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                      BORGES TRANSVERSO

Conversa com Ivan Almeida e Cristina Parodi
 

                                             Maria Esther Maciel
 

 

     "Fantásticas ontologias", "genealogias sincrônicas", "gramáticas utópicas", "geografias fictícias", "silogismos ornitológicos", "matemáticas imaginárias", "thrillers teológicos", "nostálgicas geometrias": com estes e outros paradoxos de feição borgiana, a revista Variaciones Borges, publicada pelo Centro Borges (J. L. Borges Center for Studies & Documentation) da Universidade de Aarhus, Dinamarca, abre suas páginas ao mundo transversal do escritor argentino. À luz dos mesmos paradoxos define-se ainda a proposta do próprio Centro: estudar Borges transversalmente, investigar as rotas oblíquas de seu pensamento, enfocar – por vias interdisciplinares – o modo como ele construiu uma leitura peculiar do mundo e da própria literatura.


     Fundado pelos argentinos Ivan Almeida e Cristina Parodi, em 1994, o Centro Borges é hoje um dos mais conceituados centros de estudos borgianos do mundo. Além de comportar um acervo considerável de livros, textos, documentos relacionados ao autor, oferece um Seminário Permanente e mantém um  excelente site na Internet (www.hum.au.dk/romansk/borges), no qual pesquisadores, professores, estudantes e leitores em geral  podem não apenas obter informações bibliográficas especializadas, como também consultar livros integrais sobre Borges, on-line. Sua revista, editada duas vezes por ano, com textos em espanhol, inglês e francês, recebe colaborações de estudiosos de vários países, nas áreas de literatura, filosofia, semiótica, arquitetura, matemática, física, geografia, história, cinema, zoologia, mitologia e teologia, promovendo uma interseção de campos disciplinares, inteiramente afinada com a pluralidade dos interesses intelectuais do próprio escritor argentino.


     A pergunta "por que na Dinamarca?" é inevitável, neste caso. E, certamente, muitos esperam uma resposta que, no mínimo, tenha a ver com o fascínio de Borges pelos países nórdicos. Sabe-se que ele estudou a língua escandinava antiga e dedicou-se, com paixão, à leitura de autores como o filósofo-escritor Soren Kierkegaard ou o salmógrafo  H.A.Brorson. Conta-se, inclusive, que costumava citar, de cor, em dinamarquês, o fragmento de um cântico de Brorson que serve de inscrição na lápide de Kierkegaard. Para não falar de Hamlet, personagem que, para Borges, se confundia com o próprio Shakespeare, e que transformou a Dinamarca no reino da dúvida e da incerteza. No entanto, a justificativa para a existência de um centro dedicado a Borges em uma cidade chamada Aarhus, no norte da Jutlândia, é outra, como nos relatam os diretores do Centro, nesta conversa acontecida na Universidade de Aarhus, em fevereiro de 2000.


     Ivan Almeida é professor de filosofia e semiótica. Cristina Parodi leciona literatura latino-americana. Ambos dedicam-se a Borges, a partir do que chamam de "epistemologias tranversais". Avessos às especulações folclorizantes sobre a vida do autor, às leituras encomiásticas que monumentalizam a sua obra (no duplo sentido de convertê-la em "monumento" e de enfatizar as magnificências de que é feita), preferem a via do despojamento, da "falta de ênfase", no trato dos temas borgianos.  E crêem que a melhor maneira de homenagear Borges é lê-lo "ao reverso", é fazer da leitura de seus textos não uma confirmação ou uma reverência, mas um lapso, um desvio, uma infidelidade. 


      Nesta entrevista, os dois falam das atividades do Centro Borges e de sua "extraterritorialidade", dos intercâmbios reais e virtuais, dos personagens vivos de Bustos Domecq, da "história como pudor", dos projetos de livros em baixo-relevo, dos usos e abusos editoriais que envolvem as publicações póstumas do autor, e do que de Borges não ficará para o  milênio que começa.


 

Maria Esther Maciel: Como surgiu a idéia de se criar um Centro de estudos borgianos na Dinamarca? 

Cristina Parodi: Creio que na sua pergunta o que menos importa é a palavra Dinamarca. A idéia de criar o Centro Borges surgiu simplesmente do encontro de duas pessoas com afinidades de interesse em relação a Borges.  Pensamos: por que não fazer algo com Borges? E, por acaso, estávamos na Dinamarca. 

Ivan Almeida: Esta manhã assisti a uma bela conferência de uma pessoa que dizia que Borges não crê nas causalidades históricas. Creio que, neste caso, é certo. Obviamente haveria nobres razões para que, na Dinamarca, fosse criado um Centro Borges.  No entanto, o que nos  motivou foi o desejo de fazer algo que pudesse ocupar prazerosamente os dias de duas pessoas que trabalham dentro de um departamento dedicado à  língua espanhola, de certa orientação demasiadamente pragmática. A criação do Centro nos permitiria realizar um outro tipo trabalho. E não havia outro autor que conjugasse tão bem e de forma tão legítima nossos desejos, senão Borges.
 

ME: É admirável como, em pouco tempo, o Centro Borges se tornou um dos mais importantes centros de estudos borgianos do mundo, afirmando-se como referência  obrigatória para quem se interessa pelo autor. Vocês poderiam falar um pouco sobre a história do centro? 

CP: Começamos de forma muito modesta.  O primeiro passo foi a criação da revista.

IA: Sim.  Havia no departamento uma revista interna, à qual tínhamos que dar vida. E nos demos conta de que não se pode dar muita vida a uma publicação na qual só colaborem estudantes e que circule entre as mesmas pessoas. Nesse caso, resolvemos trabalhar por algo que valesse a pena, inclusive fora da universidade, mas não havia muitos campos nos quais se pudesse fazer isso. Ao contrário, os estudos borgianos nos pareceram um campo ainda virgem e começamos a entrar em contato com pessoas que conhecíamos. Um pouco como quando Borges punha seus poemas nos casacos das pessoas nos restaurantes, começamos a enviar a idéia à família, aos sobrinhos e a alguns colegas conhecidos e, de repente, a coisa pegou.  E isso não se deveu a nós, mas ao fato de que o tema despertava muito interesse. 

CP: De fato, a resposta foi imediata. Todas as pessoas, dentre as quais os grandes especialistas, consideraram a idéia estupenda.

IA: E inclusive houve o caso de um que disse: vou colaborar, mas antes espero para ver no que vai dar isso. Depois de dois ou três anos, essa pessoa pediu para entrar na publicação de Variaciones Borges.  De modo que,  se, num primeiro momento,  houve um interesse espontâneo pelo tema, no segundo creio que já se pode falar em um pequeno mérito nosso, visto que os especialistas se deram conta de que nossos projetos eram sérios, ou seja, não aceitamos publicar todas as mundanidades acadêmicas que nos aparecem ou que poderiam aumentar o número de páginas da revista. Preferimos, muitas vezes, para manter um certo nível,  sacrificar dossiês inteiros.  Isso faz com que o projeto entusiasme mais certas pessoas do que outras. E são exatamente essas pessoas que nos interessam. 
 

ME: E qual seria a proposta teórica da revista?  Percebe-se que não é uma revista apenas voltada para estudos literários sobre Borges, mas que se abre para vários outros campos disciplinares.

CP: De fato, a revista também publica artigos de físicos, matemáticos, engenheiros, arquitetos que tratem de seus temas específicos através ou a partir de Borges. Por exemplo, um pode tratar da topografia de Buenos Aires, via Borges; outro, das relações entre Borges e a ciência, etc. Temos ainda o Seminário Permanente, que vem sendo oferecido pelo Centro desde o primeiro ano de sua fundação e para o qual convidamos, sempre que possível, um professor do exterior. Também, neste caso, os temas desenvolvidos não são apenas voltados para os textos de Borges, mas se abrem para muitas outras coisas, para outros campos e enfoques que possam servir para a abordagem do tema escolhido.

IA: De qualquer maneira, optamos por adotar um estilo, que tem a ver com o que Borges chamaria de "falta de ênfase".  É por isso que a revista praticamente não tem ilustrações, não tem nada de luxo, buscamos polir tudo o que possa soar a falsa polêmica e eliminar as introduções retóricas. Simplesmente achamos que o tom tem que ser o tom confidencial de uma pessoa que se disponha a tratar de um tema com seriedade e serenidade, independentemente das reputações acadêmicas. Ou seja, acreditamos que a maneira mais modesta de aportar ao mundo acadêmico em que estamos é buscar uma certa seriedade na abordagem dos temas e um descenso do nível de ênfase nesses estudos.

ME: Borges não escondia o seu fascínio pelo mundo escandinavo e me pergunto se há, por parte dos dinamarqueses, algum tipo de fascínio em relação a Borges.  Os estudantes e professores dinamarqueses se interessam pelas atividades do Centro? 
 

IA: Creio que a Dinamarca é um país que Borges sonhou com demasiado poder criador... Entretanto, em seu conto "El Soborno" ("O Suborno") mostrou ter captado algo muito importante do funcionamento mental escandinavo. Respondendo a sua pergunta, estamos demasiadamente perto para ser capazes de medir o interesse dos dinamarqueses pelo Centro. Só podemos falar do entusiasmo dos estudantes e pesquisadores que freqüentam o Seminário. No entanto, há algo que se pode controlar, e até medir: o tráfico de leituras do site de Internet que o Centro Borges oferece. Segundo as estatísticas, apenas na Faculdade de Letras de Aarhus a leitura dos textos e serviços on-line propostos pelo Centro equivale a uma hora de curso diária para 45 estudantes...

ME: Agora, uma outra pergunta, que tem a ver com a anterior, mas que aponta para um outro lugar: a Argentina. Como os argentinos têm se relacionado com o Centro Borges? Há receptividade por parte deles?

CP: Pelo que sabemos, a receptividade é grande. Segundo contam alguns professores de universidades argentinas, os estudantes consultam muitíssimo a revista, estão interessados em tê-la e isso tem nos motivado a enviar a eles os exemplares pelo correio especial, a preço de custo. Parece que a revista é bem recomendada nos cursos de literatura da Argentina.

IA: E nos Estados Unidos também. O maior número de assinaturas vem de lá. No primeiro ano da revista, não tivemos resposta nenhuma dos americanos, mas de repente isso mudou radicalmente. Temos ainda assinantes do Japão, da China, da Austrália e de praticamente todos os países da Europa. Quanto ao número de pessoas que aderiram ao Centro como membros, já está chegando a mil.
 

ME: E quanto à participação de brasileiros, o que vocês têm a dizer?

CP: Temos interlocução com brasileiros, sim, apesar de o número de assinaturas da revista não ser grande no Brasil. Geralmente são assinaturas individuais, nenhuma de universidades. Isso tem de certa forma acontecido com alguns países latino-americanos, talvez por falta de recursos das instituições universitárias. Temos assinantes do Peru, do México, do Chile... Mas temos recebido algumas colaborações de pesquisadores brasileiros para a revista.

IA: E de boa qualidade. Até agora não nos ocorreu de ter que recusar nenhum artigo brasileiro...

ME: O site do Centro Borges na Internet  certamente contribuiu para que a revista e as próprias atividades do Centro ganhassem maior repercussão internacional, inclusive fora dos meios acadêmicos, não? 

IA: Sim, é curioso. Uma estatística recentemente publicada na universidade mostrou que é o mais consultado dentre todos os sites da Universidade de Aarhus. Além disso, é o mais antigo e o maior. De modo que, em certa medida, é interessante que um site que não contenha uma só palavra em dinamarquês seja o que mais se lê de uma universidade dinamarquesa, no mundo. Sem dúvida, a Internet nos tem facilitado muito os intercâmbios, mas, por outro lado, é também a parte que, no momento, mais nos pesa. Temos que responder a centenas de mensagens do mundo inteiro, dentre elas, por exemplo, as que pedem informação sobre um falso poema de Borges ou aquelas inúmeras mensagens de alunos de literatura que, na época dos exames, nos solicitam ajuda na elaboração de seus trabalhos. Por essa mesma razão temos rechaçado a idéia de criar salas de chats ou mailing lists. Preferimos abrir o Centro  para  pesquisadores que necessitem de uma certa informação. 

ME: Vocês relatariam alguma experiência, digamos, "borgiana", nesse tempo de funcionamento do Centro? 

IA: Bem, uma experiência "borgiana" um tanto estrambótica seria o caso do tal poema falso de Borges. Às vezes fui insultado por ter que dizer que não era de Borges e, tampouco, da pessoa que María Kodama anuncia como autora, que seria Nadine Stair, uma poeta norte-americana.  O texto, inteiramente prosaico, é de um caricaturista americano que se chama Don Herold, que publicou isso na revista Seleções do Reader’s Digest, em outubro de 1953, embora eu não esteja seguramente convencido de que esse seja de fato o criador. Com esse texto, atribuiu-se a um autor ininteligível para as massas a espiritualidade barata, tipo Paulo Coelho. Essa confusão permitiu que muita gente pensasse: agora que Borges escreveu algo que me toca, agora que posso ler este poema de Borges, sou um leitor borgiano. No momento está surgindo um outro falso poema: Borges continua escrevendo...
     As coisas que vão acontecendo através dos intercâmbios pela Internet sempre vão muito além de um simples intercâmbio. Parece-me que, se temos que buscar uma experiência borgiana no que estamos fazendo aqui, é a possível antologia da correspondência pretensiosa que temos recebido de pessoas que superam de longe os personagens de Bustos Domecq.  São pessoas que se auto-apresentam como poeta, escritor e professor e que se oferecem espontaneamente para fazer uma conferência. Isso realmente mereceria uma antologia, que talvez mostrasse a pouca originalidade de Borges e a grande autoridade, ao mesmo tempo, de suas paródias. Creio que, com o correio de leitores das revistas em que trabalhava, ele tinha material suficiente para que pudesse criar suas personagens ridículas. 
     Outro fenômeno também  muito interessante decorrente de contatos pela Internet são as centenas de pedidos de confirmação de um texto de Baudrillard sobre os cartógrafos de um reino que criaram um mapa que era  igual ao reino...  Não sei se Baudrillard realmente leu o texto de Borges ou se o leu  em outro lugar, visto que a citação não é muito exata, mas o fato é que há um público americano que ficou maravilhado ao saber de um autor que se chama Borges e que escreveu isso que Baudrillard cita de forma mais ou menos aproximativa.  Eu geralmente respondo dizendo que espero que Borges seja lido não apenas por ter sido uma fonte de Baudrillard.  Mas é certo que esse site da Internet serve também para nos mostrar as modas do pensamento e devo dizer que elas não são muito atrativas no presente momento, sobretudo as que vêm dos Estados Unidos e da América Central. 
 

ME: Cioran, em uma famosa carta dirigida a Borges, diz que o grande desastre que pode acontecer a um autor é ele ser reconhecido. E lamenta que Borges, "o último dos delicados", tenha tido essa sorte (ou azar).  De fato, vários são os paradoxos da fama, sobretudo quando se referem a um escritor como Borges, que se expôs muito publicamente, ainda que muitas vezes confundindo pistas e ficcionalizando sua própria imagem. Dentro disso, como vocês avaliam as inúmeras comemorações realizadas em 1999 no mundo inteiro, a propósito de seu centenário?  Em que medida essas comemorações se configuraram realmente como homenagens ou foram  exercícios de vaidade e oportunismo?

CP: Não sei. Nosso Centro não fez nenhum tipo de celebração, homenagem, congresso.  Simplesmente fizemos dois números monográficos da revista Variaciones Borges no ano do centenário, mas sem usar a palavra "homenagem". 

IA: Sim, nós nos deixamos guiar, em primeiro lugar, pelo horror que Borges tinha pela ênfase, que é contagioso. Além disso, compartilhamos com ele certos princípios, como por exemplo, quando ele diz, em algum lugar, que  somos vítimas do sistema decimal.  Cem anos pertencem ao sistema decimal e certa vez Borges disse: estou disposto a celebrar Gôngora a cada duzentos anos. O terceiro motivo, que está exposto no prólogo de um dos números especiais da revista no ano do centenário, tem a ver com uma estória que se conta em Mantua, na Itália: num dado momento, estavam alguns meninos brincando em um colégio, e alguém lhes perguntou o que fariam se soubessem que teriam que morrer naquele mesmo dia. Entre esses meninos estava Luis de Gonzaga, que respondeu: "seguiria brincando". Esta foi um pouco a nossa divisa. Como estamos todos os dias trabalhando sobre Borges, preferimos, no ano de seu centenário, simplesmente continuar trabalhando.  De modo que só agora, pela primeira vez, depois de ter acabado o ano das comemorações, nos permitimos mostrar aos nossos estudantes um filme sobre Borges, porque já passou o ano da quarentena, no qual seria melhor ler Borges e celebrá-lo dessa forma.

ME: Em uma das páginas introdutórias da revista Variaciones Borges, vocês mencionam que um dos objetivos da publicação é privilegiar uma área especial da pesquisa acadêmica onde "a filosofia aparece como perplexidade, o pensamento como conjectura, e a poesia como uma profunda forma de racionalidade". E nomeiam, mais adiante, esses deslocamentos criativos de "epistemologias transversais".  Eu lhes pediria que falassem um pouco mais sobre esse conceito de "epistemologia tranversal", que me parece muito interessante.
 

IA: De fato o que menos nos interessa é a pessoa de Borges, ainda que se trate, como todos sabem, de uma pessoa fascinante. O que menos se sabe neste Centro é sobre os detalhes da vida de Borges. Esta só nos interessa à medida que possa contribuir para a história de sua literatura. O fato é que com Borges ou contra Borges, existe um ato de leitura do mundo e do texto, que está assinado por ele. E é isso que nos apaixona. Não é Borges como pessoa, ou sequer Borges como autor, que nos importa (daí não nos darmos o exercício das homenagens ao autor), mas o seu ato de leitura, que nos ensina enormemente.
     A escritura de Borges é uma leitura do mundo e é essa leitura que queremos estudar, para ver o que há dentro dessa perspectiva.  Não pretendemos fazer "borgianismo". Este é um Centro com funções epistemológicas, que busca, através de meios muito mais conceituais e mais pobres que os de Borges, investigar o que há nessa atitude, nessa leitura transversal que Borges faz do mundo. A escritura de Borges, como escritura, é riquíssima em evocação e penso que seria trágico se se escrevesse assim em linguagem acadêmica. De modo que, como somos acadêmicos, estamos interessados não em imitar Borges, mas fazer estudos literários, filosóficos e semióticos de suas leituras. 

ME: Além da revista, o Centro tem alguma outra atividade editorial?

CP: O que temos é uma página na Internet, chamada Borges Studies on line, onde publicamos livros integrais e artigos enviados pelos próprios autores. Já estão disponíveis para consulta livros e textos de Beatriz Sarlo e Daniel Balderston, por exemplo. Assim, os pesquisadores podem tem acesso fácil a livros muitas vezes difíceis de se conseguir ou que já estejam esgotados. 

IA: Temos também dois projetos laterais com respeito à revista. Um, é de publicar livros monográficos, e neste momento temos dois em perspectiva: um, que já está praticamente acabado, que é um volume sobre Bustos Domecq como autor. Ou seja, não necessariamente sobre Borges em colaboração, mas sobre um autor fictício que se chama Bustos Domecq. Temos reunido uma quantidade impressionante de artigos que nos parecem muito bons e pensamos em cuidar, muito em breve, da edição desse livro, que poderia ser seguido de outros volumes sobre o mesmo tema e que viriam a constituir uma espécie de Enciclopédia de Bustos Domecq. Consideramos este um projeto urgente, pois a obra de Bustos Domecq é essencial dentro da literatura latino-americana . O Borges de "Borges y yo" eclipsou, durante certo tempo, esse personagem-autor que, entretanto, está chamado a crescer. E a razão principal para criarmos uma enciclopédia é que as pessoas de nossa idade fazemos parte da última geração de argentinos que é capaz de dar conta da maioria dos temas, termos, alusões, chistes, tratados nesses textos, visto que correspondem a uma década em que vivemos na Argentina. De modo que, quando nossa geração morrer, se esse trabalho não tiver sido feito nem deixado, as obras de Bustos Domecq certamente não serão mais entendidas pelas próximas gerações.

CP: Penso, inclusive, que já são obras que necessitam de tradução, pois já não se entende a que fazem referência. E nossa geração participou do contexto a que se referem.

IA: Bem, este é o primeiro projeto. O segundo é algo bastante cômico, mas que tem recebido uma acolhida estrondosa. Há pouco tempo, quando nos foi pedido escrever um artigo sobre "Editar a Borges",  para a revista Punto de Vista, nos demos conta do desastre que estão fazendo com as edições de Borges, não só em castelhano, mas igualmente em português. Só que, no Brasil, a culpa não é do editor, mas das obrigações que lhe são impostas pela proprietária dos direitos autorais e que o obrigam a reproduzir exatamente o que faz a editora Emecé. Estão cometendo desatinos grandíssimos, como por exemplo, um livro que Borges acaba de publicar, que se chama Cartas de Fervor. Estão fazendo com que se criem novos livros com autoria de Borges, em vez de colocar, como se faz com todos os autores, "Cartas de Borges as seu amigo Sureda. Inventam que Borges continua escrevendo livros. Assim, falam que Borges escreveu Textos Cautivos, escreveu Textos Recobrados, etc. Ademais, essas antologias são geralmente cortadas, mal feitas, terrivelmente cheias de erros. E contra isso não se pode fazer nada, pelo menos ainda por vários decênios. Portanto, a idéia que temos é a de fazer uma edição crítica das obras completas de Borges, sem o texto de Borges. Como não temos a autorização para publicar o texto, vamos publicar as notas, as variantes, as fontes, remetendo-as ao corpo de um texto que não podemos publicar e que se encontra na edição oficial, canônica. Esperamos, assim, que passados os cem anos de sua morte, outros leitores possam ler Borges como nós hoje não podemos ler. 

CP: É um projeto cômico, que tem algo de Bustos Domecq. E tem despertado muitíssimo entusiasmo: muitas pessoas nos escrevem dizendo que acham a proposta estupenda e que podemos contar com elas. E é esta realmente a idéia: publicar as obras de Borges, em baixo relevo. O que publicamos é isso e o outro Borges já está aí. Simplesmente oferecemos as correções, as notas, adicionamos o que foi cortado, as variantes, de um texto que não pode ser tocado.

ME: É um projeto que Borges com certeza apreciaria...

IA: Essa idéia nos veio também por associação totalmente livre da lembrança de um fato ocorrido no Brasil há bastante tempo, felizmente, mas não tanto para que não o tenhamos vivido. Em um certo momento, começaram a aparecer misteriosamente, em alguns jornais brasileiros, extratos de Os Lusíadas. Às vezes um pequeno, às vezes um grande, às vezes um ocupava uma página inteira, e somente vários anos depois é que se soube que isso cobria, a cada dia, o que a censura militar tirava do jornal. Ou seja, os editores colocavam o poema no lugar do texto censurado e enviavam, assim, uma mensagem, digamos, irônica (aos que pudessem entendê-la), sobre o que estava se passando. Em nosso caso vai ser um pouco assim, mas só que de outra forma. Com os meios de que dispomos, ajudar a fazer uma edição crítica de uma obra sobre a qual não temos direito. Por exemplo, o volume britânico de ensaios das obras completas, que se chama Total Library, e que acaba de sair, traz um índice analítico muito útil, que a Emecé não traz e que tampouco a edição brasileira traz. 

ME: O que, por exemplo, constaria na errata a ser inserida na edição crítica?

IA: Há um caso típico, que eu poderia citar como exemplo. Borges sempre teve várias versões de textos parecidos e tem dois textos quase gêmeos sobre Chersterton e o conto policial. Borges descreve, nos dois, as leis, que segundo ele, são necessárias para se construir um bom conto policial. Em um dos artigos, uma das leis é "o pudor da morte", pois algo que o impressiona nos contos de Poe e de outros autores que ama, é o fato de não haver sangue: a morte tem o seu pudor.  Já na outra versão, por um  erro de tipografia, aparece "o pudor da morta", que lido assim fica certamente ridículo. Variaciones Borges acaba de receber de um professor dos Estados Unidos um artigo no qual trata do conto policial e cita essas leis, dentre elas, "o pudor da morta", sem qualquer ironia. Isso mostra até que ponto chega essa sacralização dos erros feita, lamentavelmente, pela Editora Emecé. É uma lástima, porque dizíamos que nosso Centro, pela sua extraterritorialidade, não entrava nas batalhas locais que se travam em Buenos Aires, mas é certo que mais cedo ou mais tarde acabará se sujando no barro que sai dessa cavalaria pesada. 
     Um outro caso é a edição brasileira. A Editora Globo lançou em fascículos os livros de Borges, prefaciados, na maioria dos casos, por grandes especialistas, mas quando publicou a edição das obras completas, foi proibida de colocar esses prefácios. 
 

ME: Essa imposição de exigências deve explicar o fato de a capa da edição brasileira das obras completas ser uma reprodução exata da que aparece nos volumes da edição da Emecé...

IA: É provável. Jorge Schwartz, que está encarregado das edições de Borges no Brasil, e que é uma pessoa inteiramente respeitável e de seriedade indiscutível, tem sido vítima dessa situação, pois não pode ir além do que lhe permite a editora. Por outro lado, é mil vezes preferível que saia uma edição incompleta organizada por Schwartz do que uma edição caótica preparada por qualquer sonhador. 

ME: Vocês consideram que o século XX tenha sido o século de Borges?

IA: Do ponto de vista matemático, sim. (risos). Eu diria: sim e não. Foi, sem dúvida, o século de Borges, mas foi também o século das maiores catástrofes da humanidade. Seria belo refugiar-se na literatura para se esquecer do que se passou. Talvez dentro de um século se diga que o século XX foi o século de algo que por enquanto não vemos. Em todo caso, o sobrenome Borges continuará aparecendo nos catálogos telefônicos do Brasil. (risos).Tudo depende do que se queira fazer com essa história que, como Borges dizia, funciona com pudor.  Para os que vivemos elegendo isso, esse foi o século de Borges, de Wittgenstein, de Ravel,  de Schönberg, ou de duas pessoas quaisquer que um dia conversaram serenamente e sem  testemunhas, de coisas que não mudaram aparentemente nada no mundo.

ME: E o que de Borges ficará para este milênio que começa? 

IA: Parece-me que esta é uma pergunta muito ampla. Na situação particular de um homem escondido em um canto escondido de um país escondido, que do milênio que chega vai viver apenas os primeiros resplendores, não tenho a mínima idéia. Dificilmente as coisas podem ser ditas de antemão. Os movimentos que nascem auto-nomeados como, por exemplo, "pós-modernismo", são os que menos vivem. Os que mais duraram foram aqueles que foram nomeados a posteriori. Penso que o que deveria ficar de Borges para os anos vindouros é um pequeno texto chamado "Del pudor de la historia", no qual mostra que acontecimentos totalmente secretos, que não tiveram qualquer influência nos livros de história, foram aqueles que realmente determinaram a história. Apesar de que ninguém tenha  por que se proclamar borgiano, seria anti-borgiano pensar que algo estrondoso do que se passa com Borges tenha uma influência real nas letras deste novo século. Talvez uma página, um verso de Borges mal lido e entendido ao contrário, possa ocasionar alguma coisa. Há um belo livro sobre Borges, que se chama Jugar en serio, de Ezequiel de Olaso, que no final fala justamente que o que Borges criou e que vai desaparecer dentro de pouco tempo, por culpa nossa, é uma espécie de seita de iniciados, os leitores implícitos dos textos de Borges, peritos na arte de decifrar as alusões e citações ocultas sem a ajuda de nenhum indício. Agora que Borges é estudado nas universidades, que se fazem enciclopédias e dicionários de Borges, as pessoas já sabem o que aparece nos seus textos,  antes mesmo de lê-los (se é que chegam a lê-los), sabem desentranhar todas as alusões de um texto de Borges, sem que precisem ir a esse mesmo texto. De modo que talvez seja necessário que se volte a ignorar Borges, para que se possa redescobri-lo. É preciso que Borges seja mal lido.  Ele mesmo ficaria muito feliz de saber que está sendo lido ao reverso do que pensava. 

ME: Uma última pergunta: o mundo já é "Tlön"? 

CP: Ainda não, mas nunca deixou de sê-lo. (risos)
 
 
 

 

Maria Esther Maciel

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