Cozinha
- Vem, vamos conversar um pouco. Quantos anos você tem?
- Treze.
Irene esse era o nome da babá em choque, tremia violentamente. Sua pele estava seca, mas arrepiada como se tivesse sido molhada e recebido um vento gelado. Minha mãe entrou no terraço e abraçou forte a garota, acarinhando-lhe de leve o rosto e a cabeça, que repousou em seu peito. Só então ela começou a chorar compulsivamente, e eu também. Aquele clima de desespero me contagiou.
Num gesto carinhoso, mamãe me pegou com uma mão enquanto ela lavava Irene pelos ombros com a outra. Fomos para a cozinha e ela deu um copo d'água com açúcar para que a mocinha se acalmasse. Não disseram nada por um tempo, até que o pranto diminuísse.
- Me ajuda aqui e vamos falando devagar.
Treze... Pensei que ela bem poderia ser minha irmã. As duas, juntas, começaram lentamente a retirar os pratos quase intocados da sala e levar para a cozinha, a lavar os muitos copos vazios e enfileirar as garrafas que iriam para a lixeira. Colocaram o bolo de chocolate inteiro na geladeira dos patrões. Sim, havia a geladeira deles è a nossa.
Sentaram-se à mesa da cozinha. Irene estava um pouco mais calma. Aquela tarefa de lavar, jogar fora e organizar ajudou mamãe a ordenar também as emoções. A velha tática para amansar o mar interior que se agitava, dentro dela. Minha mãe fez um chá para as duas com a cidreira que trazia do nosso quintal lá no subúrbio, e me deu alguns salgadinhos, doces e um suco de uva da festa interrompida. Irene voltou a chorar, agora silenciosamente.
- Irene... Você não teve culpa. A criança deixa a gente cega... É um piscar de olhos e algo pode acontecer...
Mamãe me olhou enviesado. Senti que era um recado para mim, afinal eu tinha saído do quartinho sem ninguém ver.
Eu estava muito apertada pra ir ao banheiro e com dor na barriga, d. Eunice. Vi que tinha ficado menstruada e estou usando roupa branca. Imagina se mancha? Eu ia ficar com muita vergonha... Passei alguns minutos encolhida, sentindo bastante cólica. A casa é grande e ela me deu tantos avisos pra não incomodar, que queria se divertir, pra eu só usar a área de serviço... Nunca tinha acontecido nada. Ela confiava em mim!
Irene recomeçou a chorar pesadamente.
- Me perdi um pouco no apartamento, mas foram só alguns minutos. Tão pouco tempo e... d. Helena deve estar arrasada... Eu sei que ela demorou muito para ter esse filho e...
Minha mãe se irritou.
- Pare! Você não teve culpa! Está me entendendo? Não-te-ve-cul-pa…
Ela separava as sílabas como que para gravar a mensagem a ferro na mente de Irene, porque sabia que ela ia precisar se convencer muito firmemente dessa verdade. O telefone da cozinha tocou, mamãe ficou ouvindo alguns minutos e desligou, sentou-se ao lado de Irene e segurou suas mãos.
Não precisou dizer nada. A garota desmoronou. Ela andava sem rumo pela cozinha, botava as mãos na cabeça, no peito e arfava, puxava a respiração. O oxigênio faltava. Até que caiu de joelhos, arruinada. Mamãe levantou-a e voltou a ajudá-la. Seu avental molhado com o lamento de Irene.
- Ainda existe uma esperança... ele está muito mal, mas para Deus e Nossa Senhora nada é impossível...
Hoje penso por quantos séculos uma mulher mais velha como minha mãe teve que consolar outra mais nova por prantos parecidos e naquele mesmo espaço, a cozinha, dizendo aquelas mesmas palavras.
Você não teve culpa. Calma, minha criança. Calma, minha menina…
Ela sabia que as crianças como eu, como ela foi e, antes dela, a sua mãe, e a mãe de sua mãe até a minha décima avó não entendiam muito bem o que era isso de ser criança. A gente sempre foi miniatura de adulto. Irene era mais uma na lista.
(Solitária, 2022, s/p)
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Quarto de empregada
Levei um tremendo susto quando ouvi a voz de Eunice na cozinha. Quanto tempo! Minhas paredes tremeram, pois foram muitos anos velando o sono dela e de sua filha Mabel. Sei que eu, no fundo, não era um quarto. Eu era uma solitária. Exatamente. Uma prisão. um lugar destinado a apartar do mundo e do restante dos viventes. Sou tão pequeno... mas sei também que que consegui abrigá-las como nenhum outro cômodo da casa. Por estar muito consciente disso, a voz de Eunice me encheu de alegria e saudade, mas igualmente de melancolia.
Saco de lixo.
Todo quarto de empregada é próximo à grande lixeira da casa, porque está sempre no fundo do imóvel. Nós, os "quartinhos", estamos sempre perto dos odores da vida das pessoas que não nos habitam. Perfume francês, patê de fígado de pato, vinho caro, trufas, papel higiênico, absorventes, suor. Quase tudo era deles.
Eunice e Mabel moravam dentro de mim, mas não eram as donas da casa, e quem era proprietário da casa nunca me habitava. Nem mesmo passava do limiar da porta. Por vezes, podia sentir bons cheiros vindos da cozinha, outras horas o mau hálito vindo dos sacos pretos dentro de caçambas de plástico, que eu achava muito parecidas com bocas e gargantas que tragavam o que ninguém queria.
Descartáveis.
Ela chegou com aquele jeito carinhoso de sempre e foi logo se apresentando para Luzia, a moça que agora me habitava com mais frequência. Luzia não vivia aqui da mesma forma que Eunice e Mabel viveram. Os tempos mudaram e, como d. Lúcia não queria pagar direitos trabalhistas, contratava seus empregados em dias alternados para que não houvesse vínculo empregatício. Nunca entendi isso muito bem. Eram tão ricos... por que não? O fato é que a moça chegava, trocava de roupa, deixava seus pertences no armário e partia para as tarefas.
Orgânico.
Vez ou outra Luzia vinha com o pequeno Gilberto. Qual a mãe que trabalha que nunca precisou levar o filho junto para o serviço? Ele enchia o ambiente de alegria. Dizem que o riso de uma criança pequena espanta o diabo. Olha, se o demônio existe, isso deve ser verdade, porque não há nada mais cheio de verdade, pureza e encanto. Eu ouvia suas brincadeiras, aquelas de garoto que brinca sozinho, imaginando mundos... e o mundo era ali, nos limites das minhas paredes. Já estava acostumado, pois Mabel fazia a mesma coisa quando era pequena.
Reciclados.
O mundo imaginado por Mabel era diferente daquele idealizado por Gilberto. Bem diferente... mas algumas coisas, eram iguais. Eu queria, poder abraçá-los de verdade, mas há como um quartinho como eu abraçar sem sufocar? Acho que consegui em um dia de temporal, quando a menina Mabel estava com muito medo do escuro desta casa enorme, e também quando a garota Irene estava com muita cólica e querendo um lugar escondido para sentir livremente aquela dor no ventre que às vezes vem quando o sangue feminino desce. Coitadinha, era apenas a terceira ou quarta vez na vida que ela estava sentindo aquele incômodo. Vi como ficou aliviada de não estar com o uniforme manchado de vermelho. Por falar em conforto e útero, acho que fui um para Mabel quando o dela se contraiu tanto, mas tanto, que impediu que ela fosse mãe-criança. Eu vi...
Catando papéis.
Mabel saiu desta casa com vaga numa das melhores universidades do país, mas isso não basta para se manter num curso que exige dedicação em tempo quase integral. Ela deve ter precisado trancar a faculdade algumas vezes. É quase certo que sua caminhada tenha sido bem mais acidentada que a de Camila ou mesmo de Bruninho, com todas as suas limitações. Eu me orgulho de ter sido casa para aquela menina. Ela é muito tinhosa! Quando quer uma coisa, traça um plano, uma reta. Eunice, do seu jeito, também, Acho que as duas erraram em se demorar tanto por aqui. Bem... é difícil julgar. A vida não é fácil para uma mulher como Eunice, sem qualificação e desempregada. O que faria? Poderia catar papeis, talvez. Ela se sentia muito interrompida e encarcerada.
Acompanhei cheio de orgulho e emoção quando Mabel começou a ensinar a Eunice algumas coisas. Acho que foi depois que a mãe de Eunice morreu. A menina pegava uns livros na pilha, que já tinha formado uma pequena torre no canto perto da janela, e lia com e para a mãe. Um dia Eunice leu em voz alta para Mabel um trecho que me deixou constrangido: “2 de novembro. A coisa que eu tenho pavor é de entrar no quartinho onde durmo, porque é muito apertado. Para varrer o quarto preciso desarmar a cama...". Elas pararam a leitura do dia nesse ponto porque Eunice molhou as páginas daquele livro, Quarto de despejo, com seu pranto.
Acontece que existem prisões e prisões, mas existe uma que não têm nenhuma grade e nenhuma parede. Acho que era dessa cadeia da alma que João Pedro sempre quis se livrar. Aquele garoto... João não aceita correntes. Nunca aceitou. É um milagre que Jurandir esteja conseguindo se aproximar da aposentadoria vivendo com ele neste prédio. Mentira. Eu sei por que Jurandir preservou seu emprego.
Invisíveis.
João saiu do Golden Plate para cuidar da vida fora daqui. Ele teve de se virar para arrumar dinheiro e, ao contrário do que todo mundo imaginava, não se meteu em nada ilegal. Ele vivia sempre por aqui porque, entre outras coisas, trabalhava como entregador. Horas e horas em cima de uma moto. Jurandir não se conformava, mas João não deixava que ninguém traçasse o caminho por ele. Vez ou outra rendia o pai na portaria para tirar mais um dinheiro extra. João era como muita gente por aí, como muitas que ocupam quartinhos como eu, ou seja, estão em muitos lugares, fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, mas são tratadas como invisíveis e dispensáveis.
Mabel seria médica. Imagina se ia namorar um entregador de pizza? Ela, eu sei, não ligava, mas ele achava que isso pesava. Acompanhei enquanto ela e Cacau estudavam juntos aqui. Achava que faziam um casal bonito, mas faltava alguma coisa. Faltava a labareda que vi uma vez entre ela e João. Mas como nem só de fogo se vive, vi também como ela e Cacau entrelaçaram as mãos e construíram um amor. Aquilo foi belíssimo... Mabel e Cacau... que casal poderoso eles formariam.
Sim, quartos se emocionam. Cômodos também se encantam e se escandalizam. Concreto imprime memórias. A sala contou para o quarto, que contou para o corredor, que contou para a cozinha, que me contou. Os ouvidos das paredes escutaram tudo. O que aconteceu com o filho de Luzia era fácil de entender. Principalmente para nós, que abrigamos a intimidade que julgam não estar à vista de ninguém.
Todos viram e escutaram quando Gilberto começou a chamar pela mãe e a aborrecer Camila, que não quis tomar conta da criança depois que a campainha começou a tocar e as amigas foram chegando, prometendo uma festa animada. Eunice seria naturalmente acionada por ela, mas estava muito ocupada com as panelas quentes. O que ninguém viu foi que Camila colocou o garoto no quarto da mãe o mais confortável, deu papéis para desenhar e fechou a porta, mas não a janela. Gi subiu na cômoda para alcançar o parapeito e chamar pela mãe. Ele se desequilibrou, derrubando o espelho no chão com uma das pernas, deixando ali um dos pés de seu chinelo, e o outro voou junto com o menino para a laje de cimento do pátio.
Ouvir a voz de Eunice fez minhas lembranças percorrerem todas as não crianças que passaram por aqui. João Pedro, Cacau, Mabel, Irene, Gilberto, Dadá. Pessoas que nunca tiveram a chance de ser inconsequentes na única fase da vida em que isso deveria ser natural. D. Lúcia e seu Tiago - e não só eles - tratavam Camila como criança quando era criança e igualmente depois que já não estava mais na infância havia muito tempo. É curioso reparar como algumas pessoas nesse mundo não têm direito à meninice. Quando ainda mal se sustentam em cima das pernas, são vistas como adultas; enquanto outras serão para sempre garotas e garotos. Em geral, as primeiras frequentam quartinhos como eu.
Camila abandonou um menino de quatro anos sozinho em um cômodo fechado e com as janelas abertas no décimo andar! D. Lúcia faria de tudo para que ela não assumisse as consequências de seus atos, para que a filha continuasse para sempre, eterna e irremediavelmente... criança.
Eunice permaneceu sentada na mesa da cozinha e mergulhada em seus pensamentos. A policial e um colega se aproximaram dela dizendo que queriam fazer algumas perguntas, de praxe. Eu via a silhueta de d. Lúcia atrás deles, mas de frente para Eunice na divisa do corredor. Até que o homem pediu gentilmente que ela os deixasse a sós.
A mulher perguntou a Eunice o que tinha acontecido, o que tinha visto. Ela então apontou para as panelas e os muitos utensílios espalhados pela cozinha, informando que estava ali para fazer a comida, que estava atrasada pela falta de paio, alho, cebola e louro, ingredientes que Luzia tinha saído para buscar. Por fim, falou que não tinha condições de saber exatamente o que havia acontecido na sala e no quarto.
- Mas... Luzia pediu a alguém para tomar conta do menino? Foi a senhora?
Eunice acusou o golpe. Deixou transparecer um instante de hesitação e, mais uma vez, se esquivou.
- Sim, ela pediu, mas não foi para mim. Não vi a quem, pois estava ocupada com as tarefas por aqui…
Os policiais se entreolharam. Eunice media cada vírgula que dizia. Parecia guiada por algum fantasma. Os oficiais franziram a testa e decidiram que não continuariam com o interrogatório ali. Informaram que, caso precisassem, voltariam a fazer contato para que ela fosse à delegacia.
Então o interfone tocou. Eunice atendeu e pediu licença para descer um instante. Tirando o lenço da cabeça e desamarrando o avental, ela passou pelo batente da minha porta. Sentou-se na cama por um segundo, olhando para o nada. Alguma coisa ainda mais grave acontecera e mudara nos olhos de Eunice. Eu vi, eu senti... E eu imprimi nas minhas paredes essa mudança.
(Solitária, 2022, s/p)