Entre 3 mundos

(excerto)

 

Qual? – Sol perguntou, mostrando-me dois vestidos.

 

Eles são quase iguais – comentei, já esperando a reação da minha amiga. Ela era apaixonada por amarelo. Se algum dia nós a encontrássemos sem pelo menos algum detalhe dessa cor, seria grave.

 

Sol era pequena, tinha o cabelo ondulado e loiro escuro, uma franjinha que cobria a testa e era branca. Às vezes vinha com algumas crises de se achar gorda, mas eu considerava seu corpo ótimo. O nome dela era Sofia, mas foi apelidada de Sol, e a gente costuma brincar que era por dois motivos: primeiro porque é a maior coisa amarela que existe e segundo porque a baixinha adora ser sempre o centro das atenções. Não que ela gostasse desse segundo motivo, mas acho que não tem muito como argumentar.

 

Foi o que eu respondi em todas as mil vezes em que ela perguntou isso – Nina revirou os olhos. Nina também era apelido, não de Marina, como todo mundo pensava, mas de Antônia. Também não adianta me perguntar por que Nina era apelido de Antônia, ninguém sabia direito. A teoria mais aceita era a da evolução de Antoninha (quando ela era bebê) para Toninha (na infância) até chegar em Nina.

 

Ela era minha colega de quarto desde que entramos no colégio, o que somava nove anos de convivência. Nina era alta, tinha o cabelo um pouco abaixo dos ombros e cacheado (o mais lindo que já havia visto) e a pele negra.

 

Eu não era tão baixa quanto a Sol nem tão alta quanto a Nina, estava no meio das duas. Meu cabelo era um pouco menos cacheado do que o da Nina, e a minha pele era o que as pessoas costumavam chamar de “morena”, mas eu me identificava como negra da pele clara desde que o grupo do movimento negro da escola – do qual a Nina fazia parte – apresentou um teatro sobre como expressões do tipo “pardo”, “moreno”, “marrom bombom” são usadas pela sociedade para evitar “negro” ou “preto” – como se isso fosse um xingamento, uma ofensa – e, considerando a nossa história escravocrata, fica fácil entender por que muitos pensam assim. Depois dessa apresentação, comecei a reparar como era desconfortável usar o termo negro, enquanto chamar alguém de branco era supernatural. No fim das contas, fiquei bastante satisfeita por ter mudado a forma como eu me via – e Nina também ficou feliz por seu grupo ter atingido vários alunos do colégio.

 

Nina, Sol e eu éramos muito unidas, como irmãs. Sol havia se juntado a nós fazia dois anos. No oitavo ano, ela – com todo o seu gênio forte – teve alguns problemas com a sua colega de quarto. Ninguém sabe o que aconteceu, muito menos como ela conseguiu mudar.

 

No 1º ano do Fundamental, o Colégio Ruit nos divide em duplas e trios depois de um teste de afinidade – pelo visto, não funcionou com a Sol e sua ex-colega – e assim ficamos até a formatura. Agora o que a menina fez vai ser para sempre um grande mistério. Até porque ela nunca comenta mais do que “foi uma coisa boba de oitavo ano”.

 

Apesar de a circunstância não ter sido boa, eu gostei de ter uma segunda colega de quarto e ter que me mudar para um dormitório maior. Sol podia ser a baixinha mais reclamona do mundo, mas era uma das melhores pessoas que eu conhecia.

 

(Entre 3 mundos, p. 16-17)

 

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