O Sócrates africano*

Carolina Maria de Jesus 

No ano de 1937, o meu avô adoeceu-se. Queixava-se que sentia dores nos rins. Mas naquela época a medicina estava no embrião. Os que adoeciam não tinham possibilidades para prolongarem suas existências. Os filhos reuniram-se procurando auxiliá-lo, nos fins de sua estadia aqui na terra. Várias pessoas iam visitar o enfermo que ficava contente dizendo:

– Se eles vêm me visitar, é porque gostam de mim. É que eu soube viver! Não fui mau elemento. Não prejudiquei o próximo. Ele estava fazendo um exame de consciência para ver se descobria algumas falhas para pedir perdão ao nosso Deus, se foi injusto. Já que o meu avô estava morrendo, ele era autoridade suprema naquela casa. Quando ele falava, nós ouvia-o com todo respeito porque, quando ele falava, nós aprendíamos alguma coisa. Ele não falava banalidades. Ele dizia: é tão bom morrer. Mas eu não tenho permissão para vos relatar o que vejo para não lhes gerar confusões mental.

Minha mãe dizia que ele estava delirando. Tinha momentos que ele ficava quieto, e nós pensávamos: ele morreu! E nós as netas, que éramos dez, invadíamos o quarto gritando: – Não morre vovô: não morre vovô. Se ele estava dormindo despertava e nos dizia: – Meus filhos, já fazem nove anos que estou devendo um rolo de arame para o senhor José Rezende. Devo-lhe trinta mil réis. Vocês paga-o para mim. O homem deve ser honesto.

Quando o vovô silenciou-se o meu tio Antonio acendeu uma vela e pegou um crucifixo, e pôs nas mãos do vovô, ele abriu os olhos e nos disse: – Quando a minha mãe morreu, eu, sou o seu filho mais novo, sou o caçula, pus a vela nas suas mãos. E agora o Antonio que é o meu caçula põe a vela nas minhas mãos. Um filho não deve auxiliar o seu pai a morrer. Enfim tudo o que fazemos pagamos. Eu era menino, queria brincar com os meus primos que eu não os conhecia porque eles eram da roça. E queria ficar perto do vovô para ouvi-lo falar.

Os homens ricos iam visitá-los, e ficavam horas e horas ouvindo-o. E saiam dizendo: – foi uma pena não educar este homem. Se ele soubesse ler, ele seria o homem. Que preto inteligente. Se este homem soubesse ler poderia se o nosso Sócrates africano. Mas o Rui Barbosa pôs uma lei no Senado pedindo para incluir os negros na escola porque vai ser difícil uma classe culta, e outra inculta, senão vai gerar confusões, choques ideológicos. O analfabeto vai ser apenas um. Não acertará as observações se for admitido como empregado. A sua cooperação e participação é mínima. Agora se ele for alfabetizado a sua cooperação será a máxima. O Rui Barbosa dizia: que era e é preciso educar e esclarecer os predominadores. Ele, sendo instruído, há de querer instruir os seus compatriotas. Um empregado bem instruído poderá substituir o patrão nos casos de emergências.

O Oswaldo Cruz também dizia: que temos que preparar os nossos homens e não importar os homens preparados. Antigamente o homem, para educar-se tinha que ir para Coimbra. Então educa-se uma minoria, quando, é o dever da pátria, educar a maioria.

Era assim, depois que eles ouviam o voto tinham algo para falar reprovando as discriminações. Era necessário uma modificação social. Os homens que iam visitá-lo eram o Sr. Manoel Soares, o Dr. José da Cunha, o Sr. José Afonso, o Sr. Manoel Nogueira. Eram os homens que liam o jornal, o Estado de São Paulo, e sabiam o que ocorria no mundo. Com os ricos espalhando o quanto que o vovô era inteligentíssimo, duplicou as visitas, todos queriam ouvir o vovô falar. E ele estava fraco. Estava morrendo, ia deixar este mundo para sempre. Os meus tios diziam: – Nós nunca apanhamos. Ele era bonzinho. Os filhos não haviam herdado nem um terço da inteligência do vovô. A minha mãe era a única que poderia herdar o ceptro intelectual do vovô. Mas a minha mãe não aprendeu a ler, enquanto português predominou no Brasil, o negro foi tolhido. As escolas não aceitavam os pretos. Mas o Rui Barbosa dizia que eles agindo assim implantariam o preconceito racial no Brasil, que um país com preconceito, é um país de raças medíocres. O Rui Barbosa dizia que deveriam conservar o negro na lavoura, que o Brasil deveria e deve ser apenas um país agrícola. Que é a agricultura que enriquece um país. Quando o Rui disse que o Brasil dá o trigo, foi criticado. E os portugueses apelidaram o Rui, de “o Dr. sabe tudo”. Porque o Rui dizia que os portugueses amavam o Brasil somente quando tinham o braço gratuito para trabalharem e enriquecê-los. Que após a libertação dos escravos eles abandonaram as fazendas infiltraram-se no comércio. Que o braço português na lavoura é contraproducente. Era uma confusão tremenda ao redor da casinha do vovô. Era quatro águas, mas coberta com capim. Só os ricos é que podiam ter casas cobertas com telhas. Os ricos iam visitá-lo porque compreendiam-no, os analfabetos iam por curiosidade. Mas aquelas visitas deixavam-no felicíssimo. Ele dizia revelando vaidade: os brancos e os pretos vêm me visitar. É a compreensão que já vem chegando e as raças que estão unindo-se. Creio que amanhã haverá mais luz e mais compreensões então não haverá desídia. O povo vão deixando de olhar a cor e olhará apenas as qualidades. Enquanto vivi procurei e esforcei-me para ser um bom homem e estas visitas que recebo é o comprovante que eles me compreenderam.

E eu pensava: O que será o Sócrates africano? Será que eles estão xingando o vovô? O vovô é bom, não faz mal a ninguém. Quando morre alguém, ele é quem reza o terço. Quando não chove, ele reza para chover. Ele diz que a reza é o modo dos homens conversar com Deus.

Fui perguntar a minha mãe: – Mamãe! O que é Sócrates? Minha mãe estava nervosa, respondeu-me: – Vai amolar outro; vagabunda! Pensei: ela não quer me explicar, mas um dia hei de saber o que é Sócrates. Porque tudo o que eu presenciava e não compreendia eu guardava dentro da minha cabeça para esclarecer posteriormente. Compreendi que deveria armazenar as ocorrências na minha mente. A minha cabeça tem que ser semelhante a um cofre, o vovô chamou Siá Maruca, a mulher que convivia com ele, e disse-lhe:

– Maruca! Já completou doze anos que você convive comigo. Eu tive apenas duas mulheres na minha vida. A minha esposa, e você. Nestes doze anos que você conviveu-se comigo, você me respeitou. Te agradeço a tranquilidade que me proporcionaste. Me auxiliou a viver porque cuidava de mim. – Os profetas diziam: que se uma mulher conviver com um homem sete anos, ele tem o dever de desposá-la.

– Se a senhora não tiver nojo de um homem prestes a ser um defunto, eu peço-a: – Quer casar-se comigo? Siá Maruca sorriu, exibindo os seus dentes branquíssimos – Pois não, Senhor Benedito, o prazer é todo meu. Porque sempre foi o meu sonho ser a sua esposa. Mas esposa legítima. Creio que lhe devo inúmeras obrigações. O senhor foi o meu protetor nestes dias que vivi neste mundo. Eu vou sentir muita falta do senhor e também muitas saudades. O vovô reuniu os filhos e os netos para dizer-lhes que ia casar-se com Siá Maruca. E o casamento teria que ser realizado logo porque ele poderia morrer a qualquer momento. Minha mãe foi procurar o padre Pedro, para casá-los. E os comentários dominou a cidade. – Então eles não são casados? Mas a Siá Maruca é tão séria. Não dança. Não sai de casa. É uma mulher com noção de responsabilidade. E tão sensata! A Siá Maruca vestiu o vestido novo, penteou os cabelos, calçou os chinelos de veludo e perfumou-se. Quando o padre colocou as mãos cadavéricas do meu avô nas mãos da Siá Maruca, ela chorou. O padre confessou-o, casou-o e deu-lhe a estrema unção. O vovô disse: graças a Deus, já estou preparado para deixar o mundo. Pediu: se eu morrer, não esqueça de colocarem este rosário nas minhas mãos. Foi de minha mãe. Quero levá-lo para ela. Ele olhava a Siá Maruca e disse-lhe: sempre gostei de olhar o seu rosto, é o rosto da minha namorada e agora a minha esposa. Empreendem uma viagem de lua de mel, mas no nosso casamento eu vou viajar sozinho, vou viajar para a eternidade. O que será que estará a minha espera do outro lado. Não adianta ter medo de morrer porque temos que morrer mesmo. O mundo não é nosso. O homem passa por aqui. Siá Maruca chorava dizendo: creio que sou a única noiva que se casa sabendo que daqui uns dias vai ficar viúva. Vou ter que usar o vestido preto. O vovô pediu: não é preciso vestir o luto. O luto está é na alma, na saudade e no coração.

Uns dormiam, outros ficavam acordados vigiando o vovô quando ele disse: que desejava rever o meu tio Joaquim, que estava desaparecido há vários anos. Que luta! Nós, que desejávamos satisfazer-lhe todos os desejos, ficamos apavorados por não saber onde é que poderíamos localizar o tio Joaquim – “o Tiobem”. Mas, uma vizinha, por nome Dona Maria treme-treme, por causa de suas mãos que tremiam, diariamente, nos disse: que tinha possibilidades para fazer o Tiobem aparecer. Que deveríamos comprar uma peneira virgem, uma toalha virgem e um maço de velas para ela responsar com o Santo Antônio. Que no prazo de sete dias nos iríamos saber notícias do Tiobem. E o vovô nos pedia para não roubar que nossa família não tem ladrões. Que o homem pobre que rouba se empobrece muito mais. O ladrão é renegado na sociedade, que eles são impiedosos. Que o ladrão é um vagabundo que tem preguiça de trabalhar. Que deveríamos adotar a honestidade como o nosso brasão. Os pretos analfabetos iam visitá-lo, saiam dizendo: “somente os homens que sabem ler é que podem compreender as palavras do Sr. Benedito”. Todos os dias circulava um boato – o Sr. Benedito morreu! E a casa superlotava-se. Os que iam visitá-lo deixavam dinheiro para nos auxiliar nos gastos. Eu pedia, rezava, implorando ao bom Deus para não deixar o vovô morrer. Mas ele estava já bem velho, oitenta e dois anos. Quando completou sete dias que a Dona Maria treme-treme nos havia dito, chegou uma carta de São Paulo. Era do meu tio, o Tiobem, nos relatando que havia sonhado com o vovô que estava despedindo-se dele, dizendo-lhe que ia empreender uma viagem. Que é uma viagem que todos haverá de ir um dia. Ele não sabia explicar se era um sonho ou se havia visto mesmo o vovô. Não compreendia, porque no sonho o vovô era mocinho, bem jovem. Que ele não poderia ir visitá-lo porque estava na penitenciária. Os tios comentavam: – então, o mano Joaquim está lá em São Paulo! – Eu logo vi que ele ia longe. Não é idiota igual a nós. Ele tem coragem de enfrentar o mundo. Eu ouvi dizer que lá em São Paulo todos arranjam serviço. Que os pobres e os ricos se confundem nos trajes. O homem que não trabalhar lá em São Paulo é porque é vadio mesmo. São Paulo é um estado que dá condição ao seu povo para viver. Não se vê paulistas andarilhos. Os homens ricos de São Paulo fazem fábricas para os pobres trabalharem. São Paulo é semelhante a uma gaiola que prende o seu próprio povo. O único estado do Brasil que é pai dos seus filhos é o estado de São Paulo. Dizem que todas as cidades do estado de São Paulo são calçadas. Já os outros estados, Minas, Goiás, Espírito Santo, Norte, Estado do Rio são os estados madrastas. Não vê os nossos mineiros ricos. Ainda têm as mentalidades atrasadas, que guardam o dinheiro dentro do colchão. Já os paulistas guardam o seu dinheiro nos bancos para render juros. O estado de Minas tem somente a fama de rico. Mas é uma riqueza que nós não vemos. Não é visível. É uma riqueza fantasma. É uma riqueza carochinha. – Era uma vez um estado rico! Creio que todos os estados do Brasil só ficarão adiantados, quando utilizarem São Paulo como o seu figurino.

As tias faziam projetos. Depois que o papai morrer, eu vou para o estado de São Paulo. E o mano Joaquim arranja serviço para mim, na penitenciária. Foram procurar a Lina, uma preta que sabia ler. Ela leu a carta para o vovô ouvir. O meu tio Candinho era o mais falador, o relação pública da família. Resolveu consolar o meu avô dizendo: – O senhor pode ficar tranquilo porque o tio Bem está muito bem lá em São Paulo. Ele é muito inteligente está empregado na penitenciária. “O meu avô disse-nos. – Vocês estão enganados. Ele está bem mal. A penitenciária é o local onde ficam os criminosos. Coitado do meu filho! Oh! Exclamamos. E cada um interrogava a si próprio: – O que será que ele fez! E começaram a falar nas péssimas qualidades do meu tio. Quando o vovô falava ninguém lhe contradizia, nem os doutores. Ficou comprovado que a mulher sabia responsar mesmo. Já estava bem velha e ninguém procurou aprender com ela como é que responsa. Eu ficava sentada ao lado do meu avô. Siá Maruca não deixava o vovô sozinho, acariciando suas barbas e os cabelos e dizendo-lhe: – o Sr. é tão bonito. E o vovô dizia: Hum. hum. Mas, não sorria. Quando os rins doíam ele desmaiava. Quando lhe diziam:

– Sr. Benedito porque é que o sr. não procura um curandeiro. Isto no sr. pode ser feitiço. – respondia: – Eu não creio no curandeiro. É os meus órgãos que já estão fracos. E já é hora deste relógio chamado coração parar.

Dia 27 de agosto de 1927 o meu avô faleceu. Eu ficava olhando o seu corpo gélido dentro do esquife. Já que não ia vê-lo. Olhava os seus lábios finos. O seu nariz afilado e a testa larga. Foi o preto mais bonito que já vi até hoje.

Nós levamos o cadáver a pé até o cemitério. Quando eles colocaram o esquife na sepultura, eu jurei que haveria de saber o que era ser o Sócrates africano. Porque eu não queria que ele tivesse o nome impróprio para a sua pessoa. Ele não devia a ninguém. Nunca foi preso. Não brigava. Não bebia. Dizia que o homem deve estar sempre normal para saber conduzir-se. Era o meu dever defendê-lo, porque o vovô plantou lavouras para nos criar. Ele não comprava roupas novas. Usava as roupas velhas que ganhava dos ricos. Guardava o dinheiro para comprar remédios para os netos. Para mim, ele comprou um remédio para verme. O tiro certo. Que remédio ruim. Ele plantou pés de laranja. Nos levava para catar gabirobas, araticum, pitanga, jatobá e o veludo. Contava histórias para nós. Pensava: o vovô sim! Ele é que é um homem. Só depois que criou os filhos é que morreu.

Eu odiava o senhor José Afonso por dizer que o vovô seria o Sócrates africano se soubesse ler. Mas não podia xingá-lo, porque ele era o presidente de Sacramento e os que xingavam o presidente de Sacramento iam presos, e apanhavam. Pensava: se o vovô fosse branco e rico o senhor José Afonso havia de considerá-lo. Mas o vovô era preto e o preto não é o dono do mundo. E fui falar com a minha mãe.

Mamãe! Porque é que Deus não fez diversos mundos e poderia dar um mundo só para os pretos, outro para os brancos e outro para os amarelos. Porque viver os pretos, os brancos e os amarelos num só mundo? Quando aprendi a ler procurei saber o que era Sócrates. E deixei de odiar o Sr. José Afonso.

E o meu tio que estava na penitenciária, não procuramos saber o que ele havia praticado. Fiquei feliz em saber que o meu avô morreu ilibado. O seu nome Benedito José da Silva e tenho orgulho de acrescentar que ele foi o Sócrates analfabeto. Era impressionante a sapiência d'aquele homem. Eu tinha a impressão que o meu ilustre avô era semelhante a uma fita, unido a família como se fosse um bouquet de flores. Não havia desidencia. Predominava a união. Enquanto o vovô esteve vivo, a sua casa parecia uma assembléia onde os predominadores discutiam as falhas do nosso povo. Se naquela época a nossa população era: a maioria analfabeta. E a minoria alfabetizada. Era um povo sem luz mental.

(In: Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, 1994, p. 190-196)

Nota

* A presente versão apresenta algumas correções em termos de acentuação e pontuação se comparada à transcrição presente no volume Cinderela negra, organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine. Demais desvios da norma restam mantidos a fim de preservar a escrita original. Outro detalhe a reparar: na primeira linha do texto, a autora refere-se ao avô como tendo adoecido em 1937... E, num dos últimos parágrafos, afirma: “Dia 27 de agosto de 1927 o meu avô faleceu”.