O enjeitado

Quando os livros que nos remete a velha Europa não são recordações de velhas idades; quando depois de nos ter feito aborrecer os godos, os vândalos e os condes do feudalismo, hoje só nos mimoseiam com vândalos e godos, e feitos do feudalismo; quando depois de tantos sermões contra as cruzadas, que tantos sermões tiveram em seu favor, Walter Scott e penas, senão de igual pulso, pelo menos de avantajada fama, nos aquentam nossas imaginações com os heróis da Palestina, custará a crer que nos apresentemos ao público cem tão singelas narrações; mas nós, cuja vida é de ontem, cuja história é toda contemporânea, cujos anais ainda não estão escondidos no pó de velhos cartapácios enterrados no fundo das bibliotecas, contamos só o que vemos e ouvimos, emprestando-lhe apenas alguns vestidos. É certo que também temos nossas tradições, nosso calendário também cheio de feitos heróicos de acrisolado patriotismo, cada pedra de Pernambuco nos prestaria matéria para um poema; as arriscadas viagens dos paulistas a nossos sertões, cada uma formaria, sem mais atavios, um romance; porém, faltam-nos dourados salões, subterrâneos imensos, portas de segredo, altos torreões dominando léguas de campinas e meias pontes levadiças, vassalos e pajens e toda a magna comitante caterva, cujas descrições enchem páginas e páginas, e que hoje são da essência. As magnificências dos altos barões e poderosos senhores não chegaram até nós; nossos encontros são de pigmeus, em vista daqueles em que figuraram Saladino, Filipe e Coração de Leão.

A natureza é grande entre nós, suas infinitamente variadas cenas prestam-se a infinitamente variados episódios; mas o sublime da arte agora não é esse, são necessários acontecimentos horríveis e inesperados, homens sem tipo na natureza, bruxas, fantasmas, espectros; fora deste caminho não há salvação. Ora, isto não temos nós.

E para aqueles que escrevem na língua portuguesa ainda há outra mania, é necessário que as palavras sejam daquelas de que já não há memória viva.

"O ponto está que o diga algum daqueles

"Que Craesbeeck imprimiu........."

Eis aí atingido o cume da perfeição, porque aliás é português mascavado, e sob a autoridade dogmática infalível de um concílio chamado Sêneca, é imoral e excomungado com certeza de ir para o inferno aquele que não diz imigo e mor, em vez de maior e inimigo.

Nós, humilde rabiscador de papel, que já lemos as Décadas e Lucena, e que ainda às vezes nos recreamos com Sá de Miranda, Bernardes, Camões e Ferreira; e que apesar disso entendemos que não é para desprezar a linguagem de Garção, Diniz e Ribeiro dos Santos, e alguns outros, que entendemos que a construção de nossa frase de hoje não está obrigada a sujeitar-se em tudo e por tudo à construção de Palmeirim e Clarimundo, tendo achado em Camões muitos termos que a língua de antes não tinha, e não sabendo por que razão o povo romano não daria a Virgílio e Varo a mesma licença que a Cecílio e Plauto, quando as palavras são como as folhas, que umas caem e outras nascem, iremos satisfazendo nossa vontade de escrever sem importar-nos com o que dizem esses:

"............. Letrados

"Licurgos e Ulpianos de palavras."

E enquanto aparamos a pena para mais grave discurso, confiamos aos nossos leitores o seguinte fato:

Em uma sala decentemente mobiliada com todas as demonstrações de mais que honesta abastança, junto a um piano aberto, se achava sentada uma senhora, cujas feições mostravam todo o verdor da mocidade, conquanto bem se divisasse que já não estava próxima à infância. Trajava roupas pretas, o que, e seu cabelo negro e luzidio, contrasta vá agradavelmente com a alvura de sua tez. Suas faces não estavam de todo descoradas, mas seus olhos grandes à flor do rosto tinham certa languidez que indicava sofrimento, deixando bem ver que outrora foram animados por vivo fogo. E quem a visse diria logo que não era uma donzela; a firmeza de sua posição e a maneira por que fitava seus olhos facilmente o deixavam perceber. O completo de suas formas fazia sobressair a sua languidez: dir-se-ia que aflita buscava cavalheiro que lhe desafrontasse seus agravos, e cada qual desejaria ser aquele que por ela enristasse a lança ou desembainhasse a espada. Sobre a estante estava aberta uma dessas músicas suaves que tanto tocam o coração, dando sinais de que fora tocada; mas as costas um tanto voltadas, um lenço na mão, os olhos como que úmidos, e o peito um pouco palpitante, faziam ver que ela sentia alguma viva emoção mais forte do que a que lhe podiam produzir os harmoniosos sons do instrumento. A seu lado havia fuma cadeira vazia, e na sala, a passos largos, um homem, ao parecer, de trinta anos.

— Um pai! mas dai-me um pai! dizei-me quem ele foi, dizei-me quem foi minha mãe, dizei-me quem sou, dizia Júlio, o sujeito que passeava na sala. Não conhecer meus pais! dever minha existência provavelmente a um crime! ter de expiá-lo e ignorar qual seja! é um inferno, um verdadeiro inferno. Não, eu não hei de consentir em prender uma existência à minha; não a hei de levar de rojo comigo, não a hei de fazer sofrer tormentos que só a mim foram legados, nunca, nunca; ninguém sacrificarei!

— Mas se vossos pais foram criminosos, vós o não sois, sois inocente.

— Eu, inocente! Sim, é essa a doutrina do mundo. Se meus pais fossem conhecidos, se suas ações bem merecessem da pátria e dos homens, se fosse algum nome ilustre, eu grilaria bem alto, exigindo que uma parte de sua consideração recaísse sobre mim Mas, se forem criminosos, rejeitarei a vergonha de suas culpas, lançarei de mim a infâmia de suas ações, negarei mesmo que sejam meus pais, desmentirei a quem o asseverar. Egoísmo do século! esta doutrina é tua, só por nós e para nós; eis aí os teus princípios destruidores, que tantos males têm trazido à humanidade.

— E que certeza tendes de que vossos pais foram criminosos?

— Que certeza? Talvez causas houvesse que os obrigassem a rejeitar-me, se bem que inocentes; porém, que raros são esses casos! E esta mesma incerteza não é ainda um tormento? Que orgulho não é para um filho dizer: aquele é meu pai! E eu não o posso dizer! E quando me disserem: és o filho do crime, não poderei negá-lo; quando me disserem: teu pai foi um malvado, não poderei dar um desmentido: quando me disserem: tua mãe foi uma mulher vil, não poderei dizer o contrário... E, talvez, fossem inocentes! talvez razões poderosas... que sei eu? Emília, este tormento é o maior dos tormentos.

— Quando tantos se ufanam de não conhecer seus pais! de, como dizem, dar princípio à sua geração.

— Moral corrompida é essa, moral adotada por aqueles que não têm outro meio para justificar-se, moral com que o mundo doura muitas existências que devera marcar com o ferrête da ignomínia! Não façais cair nos filhos as culpas dos pais: oh! eu também o não quero, mas estigmatizei o crime em todas as suas partes em todas as suas conseqüências; tirai-lhe toda a ocasião de poder ufanar-se um dia de suas ações, fá-lo-eis menos freqüente. Não, debalde outros se vangloriem, eu nunca o poderei sofrer tranqüilo.

— Mas não me tendes dito mil vezes que viveis só para mim? Pois para mim vivei; sejamos ambos felizes. Tremeis pelo que dirão de vós? não vos importe, sede só meu.

— É verdade, Emília, só para vós, mas por isso mesmo, porque vos amo mais que tudo, é que não posso consentir em unir-me a vós sem que primeiro saiba quem sou e que posso ser feliz. Desde que tive suficiente conhecimento que minhas indagações neste sentido não tem parado um só momento. Esta idéia está tão fixa em minha alma, que dela depende todo o meu porvir; enquanto me não for revelado este segredo não posso feliz, ninguém será feliz comigo. Não sereis vós aquela que eu ei de sacrificar. Ouvi-me, Emília. O meu amor não é uma paixão vil, um vil desejo de satisfazer os sentidos; o meu amor é um sentimento de admiração e profunda estima por vós; parte do fundo do meu coração, é uma necessidade de minha alma. Amo-vos, não por mim, mas por vós; e porque vos amo queria ver-vos feliz, mais feliz que todas as mulheres; queria pôr a vossos pés pompa, grandeza, riqueza... um trono, se tivesse um trono; queria conhecer vossos mais pequeninos desejos, vossos menores caprichos, queria poder satisfazê-los todos, queria que nunca tivésseis um pensamento que logo por mim não fosse adivinhado e realizado... queria dar-vos céu na terra. Não o posso fazer. Meu coração existe cheio de vós; porém, um outro pensamento vive também na minha alma: — Meu pai, minha mãe. Este pensamento cada dia deita mais profundas raízes, torna-se mais, rouba-me mais a atenção. De envolta com o nome de Emília, esse pensamento grita: — Meu pai, minha mãe. De noite, de dia, na solidão, entre a mais numerosa companhia, no meio dos prazeres mais estrondosos, uma voz me persegue: — Meu pai, minha mãe. Espectros me afiguram, visões se me antolham; cada homem me parece ser o que procuro, cada mulher julgo ser minha mãe. Corro, indago, examino, busco; a ilusão foge, e me acho só, ou no meio de pessoas indiferentes, a quem minha sorte nada importa. É este o meu estado, meus dias correm muito longe da ventura. Não, eu não vos poderia fazer feliz. Amo-vos, Emília; e porque vos amo, não posso sacrificar-vos. Deixai-me procurar... procurai também; dizei-me quem são meus pais, dizei-me quem sou; dizei-me que a minha existência não é um crime... então me poderei entregar todo ao amor; então poderemos ser felizes.

— E não suspeitais a que classe pertenceis? Não tendes indícios que vos possam guiar?

— Poucos. Uma única idéia tenho clara: é a do lugar onde se passaram os primeiros dias de minha infância. Uma casa térrea, que não tinha casas na vizinhança; suas paredes eram brancas; na frente tinha uma varanda, na qual havia à direita um quarto. Toda a disposição interior dela ainda se me figura vivamente. Fora havia um campo coberto de verde grama; à direita duas copadas mangueiras; à esquerda alguns cambucazeiros; e no fundo um morro de subida doce, plantado de mandioca até quase ao seu cume. Dali descia um regato, que serpeando por entre os cambucazeiros, ia perder-se em um rio que passava pela frente do campo. Vivia-se ali com abundância, mas não com luxo. A família não era numerosa, constando de poucos escravos, alguns meninos, de um homem e uma mulher. Que gente era esta? que relações tinha comigo? Sei que não eram meus pais, e nada mais. Como deixei essa casa? onde era ela? por onde passei? Tudo ignoro. Achei-me nesta corte em companhia de um homem que vivia só com um escravo. E quem era este homem? Nunca pude saber mais do que, que fora um honrado e rico negociante, retirado do comércio, chegado da Europa pouco tempo antes daquele em que foi para sua casa, e onde exerceu a sua profissão por largos anos. Não era portanto meu pai; teria comigo algumas relações de parentesco? Eu o ignoro; ninguém me soube mesmo dizer nunca donde ele era, a que família pertencia, quem eram os seus parentes. Tratou de mim como se fora meu pai, à exceção daquelas carícias que só os pais sabem empregar. Fez-me entrar em um colégio, e dar-me a educação que tive; passou-me depois para uma casa de comércio, e por sua morte repartiu seus bens comigo e com as casas de caridade. São estas as minhas únicas recordações.

— Mas essa casa... se a pudésseis encontrar... os seus moradores. . .

— Tenho procurado tudo; tenho corrido todos os arrabaldes e recôncavos; ainda até hoje a não encontrei. Esse campo, essas mangueiras, esses cambucazeiros, não os tornei mais a ver. Parece que a terra os sumiu, para que nunca mais me pudessem revelar o segredo de que eram talvez os únicos depositários.

Em vosso lugar teria perdido a esperança, e...

— Perder a esperança! Ó Emília! como assim vos mostrais minha inimiga!... Perder a esperança... seria perder a vida. Hei de encontrá-los, o coração mo diz. Não era possível que me desse Deus a existência sem que me desse um só momento de ventura; eu o não posso gozar enquanto viver em semelhante incerteza. Hei de encontrá-los... e até então viverei sempre infeliz, mas viverei só.

— Júlio!

— Emília!

— E nunca sereis meu!

— Eu sou vosso, Emília; ordenai, mandai, disponde; achareis mais que um escravo, achareis um amante... vosso pela vida e pela morte; corpo e alma. Sou vosso, mas não quero que sejais minha. Não vos farei infeliz, a vos farei desgraçada.

— E nunca obterei outra resposta?

— Enquanto os não achar. Vou procurar de novo; aumentarei meus esforços; indagarei, correrei, gastarei. Se chegar a conhecer quem eles são; se a minha existência não tiver sido obra do crime, e por conseqüência não for para mim uma infâmia, correrei com a velocidade do raio; deitar-me-ei a vossos pés, donde só me levantarei para cair nos vossos braços; chamar-vos-ei minha, nunca mais nos separaremos.

Como já dissemos, este diálogo se passava em casa Emília; mas quem era esta Emília? Quanto a Júlio já os nossos leitores o conhecem suficientemente, para que por enquanto não seja necessário dar-lhes mais esclarecimentos. Emília era uma viúva, que apenas contava vinte e dois anos de idade. Casara aos quatorze anos, não porque o quisesse, mas porque assim lho haviam ordenado seus pais, e seu gênio demasiadamente dócil era incapaz de uma resistência; fora casada seis anos; e se durante este tempo não sofreu verdadeiras infelicidades, também não teve que se louvar de seu marido. Tinha este apenas vinte e cinco anos; tinha o seu coração algum fundo de bondade; era por vezes generoso; a verdadeira infelicidade não o achava insensível; mas fora disto nada mais tinha que o tornasse agradável. Em suas palavras reinava sempre uma constante obscenidade e imundícia; não por desejo de parecer imoral ou imundo, mas porque parecia que seu dicionário não continha outros vocábulos; isto o fazia evitar por toda a boa companhia. Sumamente grosseiro, não tinha para sua mulher nenhuma daquelas delicadas atenções, que o amor faz ter mesmo ao selvagem, e que no homem civilizado produz ao menos a boa educação; essas atenções, que se não fazem a felicidade, pelo menos suavizam muito os desgostos da vida doméstica; e somente sua mulher podia obter dele aquilo que ele absolutamente lhe não podia dispensar. Sofrivelmente orgulhoso, sua mulher era para ele mais que os seus escravos; e rigorosamente seria punido aquele que lhe fizesse a mais leve injúria; mas supunha sua mulher muito menos do que ele, e nem lhe era permitido levantar os olhos diante de seus olhos.

Emília, em todo o tempo que durou o seu consórcio, viveu resignada com a sua sorte, uma só queixa nunca lhe foi ouvida. Se algumas vezes suas amigas se queixavam da falta de suas visitas; se se admiravam de a não ver concorrer aos divertimentos, desculpava-se com o trabalho doméstico, com enfermidades suas ou da família, da melhor maneira que podia, sem que uma só vez a seu marido fosse imputada culpa. Em casa mesmo não só lhe guardava todo o respeito que uma mulher deve a seu marido, como mesmo procurava amoldar-se o mais que podia a suas vontades; não amava o homem, mas respeitava os laços que a prendiam a ele, e procurava preencher todos os deveres de esposa; sua condição não era boa, porém ela a fazia a menos má que podia; e quando seu coração sentia alguma aflição mais grave, era na oração, era elevando o seu pensamento a Deus, que buscava consolações. Chorou a morte de seu marido com lágrimas não fingidas.

— Era meu marido, era o meu protetor; era bom e generoso; suas palavras eram duras, mas o seu coração era brando — dizia ela, e assim o sentia.

Seu marido recompensou-lhe os sacrifícios, deixando-a herdeira de sua fortuna. Não lhe ficaram filhos. Os amores de Emília e Júlio não foram desses, que começaram de repente em um abrir e fechar de olhos; dessas súbitas impressões, que os poetas e romancistas têm sempre à sua disposição, e que parecem dispostos na cadeia dos acontecimentos a principio et ante saecula; pelo contrário, muito tempo se viram sem saber que se amavam, e mesmo sem se amar. Emília tinha contraído, durante a vida de seu marido, uma fisionomia melancólica de tristeza e abatimento, que sua viuvez aumentou ainda; via-se sentada em uma sala horas inteiras, no meio do prazer mais vivo sem soltar uma palavra, sem fitar os olhos em uma só das coisas que a cercavam. Este estado compadecia-se perfeitamente com o de Júlio, que no meio da mais numerosa companhia vivia isolado. Os discursos frívolos dos mancebos o enfastiavam; os sensatos dos anciãos achavam-no distraído; as risonhas palavras dessas alegres donzelas, para quem o mundo é todo de rosas, e seus ligeiros passos em uma contradança ou em uma valsa, seus sorrisos encantadores, eram pungentes espinhos, que lhe atravessavam a alma.

No meio dessa alegria geral só um ente encontrava, cujo estado parecia assemelhar-se ao seu; era uma mulher, era moça e era formosa; era Emília; razões foram estas muito poderosas para que procurasse aproximar-se dela. Mas muitas vezes sentado junto dela, passava horas inteiras sem lhe dirigir uma palavra! Ela também a não exigia; não se afligia com isso; também não lhe falava; e não era despeito; era porque se o silêncio era muitas vezes uma necessidade do coração de Júlio, o silêncio era também uma necessidade do coração de Emília. No próximo encontro tornavam ambos a avizinhar-se, e a mesma cena se reproduzia. Um observador inexperiente diria dois amantes extasiados, sem achar uma palavra para exprimir o que sentiam; alguma reflexão porém lhe faria ver que os pensamentos de um eram mui diferentes dos do outro; que os dois só se buscavam porque se não importunavam.

Pouco a pouco esta companhia tornou-se necessidade, Emília só ia aos lugares em que supunha que encontraria Júlio; Júlio só ia onde supunha que encontraria Emília; Emília estava desassossegada enquanto não via chegar Júlio; Júlio estava fora de si enquanto não podia achar lugar perto de Emília. Pouco a pouco Júlio foi o único pensamento de Emília, Emília enchia todo o coração de Júlio; todo o coração e não todo o pensamento, porque este tinha ainda outro objeto, que se não era mais forte, era mais antigo: — pai e mãe; estas duas palavras soavam mais alto a seus ouvidos, que ao habitador da América setentrional o Niágara em sua queda.

Emília recebeu como amante apaixonada a última resolução de Júlio; não podia acomodar-se com a lembrança de que tivesse ele uma idéia que pudesse mais do que ela, porque tal é a condição dos amantes; querem dominar exclusivamente no objeto amado. Talvez esse Júlio ficasse bem diferente, talvez suas resoluções fossem inteiramente outras, se a mais leve desconfiança lhe pudesse entrar de que não reinava só no coração de Emília; de que qualquer outro objeto era capaz de a desviar dele por um só instante; talvez essa generosidade, de que fazia tanto alarde, desaparecesse toda, e em seu lugar só ficasse o puro egoísmo, se pudesse recear alguma coisa pela afeição dessa mulher; mas ela lhe não dava lugar ao menor receio.

Emília esperou que Júlio voltasse, mas Júlio não voltou; soube mesmo que havia deixado a cidade. E como viveria ela nesses lugares onde estava tão acostumada a vê-lo, e agora o não veria! Sua mãe vivia em uma fazenda; a ocasião foi aproveitada para ir passar algum tempo com ela.

A mãe de Emília a recebeu como a sua filha mais querida, como aquela que, viúva como ela, tinha mais com ela esta relação particular. Seus olhos, porém, viram logo que o coração de sua filha não estava tranqüilo; suas freqüentes distrações não eram as da indiferença. O que poderá escapar aos olhos de uma mãe? Apenas os defeitos de seus filhos. Em breve foi sabedora de todo o segredo; Emília contou tudo, não se esquecendo da descrição da casa com as mangueiras e os cambucazeiros, com o campo e o regato. Sua mãe estremeceu visivelmente, tornou-se pálida e derramou lágrimas.

— E agora onde está Júlio?

— Eu o ignoro; creio que busca os lugares da sua infância. Mas conheceis-lo?

— Nunca o vi; todavia relações de sangue existem entre ti e ele. Sim, minha filha, esse Júlio é teu primo-irmão.

— Meu primo-irmão! A minha admiração cresce. E sabeis a história do seu nascimento?

— A história do seu nascimento é terrível; até hoje tem sido um segredo; e de todas as pessoas que a souberam só eu vivo.

— Minha mãe, contai-me essa história; dizei-me tudo, para que tudo lhe possa dizer. Conheça ele esse mistério que tanto tem procurado.

— Entendo, Emília; mas talvez não consigas o que desejas.

— Porém contai-me essa história; satisfazei somente a minha curiosidade.

— Pois bem; eu te satisfaço, porque a ninguém comprometo já; porque do conhecimento deste segredo pode depender a tua sorte futura.

Eis aqui o que a Emília contou sua mãe:

Perto do lugar em que hoje existe assentada a vila de S. João de Itaboraí, junto quase às margens do rio Cassarabu, houve em outro tempo uma rica fazenda, de que apenas hoje restam ruínas, conquanto os anos que tem decorrido não sejam muitos. Suas vastas plantações de cana admiravam a todos os que por ela passavam, os escravos contavam-se aos centos, seus campos estavam cheios de gados de todas as espécies. Todos os anos no dia 3 de maio, segundo o costume geral, começava o engenho a moer, e durante seis meses e mais não cessava um só instante de dia ou de noite. Em todo este tempo, a mais de meia légua, ouvia-se a bulha desse imenso estabelecimento, o relincho dos cavalos, o mugido dos bois, o balido das ovelhas, as cantigas dos que empregados em meter cana nas moendas procuravam disfarçar o sono para evitar a perda ao menos de um braço, os gritos dos tocadores do gado, e o zoeiro daquele todo. O corpo do engenho, as vastas oficinas que dele dependiam, não só para o fabrico do açúcar, como para trabalho de oficiais de todos os ofícios; as estrebarias, os currais, as imensas senzalas, a capela e a casa de vivenda, formavam uma não pequena povoação. O dono desse rico estabelecimento era conhecido por muitas léguas em roda; era o capitão-mor Mendonça. A todas as horas do dia chegavam e saíam cavaleiros de sua casa, ao meio-dia o sino da fazenda tocava, e uma grande mesa posta para todos aqueles que dela se queriam aproveitar. Viam-se mesmo chegar ali indivíduos que se demoravam oito e mais dias, sem que ninguém soubesse donde vinham, nem para onde iam, e sem que o dono da casa ou alguém dela os conhecesse, e todavia, estavam, comiam, retiravam-se, sem que por isso deixasse de continuar a haver mesa franca todos os dias. E contudo, Mendonça não era amado, era temido por todos aqueles que dele por qualquer motivo se aproximavam. Desgraçado daquele que por qualquer modo caísse em seu desagrado, ainda pela mais leve razão; seus peões com um tiro, ou ao menos o rebenque, lhe faziam justiça pronta. E nunca homem de justiça se atreveu a ir à sua casa, nem para perseguir muitos facinorosos que ali se asilavam, e que ele julgava de seu brio conservar subtraídos ao império da lei.

Mendonça teve vários filhos, entre os quais duas filhas, uma a mãe da nossa Emília, e outra mais velha, todos foram criados por seus pais, segundo os seus princípios, isto é, considerou-os a todos como seus escravos, e sobretudo as suas filhas, cujas vontades em coisa nenhuma foram consultadas. A mais velha (Júlia se chamava) casou-se aos treze anos. O coronel Sousa tinha muito dinheiro, e tanto bastou para que Mendonça o julgasse ótimo partido para sua filha. Tinha este quatro vezes a idade da noiva, estava carregado de filhos naturais de todas as cores, seus administradores, feitores e escravos queixavam-se a cada instante de suas barbaridades; para pôr termo a uma demanda que trazia com seu irmão, fez dar-lhe a morte; a embriaguez começava a ser nele habitual, mas que importava tudo isto? Tinha dinheiro, e o nosso capitão-mor supunha que o dinheiro valia mais que tudo. Sem dote! oh! esta razão é superior a todas.

Fez-se o casamento, Júlia de Mendonça foi tomar conta de sua nova casa, onde desde os primeiros dias só encontrou desgostos, seu marido continuou com seu viver antigo, uma só de suas concubinas não foi abandonada; Sousa entendeu que Júlia era apenas mais uma escrava que ia aumentar no seu serralho.

Júlia não sofreu calada a sua nova posição; desde os primeiros dias uma guerra declarou-se entre o marido e a mulher, que com insultos pagava os insultos que recebia. Anos passaram-se nesta luta. Negócios de grande interesse chamaram o marido à província (então capitania) da Bahia, onde, contra o que esperava, se demorou um tempo. À sua volta achou que seu leito conjugal fora manchado, e um menino, que lhe foi apresentado como enjeitado, conheceu em breve ser filho de Júlia. Este homem, que todos os dias violava a fé conjugal com manifesto escândalo, levantou altos gritos contra a esposa infiel; este homem, que aliás perdera todo o direito de queixar-se, pois que o crime de sua mulher era uma conseqüência, ousamos dizer, natural e necessária de seus crimes, dirigiu-se à casa de seu sogro, e altamente pediu-lhe vingança do ultraje que, dizia, a ambos fora feito.

Mendonça acolheu bem seu genro, enfureceu-se contra sua filha, e jurou vingar-se. Um quarto foi de propósito preparado na casa de Sousa, e a infeliz delinqüente foi encerrada nele; ali uma vez cada dia lhe era levada uma magra ração por suas escravas, que aliás tinham ordens positivas para lhe dirigirem os mais grosseiros e atrozes insultos, e elas satisfaziam bem a vontade de seu senhor, vingavam-se bem dos dias que foram obrigadas a servi-la. Nunca mais a desditosa pôde recobrar a sua liberdade. E muitas vezes o infame trazia uma ou mais dessas mulheres vis que lhe vendiam os seus favores, e à vista dela passava noites inteiras nas mais imundas orgias, na mais desenfreada lubricidade. E se por acaso divisava uma lágrima em seus olhos, o malvado soltava risadas infernais, satisfazendo-se com a idéia dos tormentos que a fazia sofrer.

E entretanto, depois de muitas pesquisas, o adúltero foi descoberto. Mandado agarrar pelos peões de Mendonça, foi conduzido garrotado à habitação em que jazia a sócia de seu crime, e aí, diante dos olhos dela, diante de seu pai e de seu marido, que quiseram assistir à execução, foi ele assassinado com a maior barbaridade, exercendo os dois a sangue frio, no corpo já morto, inauditas atrocidades, no meio dos mais torpes e hediondos motejos à infeliz. Não se contentaram; fizeram partir o cadáver em pedaços, e Sousa lhos atirava. — Abraça-te, dizia, abraça-te com o teu querido. Outros pedaços chegavam-lhe aos lábios, gritando-lhe: — Dá-lhe os teus beijos, dá-lhe os teus imundos beijos, ele os merece. E Mendonça o via e presenciava; e Mendonça, o pai da vítima, uma só palavra não proferiu, um só aceno não deu para que fosse poupada. Lágrimas de raiva vertia ela por não poder vingar-se do infame; a tigre devorada pela fome não deita sobre a presa olhos mais chamejantes do que os que ela fitava sobre seu bárbaro marido: raiva impotente! teve de ver tudo e não pôde vingar-se. Desde esse dia se foi finando à vista d'olhos, até que a morte a veio tirar de seus tormentos, depois de cinco anos de prisão.

O menino, a quem Júlia tinha dado o seu próprio nome, foi logo exposto por Sousa em casa de um lavrador da fazenda de Mendonça, não tendo podido obter deste que se lhe desse a morte. Aí estava ao tempo do falecimento de sua mãe, e foi então que um parente desse lavrador, vindo da Europa, sem filhos, e tomando afeição ao miserável órfão, o levou consigo e fez educar. Mendonça, sabendo disto, tramou de sorte que obrigou o lavrador a mudar de capitania; e fazendo arrasar a sua casa e mais benfeitorias, deu nova forma ao lugar, o que tornou infrutíferos todos os exames de Júlio.

Eis aqui o que a Emília contou sua mãe, não sem derramar por vezes abundantes lágrimas, e sem que um só instante deixasse de soluçar; e terminou a sua narração dizendo:

— Todos os atores desta cena, todos os que tiveram dela inteira notícia, estão hoje mortos; resto eu única sabedora deste segredo, não porque teu avô ou meu cunhado Sousa me contassem, mas porque tua infeliz tia me pôde revelar tudo, picando letras com alfinetes em papéis que eu lhe fazia passar em pequenos presentes que conseguia lhe chegassem, e que ela depois atirava por uma fresta, sendo apanhados por uma pequena crioula que os entregava a seu pai, e este mos fazia chegar à mão. Quanto dera eu para conservar hoje essa história, monumento fiel do orgulho, da tirania, da perversidade e da fraqueza humana! Porém o receio de meu pai me fazia lançar ao fogo os papéis logo que os lia. Agora também tu sabes tudo, e podes tudo revelar a esse Júlio; faze o que entenderes, mas repara que muitas vezes os resultados são contrários ao que se espera.

Emília ficou inteiramente aterrada com esta narração; os crimes de sua família, que ignorava, foram um peso enorme lançado sobre seus ombros; a natureza do segredo do nascimento de Júlio a afligia ainda mais. Comunicar-lho-ia?... Como atrever-se a contar essa longa série de horrores?... Ocultar-lho-ia ?... Como, quando via a solicitude e desesperação daquele coração ulcerado? Grandes combates deram-se em seu espírito, mil vezes: resolveu-se a falar, outras tantas a calar. Quanto melhor julgava ela agora ter ignorado tudo! quanto melhor que sua mãe nada lhe houvesse contado! Mas agora sabia tudo, e tudo quanto sabia era matéria para novas tristezas.

Porém, sua condição não podia piorar, Júlio não queria ser dela enquanto não soubesse quem eram seus pais, e só ela lho podia revelar. Era necessário fazer o último esforço, jogar a última carta, contar tudo, ver o efeito que faria o conhecimento desse mistério. Talvez que as relações do sangue servissem para estreitar as outras relações.

Júlio voltou à cidade, porém, mais taciturno e melancólico que nunca. Apenas Emília o soube, usando de todas as cautelas que pôde, e com toda aquela delicadeza de que só as mulheres são capazes, o fez sabedor de quanto sua mãe lhe havia revelado. Júlio recebeu essa carta fatal; uma só palavra não deu em resposta; oito dias sua porta esteve cerrada para todos os que o procuravam, no fim deles desapareceu, tendo antes disposto de todos os seus bens. Debalde Emília o fez procurar, debalde ardentes lágrimas inundaram-lhe as faces; Júlio desapareceu por uma vez.

Oito anos havia que tivera lugar a revelação fatal que separou Júlio de Emília; dava meia-noite; uma só estrela se não divisava em todo o firmamento; o sul soprava com toda a violência; a chuva tinha inundado nossas ruas, de que tanta gente fala mal, e que só são incômodas nos grandes aguaceiros, permitindo fora disso trânsito por todos os modos; reinavam as trevas na cidade, não bastando para as destruir os raros lampiões que então havia; a sineta da porta dos religiosos de Santo Antônio tocou com toda a força. O irmão porteiro pelo postigo perguntou o que queriam; foi procurado um religioso confessor ordinário de uma enferma, que muito tempo havia que não podia sair de sua casa para ir nos templos do Senhor receber o sacramento da penitência, e que agora parecia ter a sua hora chegada. Respondido que o religioso que se buscava não podia sair por achar-se com um violento ataque, foi pedido algum outro, vista a urgência; o guardião ordenou que fosse chamado o irmão Santa Vitória para acompanhar o mensageiro.

Este irmão Santa Vitória ninguém no convento sabia quem ele fosse, ou antes um só indivíduo o sabia: era o provincial. Mostrava ter quarenta anos; era alto, porém magro e pálido; sua cabeça era calva, seus olhos fundo; as rugas de suas faces mostravam que mais de um pesar violento tinha tocado em seu coração; taciturno e melancólico, todavia suas palavras eram afáveis. Havia seis anos que ali fora recebido, e lhe tinham sido dados os hábitos de noviço; ninguém com mais fervor desempenhou nunca todos os deveres inerentes. Seus companheiros nunca dele ouviram uma só palavra; seus superiores, apenas as respostas mais concisas a suas perguntas. Professou no fim do ano, recebeu as ordens, não porque o quisesse, mas porque assim lhe foi ordenado com preceito de obediência. Vivia na sua cela, tendo obtido não aparecer naqueles atos ainda de comunidade que o pudessem fazer ver em público; a oração e o jejum enchiam os seus dias; e o tempo que lhe restava, gastava-o no estudo, que era antes nova oração, pois versava todo sobre os mistérios e provas da religião, nunca distraindo um só minuto para cuidados profanos.

Em capítulo seus superiores faziam-no orar por vezes; ninguém o fazia com mais eloquência, ninguém com mais unção; ninguém negaria que a religião de Jesus Cristo tivera a Deus por autor, ouvindo-a exposta por sua boca. E contudo nunca seus superiores o fizeram orar publicamente; o que dava bastante que entender aos mais religiosos, parecendo-lhes que a causa de Deus e a honra do convento ganhariam muito em que o irmão Santa Vitória pregasse ao menos uma quaresma.

Pela primeira vez Santa Vitória foi assim mandado; mas a hora e as informações do outro religioso fizeram olhar esta saída sem perigo para seus votos.

Santa Vitória foi introduzido em uma casa, onde, tendo subido uma escada, deu em um extenso corredor, alumiado por uma única luz que mais servia para fazer ver a sua extensão do que para o esclarecer; era uma luz, que só servia para fazer ver as trevas. Acompanhando o seu guia, caminhou o religioso esse extenso corredor, no fim do qual se lhe abriu uma porta que lhe deu entrada para uma sala toda forrada de preto; havia a um lado uma mesa; sobre esta uma caveira e dois ossos em aspa; uma pedra do tamanho de um pão e uma disciplina toda salpicada de sangue; dependurado na parede um crucifixo. Havia também um livro que o religioso conheceu ser a Imitação de Cristo.

Havia ainda mais nessa sala: sobre uma pequena marquesa, deitada sobre as tábuas, com um pau por travesseiro, havia uma mulher com um vestido de lã preta, cujas feições ele não pôde distinguir.

Tudo isto não viu ele logo que entrou, mas o foi vendo pouco a pouco, porque uma única vela de cera amarela que ardia não bastava para fazer ver tudo de uma só vez.

— Senhora, disse o guia, eis o religioso; não é o vosso confessor ordinário, que suas enfermidades, e talvez anos, o impossibilitaram de vir; é um outro que o guardião vos mandou.

— Que se aproxime; receberá em pouco o meu último suspiro.

Conquanto estas palavras fossem ditas em voz baixa quase sumida, Santa Vitória julgou conhecer aquela voz; julgou que era uma dessas que no mundo encontrara por vezes; em seu espírito rendeu logo graças ao Altíssimo, porque assim tocara o coração dessa, quem quer que era.

— Chegai-vos, senhor, continuou a penitente moribunda; vosso trabalho durará pouco; meus últimos instantes são chegados. E quanto os tenho desejado! Receio mesmo ter cometido mais um pecado, quando os motivos que me movem não são todos espirituais, e neles tem grande parte uma paixão desgraçada.

A voz da moribunda se ia animando pouco a pouco; cada vez o bom religioso se parecia recordar mais daquele som. Porém não eram recordações que ele vinha buscar, e por isso, com voz grave e pausada, respondeu:

— Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade para os que buscam o seu pacto e os seus mandamentos (1). Bom é o Senhor para os que nEle esperam, para a alma que O busca (2); nunca aquele que n’Ele espera é confundido pela eternidade (3).

— Meu Deus!... Céus!... não me engano; esta voz... Júlio!.. sois vós, Júlio... esta voz é a voz de Júlio...

— Emília!

Eram eles. Quando Júlio recebeu a carta de Emília, que lhe revelava o segredo fatal de seu nascimento, oito dias passou na maior desesperação. Se pudesse saciar em alguém a raiva de que se achava possuído! Mas seus pais eram mortos, seu avô era morto, o marido de sua mãe era morto; sobre quem exercer uma vingança? De Emília não podia ele ser mais. Como viver debaixo do mo teto, dentro das mesmas paredes com uma pessoa que conhecia os horrores todos do seu nascimento? Um dela parecer-lhe-ia uma repreensão de crimes, em que ele aliás não tinha culpa. E suas palavras seriam sempre duras; o azedume de seu coração ressumbraria em ações; infeliz daquele que tivesse de o acompanhar!

Realizou todos os seus bens; pôs o seu produto em mãos seguras; e para fugir aos lugares em que tinham finado seu criminoso pai, seu terrível avô e o bárbaro marido de sua mãe; para nunca mais se encontrar com aquela que única lhe tinha suavizado alguns momentos de sua triste existência, determinou viajar. Para onde guiaria seus passos? Para a Europa, não; a sociedade animada que aí vive, seria um insulto constante a suas dores. Seu estado não era o da misantropia; mas não podia viver com os homens; não os aborrecia, mas eles o não podiam compreender, e por isso se não podia comunicar com eles. A brilhante França, a profunda Inglaterra, a silenciosa Holanda, a metafísica Alemanha, a desditosa Espanha e a morta Itália não lhe podiam oferecer as necessidades de seu coração. Êle queria fugir de Emília, de Sá e de Mendonça; mas queria ver sempre o sol da pátria; queria conservar alguma coisa de comum com o precioso objeto de suas afeições; queria, quando o plenilúnio estivesse no seu zênite, e talvez já caindo para o ocidente, dizer: — Talvez também a esta mesma hora Emília olhe com atenção para a Deusa da noite, e neste mesmo momento se lembre do seu Júlio. — Queria ver as mesmas estrelas. A imagem de Emília vivia sempre em seu coração; era necessário que aí não ficasse isolada, que alguém a acompanhasse; não porque temesse que ela aí definhasse, mas porque essas recordações lhe eram muito preciosas; e muitos dos momentos de sua existência eram suavizados com lembranças.

Foi para as províncias do interior que guiou seus passos; foi em nossos povoados desertos que buscou alguma tranqüilidade a seu espírito. De dia entranhava-se por essas solidões, por essas matas, onde nunca chegou a mão do homem; por essas serras, a par das quais são pequenos outeiros os Alpes e os Pireneus; pelas margens desses rios, alguns dos quais quase nem têm nome, e que todavia são incomparavelmente maiores que o Tejo e o Tigre, o Sena e o Tâmisa. Seu coração se dilatava ao contemplar essa natureza virgem, grande em toda a sua pompa; sua mente passava das coisas criadas ao Criador, e pensamentos de verdadeira religião levantavam-se em sua alma, quando contemplava essa majestosa variedade de substâncias e de formas. Nossos costumes singelos não carecem ainda dessas estalagens cheias de luxo, iguais aos palácios dos reis, onde a peso de ouro se encontram todas as comodidades da vida; nossos viajantes sabem que à primeira porta em que baterem acharão hospitalidade franca, cama e comida, segundo as posses do proprietário. O nosso Júlio, tendo mudado o seu nome, e dando-se por muito diferente daquele que era, depois de passar o dia em suas explorações, de noite buscava abrigo, não em algum opulento engenho ou em alguma vasta fazenda de café; era nas modestas habitações de nossos camponeses de medíocre fortuna, ou menos que medíocre, comprazendo-se em encontrar recordações de sua infância; aí preferia o prato de canjica, a cuia de mate, o beiju, a tigela de leite e a farinha de milho aos mais delicados manjares que lhe poderiam ser ofertados nas mesas dos ricos; e se lhe não feriam os ouvidos os estrondos de uma harpa, se uma doce brasileira com sua doce voz, fazendo caretas e contorções para arremedar os cantores dos teatros da Itália e da Alemanha, lhe não faziam chegar o sorriso aos lábios; ouvia suaves modinhas e lunduns acompanhados com a viola, cantados com expressão, cujos sons melodiosos não paravam nos ouvidos, iam tocar o coração. Quantas vezes chegavam as lágrimas a seus olhos, quando uma simples quadrilha lhe descrevia os rigores da sorte que separa dois amantes, ou as ternuras de uma bem sentida saudade!

O furor e a raiva que dominavam aquele coração foram-se pouco a pouco extinguindo, deixando em seu lugar uma profunda melancolia; Emília ainda o ocupava todo, mas como lembrança de uma visão celeste, como recordação de um pensamento angélico, que daria tudo por ver realizado, mas que sabia ser impossível realizar.

Foi nestas disposições que o achou a morte da pessoa a quem confiara os seus cabedais, o que o necessitou a voltar à corte. Bastante o sentiu ele, não porque receasse por seu coração, mas porque lhe era necessário volver ao rebuliço dos homens, o que de maneira alguma não quisera. Voltou; e como se não sobressaltou o seu coração, como não estremeceu todo o seu corpo, como não sentiu arrepio de frio, e ao mesmo tempo gotas de suor, ao passar pela casa de Emília! Quase involuntariamente entrou nessa porta onde tantas vezes tinha entrado, e força lhe foi necessário fazer para poder passar adiante. E Emília já ali não morava! Debalde perguntou por ela, ninguém lhe soube dizer o que era feito dela; Emília tinha desaparecido, sem que se soubesse para onde se havia retirado.

Era uma quinta-feira santa; dirigiu-se ele por acaso ao mosteiro de Santo Antônio, e aí viu celebrar os ofícios que a igreja faz celebrar nesse dia. A pompa do culto, a singela propriedade do canto, os sons do órgão que retiniam nas abóbadas do templo, o ar tranquilo dos religiosos, muitos dos quais mostravam em seus rostos as vigílias, jejuns e orações em que passavam seus dias, tudo o encheu de um entusiasmo santo pelas coisas sagradas. Suas faces foram incendiadas de pranto quando ouviu entoar este versículo das lamentações: — Nossos pais pecaram e não existem, e nós temos levado as iniqüidades deles. Os servos nos dominaram, e não houve quem nos resgatasse das mãos deles. — Oh! pareceu-lhe que o profeta predizia as desgraças de sua família, o crime de seu nascimento, e os horrores que se lhe seguiram; tudo lhe foi presente como se diante de seus olhos se passara. Quando ouviu logo depois: — Converte-nos, Senhor, a Ti, e nós nos converteremos; renova os nossos dias —, pareceu-lhe que o Senhor o chamava para convertê-lo, e que ali guiara seus passos para mostrar-lhe o único lugar em que poderia encontrar repouso; e repouso com efeito encontrou na religião, essa consoladora universal que tem remédio para todas as aflições da alma.

E Emília abandonada por Júlio o que faria? O mundo perdeu para ela todos os seus encantos; seu coração se foi desapegando dele e voltando para o céu, e o que acontece a todas as pessoas de uma imaginação viva, de dia em dia, de prática em prática, foi aumentando sua penitência e austeridade a um ponto extraordinário. Muitas vezes quis o seu confessor moderar o que julgava excessivo; aquela alma não ficava tranqüila, quando não igualava as práticas dos mais rigorosos cenobitas. Quantas vezes lamentou ela que a depravação do século lhe não permitisse ir viver de joelhos sobre uma coluna de muitos pés, com uma pesada cadeia na cintura! quantas vezes teve desejos de deitar-se sobre um monte de agudos espinhos ou sobre um braseiro ardente!

Agora estava diante de Júlio, e Júlio diante dela. Quem sabe se não chorou nesse momento pelas carnes de seu corpo, pela cor de seu rosto, pela viveza de seus olhos, pela agilidade de seus pés, pela destreza de seus dedos, pelo luzidio de seus cabelos? Quem sabe o que se passou nesse coração, quando depois de oito anos viu diante de si o seu antigo amante? Ainda uma leve vermelhidão subiu-lhe às faces, ainda uma mão descarnada foi atirada para o lugar em que se achava Júlio. Este conservou-se impassível.

— Emília! Não falarão meus lábios a iniquidade, nem a minha língua inventará mentiras (4). O Senhor nos vê e nos ouve, o Seu juízo pende sobre ti, seja Êle a vossa luz e a vossa salvação, e nada podereis temer.

— Júlio, as vossas palavras tranquilizam-me, prestai-me as últimas consolações da religião, porque é certo que a misericórdia do Senhor é a melhor de todas as vidas (5).

Júlio prestou a Emília os deveres de seu ministério últimos instantes, Emília entregou o seu espírito nas mãos do seu Criador. Mas os esforços que fez e o choque que recebeu com essa morte, deram-lhe abalo terrível.

Poucos dias depois os sinos do convento de Santo Antônio, em dobre fúnebre, anunciavam que um homem deixava de existir, que um corpo passava da existência ao nada, que uma alma passava do tempo à eternidade; o requiem sepulcral foi entoado, a terra tragou aquele que dela havia saído, e sobre a lápide que lhe fechou o túmulo, foram gravadas estas palavras: — Júlio de Santa Vitória.

(Panorama do conto Brasileiro, p. 197-219)