Memórias

Seria fácil para um menino de onze anos com boa memória lembrar com nitidez das cores daquela segunda­-feira? Eu lembrei. Em uma família com pai, mãe e nove filhos, cinco mulheres e quatro homens, eu era o mais novo dos rapazes. Meninos caçulas são sempre protegidos, ao mesmo tempo em que precisam manter o elo afetivo entre os irmãos depois que crescem.

Para o começo da história já temos o dia, uma segunda-feira com muito sol. O lugar é um daqueles guardados na cabeça em uma pasta de arquivos essenciais à própria existência. O cenário? O pátio de uma escola particular na zona nobre de uma grande cidade foi o escolhido.

A hora do intervalo é um acontecimento único em todas as escolas. A um toque do sinal sonoro, agudíssimo, começa a festa coletiva e a permuta dos lanches. Eu era o preferido da merenda porque tinha uma tia cujas mãos fabricavam a melhor comida do mundo. Seus biscoitos trançados passados no açúcar eram os meus prediletos.

Coincidentemente, Tia Olga sempre usava tranças corridas esculpidas em seus belíssimos cabelos crespos e dizia que as tranças eram a síntese da transformação da vida. Gostava de cozinhar porque, segundo ela, o sucesso consistia em saber misturar as coisas certas na proporção devida.

De volta ao cenário da sala de aula é chegada a hora do clímax da cena. Eu estava sentado na frente, o meu lugar preferido como um garoto com miopia usuário de óculos, quando a professora pediu a colaboração de um voluntário. Eu me ofereci, como o bom menino negro bolsista, filho da faxineira gorda e simpática, a quem todos chamavam carinhosamente de tia Edna.

Levantei animado, arrumei as calças do uniforme (feitas pela mamãe) e despenquei bem no meio da sala. Fugiu dos meus olhos instantaneamente a claridade habitual do mundo sempre branco daquela escola de meninos ricos onde eu só estava porque, em minha opinião, alma e inteligência vão além de qualquer cor.

Em um passe mágico, voltei a enxergar com nitidez e percebi estar em um outro ambiente composto por uma gelada cama de hospital, após um desmaio súbito decorrente de fraqueza por anemia. Nunca gostei de comer verduras e legumes. O fato é que esta foi a primeira vez em que "me deu um branco", experiência que beira a perda total da identidade, algo que, infelizmente, algumas pessoas sentem a vida inteira sem perceber.

Internado naquele hospital público onde as inúmeras páginas do sofrimento físico descortinaram-se pela primeira vez diante dos meus olhos, eu comecei a investigar. Como um menino de óculos assumido, sempre sonhei em ser detetive. Mesmo nas minhas mais incríveis fantasias, nunca descobri porque pela janela de alguns hospitais é possível enxergar meninos jogando futebol. Talvez Deus não goste de ver meninos doentes, e com essa paisagem envie a cura e a rápida recuperação. Talvez seja mesmo porque o Brasil é o país do futebol.

Ainda na cama fechei os olhos lentamente e senti o meu corpo levitar por um segundo. Ao abri-los, surgiu outro cenário, no lugar que àquela altura eu considerava o mais precioso do universo: o colo de meu pai. Seus braços negros, enormes, como que revestidos de aço, sempre envolveram o meu corpo com carinho. Ouvi ao longe a voz do simpático médico com cara de Papai Noel:

– O menino terá que ficar de repouso em casa.

A sentença trouxe uma imediata sensação de alívio. Para completar a alegria, meu pai conseguiu dispensa no trabalho para ficar comigo a tarde toda. Era mesmo um sonho. Poderíamos assistir juntos à sessão da tarde. A realidade não perdeu para a fantasia naquela segunda-feira com cara de domingo, dia em que pude desfrutar de um tempo a mais na companhia inenarrável do meu paizão.

Esta história tem um sentido especial e por isso resolvi separá-la. Do baú das minhas memórias, exatamente na ocasião em que acabei de chegar da maternidade com o meu herdeiro nos braços. Meu tão sonhado primeiro filho. Ele já está diante do mundo de olhos abertos. Respirando novidade, tenta entender a realidade com seus olhos negros e profundos. Quero ser para ele um espelho negro à altura dos seus sonhos mais coloridos.

Depois de algumas longas horas nesta madrugada inesquecível, coloquei o infante no berço e tombei em minha cama, móvel antigo que herdei da vovó. Ansioso, tentei acordar a minha esposa como o menino ansioso e inebriado pelas surpresas que sempre fui.

– Acorda, amor! (Ela continuou a dormir e esboçou um sorriso de sonho). Eu só queria dizer que aquela pérola negra sonhada desde o dia do nosso primeiro beijo está nos olhos do menino!

De fato a felicidade estava ali, traduzida na nossa realidade de lutasdiárias para enfrentar o medo e a inércia do mundo cheio de desafios lá fora, No seio das famílias negras, com lugar para inúmeros filhos do corpoou do coração, aprendemos a conviver com nossas misériase farturas, simplesmente porque sempre épossível colocar mais água no feijão, temperar e sorrir ou chorar e seguir em frente. Os nossos velhos não morrem na amnésia dos asilos luxuosos.

Estou aqui deitado na cama que foi da vovóLina imaginando a cena final deste capítuloda minha memória. A vovó sempre preservou suas memórias, sempresoube como terminar suas histórias com maestria. Ficoaqui a tentar tomar posse das minhas heranças.

Sigo a crer nos meus espelhos mágicos. Uma coisa é certa: a nossa ancestralidade continuará na memória dos nossos descendentes enquanto pudermos lembrar e levar adiante os seus princípios.

– Seja bem-vindo, Luther!

(Espelhos, Miradouros, Dialéticas da percepção, 2011).