as pernas compridas driblando no meio saltando no centro marcando gol sem vibrar o silêncio no ar a torcida gritando eu apertando o olhar pra ver o D'Angola que volta correndo pro meio do campo arrumando a meia perto do joelho amarrado com fita com fita vermelha o lábio vermelho os olhos vermelhos gazela correndo a cabeça redonda morreu D' Angola O da Faca na Meia procuro o espanto a dor coletiva e saber como foi se foi morte morrida se morte matada polícia ou mulher ladrão ou bandido acidente na estrada na rua na vida não sabem não ligam morreu D'Angola chorei escondido.

 

Eu ainda era criança.

 

Esse aglomerado de casas que hoje se vê aí, neste buraco, nem sempre foi assim. Dizem que nos tempos antigos era um grande lago. Profundo. Misterioso. Com árvores centenárias nas margens. Difícil acreditar, não? A primeira vez que o vimos, eu e Ana, éramos então pequenos. Na volta da missa, sozinhos, vínhamos por dentro da pedreira, que não sei se vocês sabem, depois aquilo ali se transformou em pedreira. Primeiro lago, depois pedreira e, no tempo de D'Angola, campo de futebol e vila residencial, que eles chamam de favela. Podíamos escolher, passar por dentro ou por fora. Vínhamos por dentro, que criança não tem mesmo muito tino, procura o prazer, o sorriso ao passar, a guloseima repentina, a quermesse permanente, a festa dos bares, a magia: do futebol, da queimada, do café com leite e da pipoca.

Tinha tudo isto, por dentro da pedreira.

Hoje em dia chamaríamos o que ali existia de favela que na época não era um buraco com um monte de casas construídas de acordo com o bom senso das pessoas nada de Prefeitura para atrapalhar nem título de propriedade que ninguém quer ser proprietário de um buraco cheio de pedras ou de coisa nenhuma.

Olhando bem é possível que aquilo tivesse sido mesmo um lago. Haja vista as pedras espalhadas no alto, às bordas, sem nenhuma ordem, semibalouçantes, onde eu e Ana parávamos para descansar, que era uma longa caminhada e uma festa constante, essa ida aos domingos, ao mundo e à igreja.

Lá dentro tinha um time de futebol, camisa ouro-azul, o Planalto - mais adequado seria Planície, ou Vale, pensava eu, criança com lógica de adulto, a olhá-los, manhã de sol, a trocar de roupa, colocar calção, ajustar as meias -, que sempre vencia, o pior que acontecia era empatar.

Ficava ela lá, a taça de prata (não era, mas parecia muito), pendendo no nicho de pedra, disputada ferozmente pelos nossos heróis, cá embaixo.

Ficava eu aqui, a olhar D'Angola, ajustando cuidadosamente a dobra da meia, amarrando a parte superior com a fitinha vermelha. Eu no meio deles, inocente, conivente, só muito depois sabendo que ali, ao longo da canela, estava a faca, longa e pontuda.

Ficava cá o time visitante - ganhador pelo empate -, a olhar a taça lá no alto, no nicho de pedra, suada, mas sem coragem de ir buscá-Ia. Quem subiria, o inimigo do lado, calado, de sobreolho. Ainda mais contra um time, que tinha um cara, um ponta de lança, de nome D'Angola, ou César, não sei, que jogava armado, com uma faca na meia ...

Às vezes, olhando de cima, imaginava que aquilo podia virar de novo um lago, se chovesse muito, e afogar os times todos, e todas as pessoas. Até o D'Angola? Não. O prazer de pensá-las se afogando e pedindo socorro foi substituído pelo medo - de saber que D'Angola também poderia morrer. E quem marcaria os gols? Quem?

Falaram que fora um lago aquilo. Até da existência de um monstro. Então eu perguntava e tinha peixe? Pergunta sutil, que já naquele tempo eu era astuto, que se não tem peixe de que o monstro se alimentaria? E ninguém me soube responder. Ficava meio a meio: uns diziam que tinha peixe, outros que não; mas uma coisa era igual: ninguém havia lá pescado 'algo. O que me fazia suspeitar que era um lago sem peixe e sem monstro, e como tal, desnecessário; e fizera muito bem de ter desaparecido e dado lugar para o Planalto e pra D'Angola.

E falavam muitas coisas interessantes.

Naquele tempo as pessoas adultas ainda conversavam bastante com as crianças.

Quando fui pegando mais idade deixei de passar por dentro da pedreira. Acabaram com o campo, o Planalto desapareceu, findou a magia. E também não mais vi D'Angola que, dizem, passara a jogar em vários outros times espalhados pela cidade. Tempos depois soube que fora assassinado lá pelos lados do Santo André, bairro distante do nosso, e que tinha uma certa má fama, naquele tempo. Quando se queria falar de algo ruim e fascinante, dizia-se que ocorrera no Santo André.

Por isso, para mim, não foi surpresa saber que o final se dera no Santo André.

Nem que violenta a morte de D'Angola. D'Angola, O da Faca na Meia.

Pois que, podem notar, os muitos humanos costumam sempre ter morte violenta.

(Cauterizai o meu umbigo, 1986.)