[@] Maria Esther Maciel Home Page

 

 

 
 

           CONVERSA COM HAROLDO DE CAMPOS
SOBRE OCTAVIO PAZ
 
                                            Maria Esther Maciel

 

  Octavio Paz e Haroldo de Campos mantiveram, ao longo de três décadas, um intenso diálogo crítico-criativo através de cartas, ensaios e traduções. Em "conjunção galática", como diria Rodríguez Monegal, e compartilhando, cada um à sua maneira, um vivo interesse pela obra de Mallarmé e pelos movimentos de ruptura da modernidade, impulsionaram, pela via poética, o até então quase inexistente intercâmbio intelectual entre México e Brasil.
      Paz, provocado pela radicalidade experimental da poesia concreta, chegou a incorporar em seu trabalho poético certos procedimentos  defendidos pelo grupo de Noigandres e Invenção. Campos, por sua vez, seduzido pela vigorosa inovação que a poesia de Octavio Paz trazia para o contexto da poesia latino-americana de língua espanhola a partir da primeira metade dos anos 30,  dedicou-se tanto à tarefa de traduzir para o português vários poemas do poeta mexicano, quanto à reflexão crítica sobre as idéias estéticas que atravessam a vasta obra  paziana. Esse intercâmbio, movido por afinidades e diferenças entre os dois poetas, culminou na publicação de Transblanco, por Haroldo de Campos, obra centrada na “transcriação” do poema Blanco, de Paz, e que reúne textos diversificados sobre o poeta mexicano, além da correspondência trocada entre ambos.
      Nesta entrevista, Haroldo de Campos trata, com acuidade, de vários temas referentes ao universo poético paziano, elucida questões teóricas pertinentes ao debate contemporâneo sobre a poesia  deste final de século, revisita, à luz da "agoridade", as principais manifestações poéticas da modernidade latino-americana, além de discorrer sobre suas próprias inquietações estéticas atuais. 

 

 

Maria Esther - Como o sr. situaria Octavio Paz no contexto da poesia moderna hispano-americana?

Haroldo de Campos -. Octavio Paz prestou um grande serviço à poesia latino-americana de língua espanhola, por representar um antídoto contra a produção retórica de feição nerudiana. Sobretudo a partir do último Neruda, o do Canto General, a poesia de língua espanhola se transformou em um imenso e enfadonho discurso, em um dispositivo de facilidade. O grande Neruda, que é o de Residencia en la tierra, é um poeta de metáforas vigorosas, que coincide com o Garcia Lorca de Poeta en Nueva York. Realmente, o grande introdutor da metáfora neo-barroca, de tipo surreal, supra-real,  associando ou pondo em contraste faixas dissonantes da sensibilidade numa síntese extremamente expressiva, foi o Garcia Lorca em Poeta en Nueva York.  Em seguida, com alguns poucos anos de distância, temos o primeiro e o melhor Neruda,  que é, a meu ver, o de Residencia en la Tierra.
      O Paz, embora seja um grande admirador do Neruda  e tenha em relação a ele uma certa indulgência da qual não compartilho, representa a tradição anti-retórica, tendo alterado sensivelmente o panorama da  poesia de língua espanhola. Sua poesia liberou os jovens poetas daquele fascínio nerudiano predominante, além de ter retomado uma linha construtiva e crítica  que antes existia na poesia latino-americana: a linha de Huidobro, no próprio Chile, de César Vallejo, no Peru, e de um poeta sobre o qual o Paz pouco fala, mas que sem dúvida pertence também a essa linha de metalinguagem, de busca do cerne da linguagem, que é o argentino Girondo.

M.E. - Se Paz representa uma tradição anti-Neruda, como explicar a sua "indulgência" para com o poeta chileno?

H.C. - O Neruda foi o grande  poeta  da admiração de Paz quando este era mais jovem. Não sei exatamente qual a diferença de idade entre eles, mas o Neruda está para o Paz como para a minha geração está o João Cabral. Só que o João Cabral é um poeta rigoroso, tem um nível despojado e o Neruda é exatamente o contrário. O Neruda seria no Brasil o Jorge de Lima da Invenção de Orpheu, que é um poeta extremamente desigual, extremamente prolixo.  Apesar de a poesia de Paz ser um antídoto da poesia nerudiana, ele aprendeu com o Neruda.  Uma das fases de sua primeira poesia é  metafórica.  Esse debate, aliás, você pode acompanhar na nossa troca de cartas, que está no Transblanco, quando Paz, respondendo uma questão minha, justifica a fase metafórica da poesia dele.  É quando eu digo que há duas linhas na sua poesia que me interessam: a linha Hai Kai, a linha enxuta, sintética, e a linha da poesia metalingüística; mas que havia alguma outra coisa na poesia dele que respondia a um tom mais comum da poesia latino-americana, que era a metáfora genitiva. Aí ele fica um pouco "queimado", "provocado",  com as  colocações que fiz. As minhas relações com o Paz não foram estabelecidas em torno de amenidades, mas em torno de um questionamento estético. Como diz Ezra Pound, "uma pessoa civilizada é aquela que responde de uma maneira séria uma questão séria". Eu coloquei uma questão séria para o Paz e ele, que é um homem extremamente civilizado, me respondeu de maneira séria. Generosamente se viu na contingência de me explicar porque na poesia dele existia e a que tradição respondia essa linha metafórica. O que ele diz a respeito disso é bastante procedente: ele mostra como procurou dar um rigor a esse tratamento da metáfora. Rigor, aliás, que se espelha no poema-partitura Blanco, onde a metáfora atinge o seu máximo de concreção, deixando de ser meramente decorativa para ser uma metáfora essencial. 

M.E. -  Em que medida Octavio Paz pode ser considerado um poeta de vanguarda?

H.C. - Sem dúvida o Paz é um poeta moderno.  É extremamente moderno, mas não é propriamente um poeta de vanguarda.  Ele jamais foi um poeta radical e nem tem com a  tradição a mesma  relação que tem, por exemplo, um tipo de poesia de vanguarda tal como eu a entendo.  A poesia de vanguarda brasileira teve uma característica específica: ela não apenas propôs uma paideuma, ou seja, um conjunto de autores básicos para a produção da poesia nova, mas também uma revisão do passado, do ponto de vista sincrônico, a partir desse paideuma. O que permitiu a  essa poesia redescobrir, por exemplo, Sousândrade, que era praticamente ignorado pelos nossos historiadores literários, e rever Oswald de Andrade, que estava silenciado por uma campanha de descrédito, num momento em que o meio universitário só falava de Mário de Andrade. Foi o trabalho da poesia concreta que reverteu essa expectativa. Não que se possa dizer que se tenha feito uma campanha contra o Mário. Quem diz isso fala uma coisa inconsistente. Basta ver  o meu caso: tenho um livro inteiro sobre o Mário e nenhum sobre o Oswald. Assim, a poesia concreta tomou essas atitudes radicais em relação à programação do futuro, ou seja, do que seria a nova poesia e a revisão do passado, inclusive do passado mais imediato, que seria o passado dos modernistas. 
      O Paz é um poeta que também tem muito essa preocupação, vide o trabalho que fez sobre Sor Juana Inés de la Cruz.  Mas pode-se dizer que ele tem uma relação mais matizada com a tradição.  Primeiro, porque a poesia dele nunca foi uma poesia especificamente de orientação vanguardista. Há o poema Blanco, mas antes e depois desse poema, não encontramos outros que apresentem  a  mesma radicalidade. Paz não é um poeta de vanguarda, na medida em  que ele nunca teve uma postura programática em relação à própria poesia. 

M.E. - Mas ele teve fortes vínculos com o movimento surrealista francês. 

H.C. - Sim, ele participou do movimento surrealista e foi até certo ponto surrealista, mas nunca foi um surrealista de preceito como os franceses que seguiram Breton. Ele é um poeta que utilizou coisas do surrealismo, mas não foi um sectário surrealista no México. Foi alguém que respeitava muito Breton, que tem para com o surrealismo um apreço que nós, brasileiros, não temos. O surrealismo foi absolutamente importante para Paz e para todo o mundo hispano-americano, e para nós não teve muito interesse. Na nossa poesia o surrealismo teve uma influência muito relativa. Aqui no Brasil,  talvez o único poeta surrealista (que também não foi de preceito), tenha sido o Murilo Mendes.  O João Cabral absorveu traços da estética surrealista no seu primeiro livro, Pedra do Sono, mas sem aderir aos  preceitos do movimento.  O Paz também, apesar de ter freqüentado em Paris o grupo de Breton, não foi inteiramente surrealista: ele usou o surrealismo como técnica de metáfora, como incorporação do elemento onírico e do elemento erótico. 
      Assim, eu diria que Paz é um poeta moderno, um poeta que dentro de sua modernidade chegou a um nível de culminação e de radicalização no poema Blanco e que sempre mantém na sua poesia essas clareiras de radicalidade. Ele é um poeta que está interessado no novo, interessado numa tradição de renovação. O Paz é o maior poeta vivo da língua espanhola, um clássico sempre interessado no novo.

M.E. - Octavio Paz, em seus estudos sobre a poesia deste final de século, fala da crise da modernidade e do esgotamento da potencialidade criativa das vanguardas. Para ele, a arte que desponta, longe de se pautar no culto vanguardista da ruptura e do futuro, inscreve-se numa estética da agoridade. Como o senhor vê essa questão?

H.C. -  Acredito que a crise das ideologias criou uma crise da utopia e a crise da utopia gerou uma crise da vanguarda. Sem utopia não há vanguarda, pois vanguarda é um projeto coletivo e precisa de um horizonte utópico. Daí,  nas minhas mais recentes reflexões sobre poesia do nosso tempo, eu preferir usar o termo "pós-utópico" ao invés do "pós-moderno". Eu considero que ainda estamos no espaço da modernidade, aberto por Mallarmé, ou no espaço da pós-modernidade, se considerarmos que moderno foi Baudelaire. Não esgotamos esse espaço. O que aconteceu foi que, a um certo momento,  esse espaço foi assaltado por um instante pós-utópico, que pôs em crise a programação do futuro. Então estamos vivendo um momento da poesia da presentidade e nisso eu coincido muito com o Octavio Paz.  Chega de programar o futuro, vamos tentar pensar criticamente a poesia do presente.  Eu, pessoalmente, estou fazendo esse tipo de poesia, desde o meu livro Educação dos cinco sentidos. 
      A vanguarda, para mim, entrou em crise no momento em que a esperança coletiva que a animava foi questionada pela crise da ideologia. O que não quer dizer que no futuro não  possa haver novas condições para a vanguarda.  Quem nos dirá, por exemplo, que dentre esses poetas russos que estão vivendo um momento muito especial de descrédito do comunismo soviético, de repensamento de sua própria sociedade,  não surgirá de repente um grupo que pense a poesia soviética num horizonte utópico?  Eu não sei dizer, isso vai depender das condições históricas da Rússia.

M.E. - O próprio Paz, mesmo ao afirmar o fim das utopias, insiste, em La otra voz,  na idéia de que a poesia, "modelo de fraternidade cósmica",  poderá transformar a humanidade no século XXI.  Ele não estaria se agarrando, com isso, a uma "utopia  pós-utópica" e reeditando uma das crenças dos poetas surrealistas?

H.C. - Ninguém abdica totalmente dos resíduos utópicos, muito menos daquele elemento crítico que faz parte da utopia. É óbvio que quando a gente fala da poesia da presentidade, da poesia pós-utópica, isso se coloca na circunstância em que estamos vivendo. Eu não sei o que vai acontecer na sociedade depois do ano 2000 e nem quero ser pitonisa. Apenas posso dizer que, assim como essa circunstância pós-utópica poderá prolongar-se por muitos anos, nada impede que  uma nova circunstância utópica emerja.  Por exemplo: assim como o Paz pensa  na possibilidade de uma nova sociedade, de novas bases, você pode pensar no que os novos mídia nos conduzirão a fazer em termos poéticos. Basta ver o que um computador Macintosh permite a um poeta fazer hoje. Eu, por exemplo, falo isso com toda tranqüilidade, porque não opero nenhum computador. Eu sou um homem do verbal, mas meu irmão, que é um poeta intersemiótico por definição,  que maneja o código musical, o código pictórico, além do código verbal, está trabalhando diretamente no Macintosh. O novo livro dele que vai sair pela Perspectiva, reunindo os poemas dos últimos dez anos,  é um livro que ele programou desde a capa até todos os poemas. Aliás, os poemas são muito complexos, muito trabalhados e envolvem desde o alfabeto braille para ser lido por tato, até cores e elementos mais diferentes que os novos mídia eletrônicos  permitem configurar. No passado, nos anos 50, houve momentos em que a gente pensava em letras luminosas para fazer um poema, mas aquilo era realmente utópico. Hoje não, pois já projetamos aqui em São Paulo, na Av. Paulista, poemas em raio laser nos edifícios. O laboratório de computação gráfica da Escola Politécnica da USP já fez comigo um poema num imenso computador que eles têm, que é uma coisa maravilhosa; o resultado, meu vídeo-poema "crisântempo",  parece um buraco cósmico aparecendo na tela. Então, por aí, se poderá até pensar que futuramente grandes possibilidades se evidenciarão em termos de linguagem e de repente isso pode coincidir com um momento de uma esperança projetual. O fato de dizermos que estamos vivendo uma crise das ideologias, num momento pós-utópico, não significa que outros momentos utópicos não possam surgir no futuro e em outras partes do mundo.

M.E. - O senhor mencionou, agora há pouco, o trabalho que o concretismo realizou em termos de revisão sincrônica da literatura do passado e reconhece que Octavio Paz também se interessou por essa tarefa, ao reler e recuperar, à luz do presente, a obra de Sor Juana. Mas me parece que Paz, mesmo adotando uma visão sincrônica, não abdica da diacronia, mas as coloca em relação.  Como o senhor vê isso?

H.C.  Em termos de sincronia, a própria lingüística, particularmente a de Jakobson, afirma que ninguém é absolutamente sincrônico. Toda sincronia tem aspectos diacrônicos e toda diacronia tem aspectos sincrônicos. Para se descobrir, por exemplo, a importância de um poeta como Sousândrade,  é preciso fazer um corte sincrônico, mas este corte se faz sobre uma espessura diacrônica. Quando Sousândrade publicou seu primeiro livro, Harpas selvagens, em 1857,  Baudelaire lançava  As flores do mal , e pouco tempo depois Casimiro de Abreu publicava suas Primaveras. Então, em relação a quê Sousândrade  representa um desvio da norma? Ele representa o desvio daquela norma que foi cultivada pelo Casimiro de Abreu, daquela poesia do coração, sentimental, quase infantil,  que hoje nos parece até kitsch, que era a poesia da sensibilidade do tempo. Foi contra essa tendência romântica que reagiu a poesia de Sousândrade, a ponto de Sílvio Romero considerar o poeta ilegível, achando que ele tinha inabilidade formal. Isso, porque Sousândrade fazia uma poesia que se afastava dos cânones daquilo que se entendia por poesia. E o que se entendia por poesia se encaixava dentro dos cânones de um romantismo exterior,  já que no Brasil nunca houve um romantismo intrínseco de tipo inglês ou alemão, mas sim um romantismo extrínseco, aquele das efusões de sentimento e pouco afeito aos jogos da linguagem. Nós não tivemos um Novalis, tivemos um Casimiro de Abreu; não tivemos aqui, por exemplo, um Byron do Don Juan , mas tivemos o Byron da convenção biográfica romântica, do satanismo; tivemos um Castro Alves que pega o lado mais retórico de Victor Hugo. O nosso poeta que fez na linguagem a grande poesia romântica foi Sousândrade. Sobretudo ao escrever Guesa, ele levou ao total desconcerto os modelos do tempo, não sendo compreendido pelos seus contemporâneos. É claro que se não tivéssemos os parâmetros da poesia moderna, não teríamos parâmetros para avaliar o Sousândrade e estaríamos no mesmo pé que o Sílvio Romero. As pessoas que se acham isentas no julgamento de um autor estão enganadas. Todo mundo julga com parâmetros. As pessoas, por exemplo, que não aceitam os parâmetros da modernidade, julgam com os parâmetros parnasianos ou românticos. Todo mundo faz um corte sincrônico.  Só que o corte sincrônico feito por muitos é o que está no horizonte de Olavo Bilac ou de Castro Alves, enquanto o meu corte sincrônico, que incorpora o passado da literatura brasileira, tem como parâmetros a linguagem da poesia brasileira a partir do modernismo de 22. 
 Assim, quando recuperamos Sousândrade, não estamos apenas fazendo um corte sincrônico, mas estamos também examinando a diacronia. Veja então que não há uma sincronia pura, já que esta opera dentro da diacronia. E assim é o caso de Octavio Paz.  Ao trabalhar com a Sor Juana, ele só pode reconhecer que o Primero Sueño é um poema precursor de Mallarmé, porque conhece e aprecia Mallarmé. Se não conhecesse, ele diria o que disseram os outros, antes dele, ou seja, que a Sor Juana tinha sido apenas um epígono do Gôngora. Mas como Paz tinha outros parâmetros, ele pôde fazer esse corte sincrônico e trazer Sor Juana para a modernidade. Mas, para isso, ele fez um profundo estudo da situação histórica e biográfica  da escritora. Geralmente as pessoas que acusam a abordagem sincrônica de ser a-histórica, não estão interessadas nem na história nem na modernidade, mas querem preservar uma imagem passada da literatura. 
 

M.E. - Esse corte sincrônico que tanto o senhor quanto o Octavio Paz fazem da literatura seria um procedimento próprio dos chamados  poetas-críticos?  Leyla Perrone, num ensaio sobre os escritores-críticos modernos, aponta como  traço comum a todos eles essa opção pela sincronia. O senhor concorda?

H.C. - Conheço o trabalho da Leyla, que é muito bem estruturado, e ela terá provavelmente razão, embora possa ocorrer o fato de que não-poetas, dotados de um sentido muito profundo da poeticidade, possam seguir a mesma opção. É o caso de Jakobson e de outros lingüistas, inclusive de filólogos, como o Rodrigues Lapa.  Eles são sensíveis à estética da linguagem, têm uma percepção da relação entre som e sentido e valorizam a forma significante do poema. É claro que isso tem acontecido mais sistematicamente com poetas que refletem sobre o próprio poema, mas não podemos nos esquecer, por exemplo, de um Walter Benjamin, que não era poeta nem prosador de ficção, embora tivesse ambas as qualidades. Ele traduziu poemas, traduziu Baudelaire, Proust.  Ele é um ensaísta criativo e o seu ensaio é escritural. Se ele não tivesse convivido com o expressionismo na Alemanha e com o surrealismo na França, não teria recuperado o barroco alemão.  Benjamin também viu o barroco sob o ponto de vista sincrônico. Tanto, que ele projeta o problema da alegoria barroca do ponto de vista de Baudelaire. 

M.E. -  Por falar em Walter Benjamin, percebo que há certos traços comuns entre a teoria benjaminiana e a de Octavio Paz. O senhor mesmo chegou a afirmar que o método analógico, infiltrado de ironia, adotado por Paz, teria uma semelhança com o método alegórico, sempre assaltado pela idéia de ruína, adotado por Benjamin.

H.C. - Tenho a impressão de que são coincidências que existem na maneira de pensar de cada um deles. Embora haja pontos de contato entre eles, ambos chegaram a essas formulações por caminhos diferentes. É um tema a ser aprofundado. O Benjamin não é um autor presente na obra de Octavio Paz e nem contribuiu para a  formação dele. Parece-me que Paz tem inclusive uma certa reserva em relação ao Benjamin, da mesma forma que tem em relação a Derrida e aos pensadores desconstrucionistas. O que não deixa de ser intrigante, pois eles têm muita coisa em comum com o pensamento de Paz.  Penso que a aversão dele por Derrida é menos por Derrida do que pela caricatura que fizeram do Derrida. Houve uma espécie de recepção um tanto deformante do pensador francês nos meios universitários norte-americanos, tanto que o desconstrucionismo não é uma tendência da crítica francesa, mas da crítica americana. O Derrida tem muito mais audiência nos Estados Unidos do que na própria França. Nos EUA ele tem uma audiência que tomou um caráter epigonal, ou seja, por toda parte se fala em desconstrucionismo. É talvez esse modismo que irrite um pouco o Paz. 

M.E. - Octavio Paz, ao optar pelo método analógico,  confere à analogia um lugar especial nas suas reflexões sobre o poético e a história da poesia moderna. Como o senhor vê isso?

H.C. - De fato o Paz usa a analogia como instrumento de reflexão crítica e sua poesia é muito armada em termos de construção analógica. Ele trabalha com uma espécie de jogo de yin e  yang, através do qual os contrários ora coincidem, ora se resolvem e depois voltam a se opor. Aliás, a estrutura do Blanco é muito assim. Isso é uma característica singular do Paz. A ensaística dele também apresenta uma espécie de balanceamento do movimento que é também parecido com o da poesia. 

M.E. - Mas ele coloca a analogia como a base da construção poética, ou seja, ele diz que a poesia é analógica por natureza. Isso se evidencia no momento em que trata o poema como um duplo do universo, como um jogo de correspondências universais.  Idéia que também está presente nos primeiros românticos alemães e ingleses, no projeto mallarmeano do Grande Livro, na "Biblioteca de Babel" do Borges e até mesmo nas suas Galáxias... 

H.C. - Isso existe sim. A perseguição de certas metáforas fundamentais pelos poetas realmente acontece. Só que, naturalmente, cada poeta formula isso de uma maneira diferente. Como abordamos na questão anterior, aquilo que Paz chama, por exemplo, de visão analógica, Benjamin chamaria de visão alegórica. Eles tratam do mesmo problema com nuances e com algumas diversidades, o que mostra como  inflexões diferentes de dois pensadores autônomos de repente se encontram em conclusões que, até certo ponto, são semelhantes. O fato é que essas questões batem com certas propostas básicas da modernidade. Eu tenho tido muita preocupação, talvez pela minha herança poundiana, com o problema da escrita ideogrâmica, da justaposição de opostos. Isso tem sido para mim muito importante, seja do ponto de vista da reflexão crítica, seja para a construção da minha própria poesia. 
 

M.E. - E mesmo para o seu trabalho de tradução, não é mesmo?

H.C. - Ah, sim.  Tanto para mim quanto para o Paz, a tradução é um trabalho de construção poética e motivo de reflexão teórica. Uma prática sistemática. No meu caso, inclusive, uma prática muito mais sistemática do que no caso do Paz. Nele, a traduçao existe com bastante intensidade, mas não chegou a ser teorizada de uma maneira tão detalhada e à luz de tantos elementos diferentes como no caso da minha ensaística. Até por força de questões didáticas, tenho dedicado grande parte de meus ensaios à tradução. Na Pós-Graduação da PUC dei vários cursos sobre a poética da tradução. E a cada tradução que faço, busco ampliar as minhas reflexões sobre essa poética. Aliás, estou preparando um livro específico sobre tradução, onde vou reunir os trabalhos que publiquei dispersamente. Ele já tem um título: Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora.  Não pude integrar ainda todos esses textos dispersos, por falta absoluta de tempo. Eu trabalho sozinho, sou o datilógrafo de mim mesmo, sou um arquivista de mim mesmo. Não tenho um aparato de secretaria. E minha mulher, que sempre pôde trabalhar comigo, ultimamente tem tido outras tarefas de interesse dela que não me permitem solicitá-la. Eu nem sequer trabalho ainda com um processador de textos. Não sou muito afim a computador, sou muito viciado em escrever à mão e à máquina de escrever. Até hoje escrevo muito à mão. 

M.E. - Já que tocamos nessa questão da tradução, eu gostaria de saber um pouco sobre o seu empenho em traduzir textos hebraicos.  De onde vem esse seu interesse pela tradição judaica? 

H.C. - Isso tem muita relação com amigos meus. Desde os anos 60 convivo com representantes importantes da inteligência judaica aqui em São Paulo, dentre eles, Jacó Guinsburg, diretor da Perspectiva,  a mulher dele, que foi assistente do Mário Schenberg, o próprio Mário Schenberg, que foi meu amigo, o Boris Schnaiderman, a Regina Schnaiderman.  Enfim, tenho essas amizades desde a década de 60.  Convivendo com o Jacob, fiquei muito exposto a aspectos da cultura hebraica, até que resolvi traduzir textos da Bíblia, considerando que, ao lado dos poemas homéricos, são o grande paradigma da literatura ocidental. Para esse trabalho, fiquei seis anos estudando hebraico. No início, eu tinha uma aula por semana, com duas horas de duração, e depois cheguei a ficar um dia por semana, à parte, estudando por conta própria. Hoje sou praticamente um rabino laico: o que tenho de bíblias, livros sobre a Bíblia, dicionários... 

M.E. - Esse seu interesse não tem nenhuma ligação com a ordem do sagrado?

H.C. - Não tem, embora muitas vezes essa ordem me inquiete. Tenho muito respeito por ela, mas meu trabalho está voltado sobretudo para o poético. Evidentemente, como diz o Novalis, "quanto mais poético, mais verdadeiro". Assim, para quem tem sensibilidade poética e religiosa, ler uma transcriação da Bíblia que preserve os valores escriturais do texto é muito mais satisfatório do que ler uma tradução banal, que às vezes transforma o texto bíblico num kitsch. O hebraico tem uma poesia fantástica. Se há alguma coisa que justifique a função poética do Jakobson é a Bíblia Hebraica. Jakobson tem um trabalho em que tematiza a poesia bíblica, mostrando as grandes técnicas da poesia oral que existem na escritura bíblica: o jogo das rimas, do paralelismo, as técnicas combinatórias e paronomásticas. A oralidade não significava menos sofisticação que a tradição escrita. A Bíblia, antes de ser fixada na escrita, teve uma imensa tradição oral, tanto que um dos nomes da bíblia hebraica não é escritura, mas  leitura . Era para ser lida dentro da comunidade, nas sinagogas. 

M.E. - Bem, aproveitando essa deixa do sagrado, faço mais uma pergunta sobre Octavio Paz: o senhor veria uma dimensão mística na obra dele?

H.C. - É curioso observar que ele tem uma relação com o sagrado pelo viés do tantrismo. Há um momento em que o erótico e o sagrado, para ele, estão muito próximos. Não é por acaso que dentre as várias tradições do budismo, a que toca mais de perto o poeta seja a do budismo tântrico, que está expressa no Blanco. Também o interesse dele pela Sor Juana envolve essa dimensão do sagrado. Nesse caso, com outras preocupações. O fascínio que o Paz tem pela Sor Juana, essa monja  que, ao mesmo tempo, era uma filósofa, uma poeta, uma pensadora, que viveu no contexto colonial mexicano, repressivo e machista, envolve a dimensão do sagrado, uma vez que esta era a dimensão da época. Agora, na poesia dele, não vejo essa dimensão,  a não ser, como eu já disse, no plano erótico.

M.E. - Mas na teoria  já fica mais evidente esse vínculo com o sagrado, quando ele relaciona, por exemplo, poesia e mito, quando fala da linguagem primordial, do retorno às origens. 

H.C. - Ah, sim, um sagrado mítico, não religioso-confessional. Isso é verdade. Também a preocupação com o budismo, se é que se possa considerar o budismo uma religião. Talvez seja mais uma filosofia, uma atitude perante o mundo. Paz viveu um longo período na Índia e lá teve contato direto com coisas míticas e místicas. Na sua obra essa vivência realmente aparece. 
 
 

       São Paulo, 16 de novembro de 1993.

 

(Texto publicado na Revista Nossa América/Nuestra América, do Memorial da América Latina e posteriormente incluído no livro A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (Belo Horizonte, Autêntica, 1999)
 
 

 

 CURRICULUM VITAE :: 

LIVROS :: 

POEMAS :: 

ENSAIOS :: 

ENTREVISTAS :: 

CRÉDITOS :: 

LINKS :: 
 
HOME ::