ARDORES NA NOITE
Aquele encontro soava diferente. Os outros pegavam na mão, depois davam um sorriso de canto de boca, apertavam o braço na cintura e logo desciam para as nádegas, em um degradê de palavras chulas que agrediam o meu ouvido e autoestima. Feriam, também, a suavidade que habitava em mim em dias frios. E logo se via a pessoa observadora que sou virar uma mulher-búfalo e sair cuspindo labaredas em forma de palavras configuradas em ódio aos homens.
Já teve aquele, o Paulinho da esquina da Noca, que veio com um papinho de comprar sorvete, dividir a conta do sanduíche com refrigerante e, de sobremesa, queria dar "uns pegas" no motel a dois quilômetros da lanchonete. Mas veja só!
E era pra ir a pé porque ele tinha que garantir o transporte da volta. Homiquá! Não caí nessa e nunca mais vi a face desgostosa daquele pilantra.
Tem dias que fico a me perguntar se esses homens acham que mulher é bicho-fêmea que vai se arriando por qualquer xero ou coisa que o valha. Mulher tem sentimento, tem vontade, tem tesão... né assim como esses machos pensam, não! Mãinha mesmo já me dizia que homem nenhum manda em mulher bem resolvida. Esta sou eu!
Só que tem aquele dia que as ondas rolam diferente; o dia em que as flores sorriem sem olhar, necessariamente, para o leste. E esse momento chegou quando olhei e fui olhada qual beija-flor no bem-me-quer. Encaixou legal! Swing do bom, tão quente quanto James Brown.
Ai, James! Som que vai nas entranhas, assanha a libido e faz escorrer mel dos esconderijos mais íntimos de uma mulher viva. Sim! Porque eu tô viva!
Numa dessas baladas, Zene me aconteceu. Alta, esguia, quase uma linha reta. Detesto mulheres magras demais! Mas Zene era gente boa. Sorriso largo, igual ao seu nariz; cabelos com tranças-dreads que mais pareciam cipós de uma gameleira. Aliás, ela toda era uma gameleira frondosa, exalando segurança naquele olhar-farol.
Eu fui à night com o Kléber, sisudo que só, contudo era uma agradável companhia. Sempre que era pra sair, o Kléber estava a fim. Em Belo Horizonte, as noites são frias demais para se ficar em casa largada no sofá até chegar o sono. Então, íamos às festas em bares, boates, casas de amigos ou inventamos uma. Logo, fomos na "Coisa de Gringo", no largo do Carmo, lá pras bandas do norte, e encontramos a galera. Som bom! Tim Maia, Elza Soares, Simonal, Amelinha, tudo no tom certo. Noite quente, quente, quente. Meus pés flutuavam... Eu nem pensava em parar.
No bar da boate, sentei-me para dar uma estica no drink do Maneco. Dá um sabor a mais na batida boa que me autoalimentava. Senti que alguém me fitava... acompanhava meus gestos, degustava comigo aquela bebida sem me tocar. Olhei, era aquela mulher alta e magra demais (que depois descobriria que era a Zene). Nada me disse. Chegou mais perto, pegou no meu queixo e largou um beijo boca a boca que nem vi mais a festa acabar. Saímos de lá devidamente apresentadas, narradas de fatos principais sobre nossas vidas em poucos trinta minutos. Dançamos, mas foi com o fundo da alma que se aquecia em cada língua, saliva, odor, sussurro.
Fomos à casa dela. Eram quatro da manhã, isso me lembro, e eu estava com fome. Zene era bem jeitosa: casa no fim da Rua Laura, bem aconchegante, cheiro de alecrim, paredes grafitadas com imagens de Lélia Gonzalez, Neusa Santos, Mário Gusmão e tantas outras representações que me eram familiares. Após o pão com patê, Zene me convidou a conhecer o quarto de visitas para eu me recolher até amanhecer e pegar meu bus. Lá mesmo ficamos: carícias, afagos, amassos. Sua tez de cor negra como a noite que nos abraçava saciava meu desejo de ter alguém que alcançasse a minha beleza tão igual à dela.
Nessa fluidez de cheiros, calores trocados por olhares, o desejo faz as minhas pernas pulsarem bambas e apressadas por encontrar aquelas outras pernas para dançarmos um "adocica", agarradas por noites e noites sem fim. Seu gosto é diferente porque me deixa ansiosa por seu toque quente, seu olhar fixo e congelante. Tudo nela me excita e acalma... Contraditório? Nem um pouco. Depois daquele 19 de agosto de 1999, nossas noites se tornaram mais pulsantes, mais ardentes, mais nós.
(Cadernos Negros 40, pág 77-80)