Enterrei meu marido e amei
(Fragmento)

Jeovânia P.

Acordei, hoje é o melhor dia da minha vida. Poderia ter sido ontem, mas não, é hoje. Pois, acordei livre, sem aquele mal cheiro, aquele troço desengonçado ao meu lado e a certeza de que nunca mais terei de suportá-lo.

Vou organizar as coisas, preparar a feijoada, comprar umas cervejas, pôr no congelador, depois ir pro enterro, quando ele acabar, é que começa a festa. Um feijãozinho preto com charque, farofa, couve, arroz, é preciso comemorar quando a vida nos dá uma nova chance de viver.

Eu era muito menina e pobre, e vivia sofrendo na casa dos meus pais, achava que casando, ia sair de casa e ter uma vida melhor, que nada. Porrada veio dobrada, e junto veio abusos psicológicos, sexuais, filhos, aprisionamento em casa, fome e mais cacete pra ficar calada. ‘Tá reclamando de que?’ dizia ele, pouco importava se meu braço tava quebrado, a panela vazia e a camisa dele borrada de batom, eu deveria estar sempre, com a casa limpa, as crianças quietas, arrumada com aqueles vestidos rasgados e um sorriso no rosto. Era o mínimo que ele merecia, conclamava ele.

As pernas prontas e abertas para os momentos que ele assim o quisesse, em silêncio, que quem geme é puta...

(In: Escrituras negras V: axé, liberdade, axé, 2024, p. 32-33)