O AVATAR

Alto, muito alto descia a rua. Montado em mula com trote seguro e tranquilo em plena tarde de domingo preguiçoso. 

Lá se ia em direção à praça de chão de mármore, contraposto com o verdejante gramado central. 

No centro da praça, um chafariz em forma de peixe, que fazia jorrar de sua boca um fino jato de água azul anil. 

Em volta da praça, Cafés com mesas na calçada, onde pais despreocupados retiravam de seus bolsos pala- vras elegantes e jogavam fartas conversas ao ar, formando um acúmulo de letras que boiavam sobre suas cabeças até o desaparecer sem sentido. 

Na fumaça das conversas flutuavam calotas croma- das, aparelhos modernos, áudio, vídeos e nets. Pairavam no ar o bom emprego, a promoção, os lucros e juros. 

De vez em quando, surgiam lascivas e libidos em forma de "cochicho fumaça", quase imperceptível aos olhos. Senhoras de alta classe vestindo o que chamavam de alta-costura, tiravam de suas bolsas palavras cosméticas, inovações cirúrgicas e pó de modas, que faziam questão de jogar bem próximo aos olhos das amigas. 

Descia a mula a imensa rua com seu corpo de pequena mula, e, sobre ela, aquele homem alto, muito alto, vestido de abadá branco, com barba farta e sorriso largo. Em torno de si, giravam folhas e palhas. Em torno de si, o tempo pulava em festa. 

A praça estava repleta de crianças que corriam como brasinhas de matizes variadas e enchiam os olhos de colorido. Menininhas e menininhos divertiam-se com palavrinhas que os pais lhes davam, jogando-as uns nos outros, só para vê-las estourarem no corpo alheio. E ficavam rindo, riam muito daqueles que eram acertados na brincadeira. 

Às vezes corriam às mesas de seus pais pedindo de forma imponente: 

Pai, eu quero! Mãe, me dá! 

E os pais, apressados em dispensá-los, com vontade de voltar ao jogo de palavras, abriam as carteiras ou bolsas, tiravam alguns "meu pai me deu", "minha mãe compro", e despachavam os pequeninos de volta à campanha. 

Algumas mães gritavam de vez em quando: Cuidaaado filha, não vá cair! 

Fiiilho, se pega no olho machuca! Era inútil, vez ou outra se ouvia o choro de algum azaradinho que vinha dizendo: 

Mã mã mãaaae ele acertou um "pai me deu" na testa! 

Ou então, seguia-se com triste ladainha em meio a soluços intermináveis: 

- Pá... pai, eu tava brin...can..cando... aí ve... veio o menino, pegou um "mãe comprô" e... e... pluft no meu olho! 

-E você não descontou? 

-Nã... Nãaao! 

Toma aqui um "TE COMPREI" bem grande. Vai esfrega na cara dele! 

E saía a criança contente por poder voltar à brincadeira com munição maior e melhor. 

O enorme homem, da mula pequenina, chegou à praça e ajeitou suas bugigangas. Era um Alabê andarilho e trazia um saco cheio de instrumentos e artefatos místicos. 

Tomou de tambores e toava gostosa melodia infantil convocando a molecada, jogando ao ar palavras brilhantes, que, tiradas do saco mágico, explodiam no céu. 

Eram letras de artifício, que de tão reluzentes trouxeram todas as crianças da praça ao seu redor. Vinham curiosas, eufóricas, formando um cerrado saltitante em torno do homem da mula, aquela imensa árvore de tronco alvo e copado negrume, feliz e frutífero de pensamentos. 

Tamanha era a algazarra dos códigos que explodiam, que até os pais passaram a dar um pouco de atenção ao inusitado personagem. 

Diziam entre si: 

É vendedor de palavras doces! Bom para as crianças, que terão algo diferente para ver! 

Reparou como ele é alto? 

Que roupa é aquela? Estranha... 

Esta cor... é fora de época... destoa... De qualquer forma, não paravam seus jogos. Tudo seguia igual. 

A vida negritava naquela tarde esbranquiçada a felicidade dos pequeninos. 

Entre os adultos só o ser despeito crescia. 

Quando estavam todas as crianças reunidas no centro da praça, o enorme homem inclinou-se um pouco e estendeu as duas enormes mãos em forma de alguidar na direção dos pequenos, que, por encanto, depositavam na concha as palavras caras que os pais lhes haviam dado. 

As caríssimas murchavam diante dos olhos de todos até desaparecerem por completo. A enorme barba crespa e farta do imenso homem abriase em boca soltando bolas de sabão, soltando vissungos... 

Os pais ficaram confusos, já que do buraco de sua barba as palavras tornavam-se arco-íris circulares que pareciam vir do nada e em quantidades absurdas. Alguns diziam descrentes: 

- É truque! Um amigo meu faz isso, deve ter uma bolsa escondida debaixo dessa roupa esquisita, não vê como é larga? Outros se animavam em gritos e chamados que misturavam entusiasmo e azedume pelos feitos. Falavam com veneno: Agora tira uma "palavra carro", tem que ser zero quilômetro! Pra mim, uma "frase casa na praia", duplex! 

Quero ver fazer isso com as palavras de meu marido! Cả, cá, cá cá cá... Alguém havia levado um saco de pequenos despeitos afiados que passaram a ser arremessados contra os vissungos, que explodiam no ar tornando-se palavrões. 

O homem, enorme gameleira-branca, não se abalava. Fez subir um vento que misturava as letras e as tornava poesia flutuante. Depois estouravam e desciam em forma de chuva prateada arrancando exclamações de surpresa das meninas e meninos da Olá...Oiá...Oiá... praça: óia...óia... 

Em certo momento, aproximou-se um senhor com trajes finos, sapatos caros e jornal do dia debaixo do braço, parou em frente ao mago e, de forma até elegante, fez sinal para que o grande homem parasse sua apresentação, o que foi ignorado. 

Cavalheiro, como posso chamá-lo? — perguntou o nobre senhor. 

Ir. 

- Ir? Ir pra onde? 

Ir pra sempre... 

Bem Sr. Ir, não quero que me entenda mal... 

Não te preocupe, eu entendo tudo perfeitamente. 

- Bem, Sr. Ir, não quero ser indelicado, mas fato é que não poderá continuar a exibir seu espetáculo nesta praça, pois é... proibido. 

Diga de novo! Mas... explique por que me in 

Digo por que a lei o diz! 

-Se a lei diz, já foi dito. Mas acredito que a mesma não me interdiz, logo, não posso estar interdito só porque o senhor me diz! O homem ficou confuso, com olhar distante. Depois voltou: 

O senhor perturba a paz e a ordem! 

A paz não se abala, mas a ordem... Ordem de quem? - pergunta debochando sem parar a brincadeira com os mirins. 

Ordem! Ordem das coisas! responde irritado. 

Mas as coisas não dão ordem, as pessoas sim! O homem passou a achar aquela entidade que já era alta, ainda mais alta. Tão alta de barba farta que crescera a ponto do abadá, agora caído dos ombros, tornar-se mera faixa, simples ojá. 

O homem, antes brioso, precisou de instantes para se repensar. 

O gigante estendeu a mão e chamou as crianças para debaixo dela. Os pais, antes espectadores, levantaram-se com a vontade de recolher seus filhos, mas ele abriu a boca e soltou demorados contratempos no que os pais inclinaram-se e de seus bolsos caíram "palavras quinhão". 

Dos pescoços das mães soltaram-se diamantes ditongos Hiatos de ouro desprendiam-se de suas pulseiras ditongos. e iam ao chão. 

Tudo rolava contente aos pés das crianças que riam e amontoavam as palavras de riqueza debaixo dos pequeninos pés, servindo de degrau para que as cabecinhas se e encostassem à palma da mão do imenso Sr. Ir. 

As enormes mãos se enfiaram na barriga rasgando-a e fazendo um Zambiiiiiiiii. 

Abriu-se um negrume estrelado e o vento corria de dentro deste céu barriga. De lá saíram crianças magras e famintas que engoliram os pais, que comeram a mula, a praça, o ouro, e calaram tudo. 

Sobraram as crianças e o chafariz. 

Os pequenos coloriram-se nas águas e cirandaram de mãos dadas. 

E não mais juntaram palavras, e não mais envelheceram. 

(Helton Fesan; Cadernos Negros vol. 30; p.101)