A CASA DO REI

 

E como em um dia luminoso, Ayó sentou-se entre os cravos amarelos no jardim de sua avó e sentia a brisa das histórias de suas mais velhas rodopiando entre as nuvens no céu. Era dia seis de junho de um ano qualquer, mas em suas lembranças era um dia especial. Dia em que tudo ficava azul. A casa era banhada pelo aroma de alecrins, arrudas, e havia um tom agridoce nos móveis. Nunca soube explicar o porquê desses fluidos nesses dias diferentes, mas, certamente, tinha a marca de Dona Florença nisto ou naquilo.

Ayó tinha apenas quinze anos e via a avó nas férias de fim de ano, quando sua mãe Zélia tirava uns dias de descanso da cidade e arrumava as malas para duas semanas de tranquilidade e aconchego materno. Casa humilde, plena de um banco de madeira talhada no lugar de sofá, coberto com uma manta feita de retalhos de tecidos das roupas da falecida tia Filó. Cada quadradinho era uma referência àqueles dias de sorriso largo da velha! Ayó gostava daquela presença intocável. Era como se o beijo estalado de sua bisavó Filó sempre a recebesse ao pisar no chão de cimento batido daquele lugar. Ainda dava pra tocar o macio de suas palavras regadas de sabedoria, principalmente quando falava dos orixás: era de uma sensibilidade tão grande quanto sua fé. E ela tinha muito respeito de todo o vilarejo por isso.

Em dias de festejos no Ilê Axé Omin Agba, tudo acontecia como se fosse pela primeira vez. A energia vibrante das pessoas fazia daquele momento algo muito além de mágico: uma viagem de sentidos e prazeres em um universo distante dali. E nessa onda de movimentos, cores e lembranças, Ayó cresceu e aprendeu a reverenciar sua ancestralidade. Aprendeu a olhar todas as manifestações da natureza e o outro lado da vida, como um ritual cotidiano e básico da existência de alguém. Nos dias de xirê, ela se dedicava a ajudar a avó no catar das folhas, no preparo das comidas e na decoração do barracão com suas bandeirolas que vibravam no comando do velejar das folhas nas árvores da entrada da casa. Era uma dedicação voluntária, afinal, Ayó não era filha de santo da casa, mas sua fé dava continuidade à fé da comunidade da vila e dos que de longe vinham para saudar o terreiro de Oxum através de seus desenhos e esculturas no salão.

Uma das dúvidas de Ayó era se um dia sentiria um arrepio na alma, um abalo no seu consciente, ou outras formas de manifestação do sagrado materializado em seu corpo vulnerável e de uma juventude invejável. Na flor dos seus quinze anos, sua aparência de princesa africana declarava guerra às mocinhas do lugar e atraía os desejos mais profundos dos rapazes na vizinhança era como um oásis no deserto das virtudes humanas. Nada disso desviava os pensamentos de águia da adolescente, cuja tez cor da noite também estrelava os sonhos dos rapazes da redondeza.

Tudo pronto! Chegou a hora esperada. Banhos de folhas. Anáguas. Saias engomadas. Batas coloridas. Turbantes altivos. Cada criança, mulher, senhora vestida com as contas de seus orixás, cuja sequência de miçangas desenhava o orgulho de suas iniciações e devoções. Alabês a postos! Mãe Florença de Ogum se apresenta. Portas abertas. Ayó na arquibancada. A roda. Oriki ao vento rodopiando no salão, logo o ritual se inicia. Bênçãos. Cabeças ao chão. Coro. A roda gira. Mãos em movimento. Ayó na arquibancada. Vento nas saias. Atabaques em auge. Corpos em movimento. Mãe Florença faz soar o adjá. Onde está o rei? E como em uma sintonia perfeita, algo se agita da plateia das mulheres até o meio da roda rumo ao abraço de sons ao chamado do Rum, Rumpi e Lê. Oriki. Saias e batas no ritmo. Chega o dono da festa. Oxóssi anuncia sua presença. E como em um dia luminoso, Ayó se entrega a seu destino. Nossa história segue em direção à eternidade.

 

(Cadernos Negros 38, pág 35-38)